Fausto Bernardes Morey Filho

Junho de 2009

No texto A Tale of Two Depressions, os economistas Eichengreen e O'Rourke apresentam uma comparação entre a atual crise global e a depressão da década de 30. Com base nos dados obtidos, eles afirmam que em termos globais a produção industrial, o comércio externo e o mercado de ações apresentam queda mais acentuada que a verificada na década de 30. Os principais indicadores macroeconômicos globais colhidos no período compreendido entre o início da crise e junho de 2009 mostram que, apesar de nos últimos meses ter havido melhora no desempenho do mercado de ações e do comércio internacional, a crise de 2008 é, no mínimo, tão grave como a de 1929. As principais constatações foram:

- A produção industrial mundial continua na mesma trilha de queda que a da depressão de 30 e sem nenhum sinal de melhora;

- O mercado de ações teve uma retomada desde março e o comércio mundial estabilizou-se, porém, os dados correspondentes estão bem abaixo dos verificados na grande depressão;

- Com relação às quatro grandes nações da Europa, temos que: a produção industrial alemã e inglesa apresenta hoje curvas similares à da grande depressão, mas a Franca e a Itália estão muito piores.

- Os EUA e o Canada têm a sua curva de produção industrial seguindo de perto o comportamento observado na crise de 1929 e sem nenhum sinal claro de retorno a trilha do crescimento;

- Apesar de ter havido uma retomada na produção industrial no Japão desde março, em fevereiro ela apresentava, considerando o mesmo estágio que a atual crise, um resultado perto de 25% inferior ao verificado na grande depressão.

Seria interessante uma análise de mesma natureza sobre a indústria de serviços, pois ela hoje representa uma parcela significativamente superior em relação ao PIB que a verificada na década de 30 e pode fazer toda a diferença na avaliação da recuperação da economia.

Para muitos analistas, no entanto, há vários sinais sobre a evolução da situação da economia mundial sugerindo que, possivelmente, estejamos perto de um ponto de inflexão do processo de recessão mundial e tal percepção tem levado certa euforia aos mercados. Porém, muitos dos fatores que contribuíram para a deflagração da crise estão até o presente momento sem solução.

Aparentemente, a especulação financeira está de volta, especialmente com as comoddities, das quais, a mais facilmente visível é o petróleo. Talvez este movimento seja decorrente do aumento da liquidez e damanutenção dos juros em patamares muito baixos pelo FED - Federal Reserve e outros bancos centrais.

Os programas de ajuda econômica têm buscado a retomada da economia com base no consumo de bens da economia pré-crise, caso da indústria automobilística no Brasil. Considerando que estas indústrias têm sido crescentemente responsáveis pela exploração insustentável dos recursos naturais e pelo efeito estufa, além da disparada nos preços das commodities, poder-se-ia dizer que os principais desequilíbrios da economia, incluindo aqueles verificados nos EUA, ainda não foram adequadamente tratados.

Outro fator que pode estar contribuindo para a recuperação dos preços das comoddities poderia ser uma recomposição preventiva e estratégica de estoques na China. Ela pode estar se aproveitando dos preços mais baixos para comprar e estabelecer um estoque estratégico que lhe permita uma melhor posição em negociações futuras com os países exportadores, e neste caso, países como o Brasil e a Austrália poderiam ter suas posições enfraquecidas.

Por outro lado, os indicadores macroeconômicos nos EUA continuam colhendo resultados muito ruins. Entre eles podemos citar:

Déficit público

Os EUA estão enfrentando uma espiral de crescimento dos déficits públicos muito mais intensa que a prevista pelo GAO - United States Government Accountability Office no início de setembro de 2008. Naquele momento era previsto que, em 30 anos, o déficit público americano poderia situar-se entre 6% e 15% do PIB, porém, se for confirmado o déficit previsto de 1,8 trilhões de dólares. esta faixa seria atingida já no presente exercício com o equivalente a mais de 13% do PIB, totalmente insustentável no longo prazo.

O déficit no Orçamento do EUA cresceu em US$ 189 bilhões em maio, motivado pela ocorrência simultânea de queda na arrecadação e despesas em programas de estímulo econômico e socorro financeiro. O déficit acumulado nos oito primeiros meses do ano fiscal de 2009 foi de US$ 991,9 bilhões contra um total de US$ 319 bilhões em igual período do ano fiscal de 2008.

Déficit Externo

O nível déficit externo que se tornou persistente e crescente nos últimos anos, continua elevado apesar da extensão da recessão e do atual nível de desemprego. Somente o déficit comercial, em dados corrigidos de variações sazonais, atingiu 29,2 bilhões de dólares em abril após ter atingido em março 28,5 bilhões de dólares. Se o preço do petróleo continuar subindo, o déficit poderá acentuar-se nos próximos meses. Godley[1] alertava que:

"Se os EUA tentarem restabelecer o pleno emprego apenas através da política fiscal e monetária, o déficit da balança de pagamentos pode subir os próximos 3 ou 4 anos, para 6% do PIB ou mais, nível que não seria possível sustentar por um longo período".

Dados divulgados recentemente pelo Departamento do Comércio americano mostram sinais de redução do déficit em conta corrente dos EUA que já no trimestre janeiro e março de 2009 caiu para US$ 101 bilhões, o menor apurado valor em um trimestre desde 2001. A curva da Figura 1 "resultado da balança" mostra o efeito deste ajuste e a queda das relações comerciais americanas desde o início da recessão.



Estoque de dívida pública

O estoque de dívida tem subindo rapidamente e, apesar do baixo custo de financiamento da dívida pública, a relação divida - PIB poderá atingir 90% do PIB até o final de setembro de 2009. Este quadro é especialmente sério, pois há duvidas com relação à viabilidade da continuidade do dólar como moeda internacional. Tais dúvidas foram manifestadas publicamente por autoridades chinesas, entre outras, e levantam questionamentos sobre a capacidade americana de honrar seus títulos e de continuar a financiar sua dívida pública. Isto poderia sugerir uma elevação das taxas de risco deste papel no médio prazo, com a conseqüente elevação das taxas de juro, fato que já vem sendo observado nos títulos com vencimento de 2 anos.

Uma noticia relevante é o fato da retomada na taxa de poupança dos americanos em relação ao PIB. Esta poupança pode estar ajudando o financiamento do déficit público e ao mesmo tempo atuando na contração das vendas.

Desemprego

O nível de emprego tem caído desde o início de 2008, ampliando-se drasticamente após a quebra do Lehman Brothers em setembro. As taxas[1] observadas são superiores às das recessões de 1990 e de 2001, como pode ser visto no Gráfico 1. O número de 345 mil vagas perdidas em maio de 2009, ainda é muito elevado, apesar de representar um pequeno alívio no ritmo verificado até o mês de abril, porém em junho, o número voltou a crescer, atingindo mais de 467 mil. Não dá para saber quando as coisas se estabilizarão, mas isto provavelmente ocorrerá após setembro ou outubro próximos, porém, poderá levar anos para recuperar o nível de emprego existente em janeiro de 2008.


Gráfico 1 -
Saúde do sistema financeiro

Apesar dos testes de stress nos bancos americanos, ainda não é possível afirmar como está à saúde do sistema bancário americano e muito menos o europeu. A situação americana continua grave, pois o país continua em recessão, o déficit público e o estoque da dívida atingiram níveis alarmantes e a atividade econômica e do consumo, apesar da recessão, continua gerando déficits externos próximos a 5% do PIB. Tal situação poderá reduzir a capacidade dos bancos realizarem negócios e obterem lucros no nível suficiente para recomposição de suas reservas, distribuírem dividendos e pagarem a ajuda recebida do tesouro americano.


Emissão de moeda e inflação

O FED pode ter iniciado um movimento de emissão de papel moeda frente a uma eventual dificuldade na colocação de novos títulos - o gráfico 2 "Crescimento do estoque de moeda (M2)" mostra esta curva. Esta ação continuada poderia resultar em uma forte desvalorização do dólar no futuro, apesar do economista Paul Krugmman não acreditar nesta hipótese, levando a uma eventual aceleração da inflação nos EUA, ampliando os desvios de preços relativos e atuando para aprofundar atual recessão ou para prolongar seus efeitos.

Gráfico 2

                         Crescimento do estoque de moeda (M2)

Fonte: The Market Oracle, http://www.marketoracle.co.uk/Article10056.html

A atuação governamental na solução da crise no Brasil

O governo brasileiro adotou medidas para atenuar os efeitos da crise e elas estão baseadas na crença que a situação internacional se normalizará em um prazo não muito longo e, se este for o caso, as medidas foram acertadas. A adoção de políticas fiscais anticíclicas no Brasil enfrenta porem, entre outras dificuldades, a escassez de poupança pública para novos empreendimentos e barreiras burocráticas variadas no âmbito do governo para realização de licitações de obras públicas de infraestrutura. Este fato pode ser comprovado observando-se o baixo volume de execução do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.

O problema mais grave está no continuo crescimento dos níveis de gastos de custeio nos três poderes que, no curto prazo, tem sido coberto pela redução da taxa de juros básicos da economia (SELIC), mas, que no futuro poderá tornar-se um desequilíbrio macroeconômico grave.

As reduções do IPI e do IOF tiveram impacto positivo em certos setores da indústria, especialmente na automobilística brasileira. Elas mantiveram os elevados níveis de produção e venda de veículos observados nos últimos anos para o mercado interno, mas em nada puderam contribuir com relação à queda das exportações e com a ativação do mercado de carros usados, que continua com baixo desempenho, sem contar os efeitos negativos decorrentes da queda da arrecadação fiscal sobre as contas públicas.

Entre muitos dilemas, para o caso do repasse da queda de preço do barril de petróleo foi adotada uma solução que privilegia a cadeia do agro-negócio ao reduzir os preços do óleo diesel, a ampliação da receita tributária federal em função do aumento da CIDE sobre a gasolina e, indiretamente os produtores de álcool, em função da manutenção dos preços da gasolina nas bombas. Esta medida, porém, pode significar que, talvez, a Petrobras seja obrigada a reduzir seus custos e/ou adiar investimentos e/ou endividar-se para mantê-los.

Além do encarecimento linhas de crédito, os prazos dos empréstimos estão mais curtos e foram ampliadas as exigências e as garantias para a sua concessão. Outro agravante está ligado ao comportamento da inadimplência que desde no final de 2008 tem apresentado crescimento.

A sustentação da retomada dos níveis de cotação das ações no Brasil estará muito mais dependente de condições macroeconômicas externas e na percepção do comportamento da relação de preços entre o dólar e o real, que de fatores relacionados à atividade e aos fundamentos econômicos. Se os investidores externos acreditarem que o dólar continuará a se desvalorizar em relação ao real, eles aportaram recursos ao mercado de ações, sustentando as cotações.

Parece que esta volatilidade da taxa de câmbio é um dos fatores que mais prejuízo e instabilidade trazem ao Brasil neste momento, pois apesar do dólar estar perdendo força sobre a maioria das moedas, ele continua tendo papel importante na economia mundial.

A queda da taxa básica de juros para 9,25% terá o efeito de reduzir as despesas do governo neste componente das contas públicas, abrindo espaço para ampliação dos gastos. Infelizmente a maior parte dos recursos está direcionada ao custeio e a despesa com pessoal com características de irredutibilidade. No curto prazo causam a ampliação da demanda das famílias, mas no longo prazo, se não forem rapidamente acompanhados por uma retomada do nível de investimentos, terão conseqüências negativas tanto para o crescimento econômico quanto na taxa de inflação. Se no futuro for necessário subir a taxa de juros por qualquer motivo, como os gastos são inelásticos, poderia acarretar na volta do déficit público ou no aumento de impostos, ou ambos.

Apesar da queda de quase 20% no comércio internacional, o Brasil continua apresentado superávit comercial, muito em decorrência da desaceleração da economia e da queda drástica dos investimentos e da formação bruta de capital e pela elevação dos preços das commodities. Por outro lado, se o recuo do dólar frente ao real persistir, a lucratividade das exportações será drasticamente reduzida.

A situação global

Até agora não foi restabelecida a confiança no sistema financeiro, pois a crise já tem quase dois anos e quase nada mudou no marco regulatório americano e, muito menos, no Europeu. Somente agora o Governo Obama apresentou seu plano para a reestruturação do modelo regulatório e do controle do mercado financeiro, mas o plano deverá passar ainda por discussões no legislativo americano. Há dúvidas até mesmo se medidas regulatórias poderiam ser eficazes.

A solução da crise econômica passa, entre outras coisas, pela solução dos graves desajustes da economia americana e de muitos países centrais do capitalismo. Dado que os EUA representam 25% da economia global, o seu ajuste continuará a ter impacto significativo, principalmente nas economias integradas, como é a da China. Para evitar a escalada protecionista será necessário um esforço significativo de negociação multilateral para o estabelecimento de acordos comerciais entre estes países.

O reequilíbrio das relações comerciais dos EUA com países com os quais possui déficit, caso da China será muito complexo, pois deverá ser obtido, sem estancar as fontes de financiamento de sua dívida. Este ajuste poderá afetar indiretamente a economia brasileira que ampliou muito sua interdependência com outras economias, semelhantes com a da China. Uma breve redução da atividade econômica nestes países poderá ter impacto negativo na economia o Brasil.

Referências Bibliográficas e outras fontes

- Bureau of Economic Analysis - BEA - U.S. International Transactions Accounts Data - Tabela "Table 1. U.S. International Transactions" publicada em dezembro de 2008.

- GAO - United States Government Accountability Office, atualização de 2008. The Nation's Long-Term Fiscal Outlook Health Care Cost Growth and Demographic Trends Drive the Long-Term Fiscal Challenge. http://www.gao.gov/transition_2009/outlook/ - Acesso em junho de 2009.

- GAO - United States Government Accountability Office , janeiro de 2008. Testimony before the Committee on the Budge, U.S. Senate, Long-Term Fiscal Outlook - Action Is Needed to Avoid the Possibility of a Serious Economic Disruption in the Future. http://www.gao.gov/transition_2009 /outlook/ - Acesso em janeiro de 2009

- Wynne Godley, Dimitri B. Papadimitriou, Greg Hammssen e Gennaro Zezza, novembro de2007. The U.S. economy: is there away out of the woods?

- Barry Eichengreen e Kevin H. O'Rourke, abril e junho de 2009, A Tale of Two Depressions - http://www.voxeu.org/ acesso em 18 de junho de 2009.

Outros sites visitados:

  • http://www.newyorkfed.org/aboutthefed/fedpoint/fed01.htm, em 8/6/2009
  • http://www.marketoracle.co.uk/Article10056.html , em 8/6/2009
  • http://www.federalreserve.gov/releases/h6/Current/ , em 8/6/2009

Notas de rodapé
[1] Godley, Papadimitriou e Zezza, dezembro de 2008. Prospects for the U.S. and the World: A Crisis That Conventional Remedies Cannot Resolve, pg. 9.

[2] United States Department of Labor - Bureau of Labor Statistics. 12 Months Percent Change Series Id: LNS14000000 e Id: CES0000000001. http://www.bls.gov/ - acesso em junhode 2009.