1. Um panorama sobre a criminalidade

Dentro da área de atuação do direito penal, surgem questões pontuais como a criminalidade e suas origens, temas fundamentais para a compreensão da formação do crime organizado. Assim, no condizente a esta última modalidade delituosa, os crimes patrimoniais assumem uma condição claramente “protagonista”, pois vivemos em um meio social onde o patrimônio possui mais valor que a vida, o que mostra uma excedente visão capitalista que leva a esta absurda inversão valorativa.

Não obstante, a sistemática disciplinada pelo Direito Penal induz e fomenta a impunidade e a incapacidade para o tratamento dos problemas criminais, pois há o direcionamento da política criminal de modo meramente fático, desatento às origens e causas da criminalidade.

Neste sentido, a humanidade assiste ao crescimento da criminalidade de modo atônito e passivo, onde o crime assume a sofisticação inerente ao próprio crescimento exponencial da tecnologia, onde a liberdade social é tratada como utopia, sucumbindo aos interesses econômicos que abastecem o próprio mercado criminoso e desestimulam qualquer forma de justiça real. [1]

ZAFFARONI[2] explica as principais causas do aumento da criminalidade na América Latina, citando características do ele intitula como “o novo poder planetário”:

“La principal consecuencia social de este fenómeno de poder es la generación de un amplio y creciente sector excluido. La relación explotador-explotado ha sido reemplazada por una no relación incluido-excluido. La bibliografía especializada habla con frecuencia de la brazileñización como generalización de un modelo con un 20% de incluidos y un 80% de excluidos (sociedad 20 por 80), que da lugar a una sociedad con aislados ghetos de ricos en un mar de pobreza. En semejante modelo prácticamente no hay espacio para las clases medias. El excluido no es el explotado: el último es necesario al sistema; el primero está demás, su existencia misma es innecesaria y molesta, es un descartable social”.

Na mesma obra, ZAFFARONI [3] cria um contexto para explicar a extensão da criminalidade e o seu intrínseco vínculo social existente:

“Una brevísima consideración criminológica será útil para apreciar la magnitud y causas del desconcierto de los discursos del sistema penal actual. (…) Un sencillo ejemplo tan cotidiano y banal que ni siquiera merecería la mejor consideración periodística, demuestra la complejidad casi infinita del problema: en cualquier ciudad latinoamericana, un adolescente amenaza a otro con un arma de fuego para robarle su calzado deportivo. Basta este echo insignificante para la comunicación y para el propio sistema penal, para plantear la inviabilidad falsaria de cualquier simplismo: 1º) El objeto del robo fue fabricado en Asia por niños esclavizados. 2º) El motivo del robo no es la necesidad del supervivencia, sino que su objeto es elevado a símbolo de status entre los adolescentes conforme a una propaganda mundial. 3º) La producción esclavizada asiática reemplaza el trabajo del padre o la madre del asaltante, despedido en el país por la misma empresa o una subsidiaria para reducir costos productivos. 4º) El padre del asaltado, como persona de clase media, puede comprar ese calzado a su hijo, porque obtiene mayores réditos de sus modestos ahorros invertidos. 5º) Se alegrará cuando esos reducidos ahorros le permitan mejores rentas 6º) Esas rentas aumentarán porque el capital acumulado de todos los ahorristas se invertirá en emprendimientos de mayor rendimiento. 7º) Estos emprendimientos aumentan el rendimiento mediante reducciones del empleos y en lugares donde haya menores impuestos. 8º) Cuando mayor se la pequeña renta del padre de la víctima, menores serán las oportunidades de trabajo futuro de la propia victima del robo y mayores  las chances de que el ahorrista de clase media tenga nietos que sean hijos de desocupados. 9°) Los menores impuestos reducirán la inversión social y sus nietos tendrán aún menos oportunidades de salud y educación que el propio asaltante. 10º) No es raro que el padre de la víctima reclame pena de muerte, menores garantías y medidas directas policiales (homicidios) y que vote a políticos que propugnen tales recursos. 11º) Esos políticos terminarán desviando la magra inversión social hacia el sistema penal o hacia sus clientelismo (corrupción) y reduciendo aún más las chances de los nietos de ahorrista. 12º) Las policías más arbitrarias serán más corruptas y permitirán mayor contrabando y mercado negro de armas (mayor violencia). 13º) La mayor corrupción del sistema penal determinará que sus propias agencias ejecutivas se conviertan en engranajes de la organización criminal o en administradoras de sus zonas de operatividad. 14º) Esto aumentará las chances de victimización por secuestro del propio ahorrista y la consiguiente pérdida de su capital. (…) Esta complejidad en el ámbito de la ciencia social tiene una inmediata consecuencia en el pensamiento jurídico penal: se hace extremamente difícil referenciar  el derecho penal con objetivos de política criminal, sin tener en cuenta esta abrumadora complejidad, por lo cual no es extraño que se opte dejar de lado”

2. Breve análise social dos crimes patrimoniais em geral

Os crimes patrimoniais no Brasil possuem grande relevância, pois afetam os mais diferentes níveis da sociedade. As discussões sobre este tipo de crime são extremamente variadas, e nesta esfera, a mídia provoca um imenso impacto, pois frequentemente divulga informações sobre os delitos patrimoniais, sobretudo sobre os mais graves, como a extorsão mediante sequestro e o latrocínio, cujos efeitos se propagam de maneira indiscriminada, gerando os mais diferentes tipos de medo generalizado e de repúdio. [4]

Todavia, ao revés do noticiado na mídia, a grande maioria dos crimes patrimoniais punidos com penas de reclusão não são tão graves, como é o caso de pequenos receptadores, estelionatários e ladrões, geralmente praticantes de pequenos furtos habituais. Neste sentido, quase sempre o valor dos objetos visados é irrisório, não excedendo a um salário-mínimo. Este temeroso quadro reflete a péssima condição socioeconômica brasileira, onde a pobreza atinge a imensa maioria da população. [5]

No que tange as estatísticas, a importância dos crimes patrimoniais dentro do estudo da criminalidade no Brasil é gigantesca. No ano de 2011[6] existiam 513.802 presos em todo o país, sendo que deste total, 69% (326.346 presos, ambos os sexos) respondiam por crimes descritos no Código Penal, e o restante, 31%, por delitos previstos em leis específicas (como o tráfico de drogas, por exemplo). Do montante de presos tipificados na forma do Código Penal, 70,5% (233.926 presos) respondiam por crimes patrimoniais, como o roubo, furto e a receptação.

Assim, o absurdo número de processos envolvendo delitos materiais em detrimento de outros crimes acarreta na demonstração de que o direito penal brasileiro é desigual e classista, pois este tipo de crime é quase sempre praticado por pessoas de classes sociais mais baixas. [7]

A realidade dos crimes patrimoniais no Brasil é compartilhada por respeitáveis doutrinadores como BITENCOURT[8], segundo o qual, vige no Brasil uma política criminal capitalista onde os crimes patrimoniais possuem maior importância do que os crimes contra a vida, e isto se torna visível na preocupação do atual sistema penal.

Outrossim, é notável que a evolução da sociedade trouxe uma série de benefícios e inovações ao mundo, onde os criminosos aproveitaram o embalo desta tendência na criação de um número infindável de crimes contra o patrimônio, utilizando tecnologia bancária de ponta e a própria internet. Porém, o cerne dos crimes contra o patrimônio continua sendo pura e simples “obtenção de vantagem indevida apreciada economicamente com prejuízo para a vítima” [9], ainda que a legislação penal não consiga acompanhar o vertiginoso crescimento destes crimes.

3. O furto, roubo e receptação de veículos

A título do que ocorre genericamente nos crimes contra o patrimônio, são estendidas ao roubo, ao furto e receptação de veículos as mesmas características sociais criminais, onde o aumento exponencial destes delitos se deve a fatores como a grande desigualdade social do país e o crescimento desordenado das metrópoles, havendo um estreito enlace entre estes fatores e suas consequências. [10]

Partido da premissa de que estes resultados se constituem a partir dos modelos anteriormente citados, este evidente nexo causal culmina na criação de um ambiente propício ao crime organizado, que dentro deste panorama utiliza táticas empresariais na gestão dos seus negócios ilícitos, o que culmina em uma grande profissionalização criminosa. [11]

Estando o roubo e o furto de veículos entre os principais componentes da criminalidade em massa que assola o Brasil, estes delitos movimentam uma série de crimes conexos e por vezes somatórios, eliminando uma idéia inicial de crime isolado ou até mesmo pontual. [12]

Ainda que a raiz do problema que envolve a criminalidade patrimonial seja social e política, o âmbito penal não pode ter uma visão parcial do direito, devendo igualmente tutelar pelo interesse da sociedade, onde próprio Supremo Tribunal Federal[13] posiciona-se no sentido de que a lei deve ser interpretada não somente com relação aos interesses do réu, como também em razão dos interesses da sociedade, lastreados pelos desejos de paz, tranquilidade e segurança social.

Deste modo, toda pessoa tem o direito primordial à segurança e à propriedade, imputando-se ao poder público a promoção e a proteção destes direitos, sobretudo como uma garantia da preservação da tranquilidade, da intimidade pessoal, do direito de ir e vir, e da integridade física, moral e psicológica [14]. Nesta seara, surge à questão da segurança pública, nada mais que um “remédio” utilizado pelo Estado para a correção das imperfeições criadas a partir da própria base social.

Tanto o roubo quanto o furto de um veículo trazem a tona uma questão conjuntural de segurança pública e de Direito Penal, de modo que tais crimes possuem modus operandi próprios e uma sequência de etapas, que indubitavelmente desafiam a sociedade como um todo, alarmada com as alarmantes estatísticas destes delitos. [15]

Nos crimes patrimoniais, a receptação é tida como um “pilar de sustentação“ de uma serie de crimes, como o próprio roubo ou furto. A receptação nada mais é que um delito decorrente de um crime anterior, cuja natureza parasitária cria a figura de um delito autônomo.[16] Ainda, fundamental mensurar que este crime engloba uma série de especializações criminosas distintas que vão muito além do receptáculo de veículos, formando uma indústria com diversos ramos e atividades. Uma delas é a compra e venda de armas e munições roubadas ou furtadas por receptadores especializados, artefatos estes, provenientes inclusive das forças armadas e policiais. O mesmo perdura com relação á peças de valor histórico, onde a receptação alimenta uma cadeia de ilicitudes que se inicia desde roubos em museus até furtos em antiquários, chegando às mãos de colecionadores pouco honestos que vendem tais mercadorias no mercado formal. [17]

Importante ressaltar que há a presença de receptadores inclusive em delitos de menor potencial lesivo, como na ação de punguistas e de pequenos fraudadores no comércio, que direcionam suas ações e produtos até o mercado intermediário que revende posteriormente. [18]

Por se tratar de um fenômeno marginalizado, a complexidade deste tipo de crime leva a uma maior dificuldade policial, seja na investigação ou no trabalho ostensivo e preventivo. Sendo este tipo de delito tratado um empreendimento pelos criminosos, a lógica leva a crer que haverá sempre uma queda da criminalidade aonde a assunção dos riscos vier a superar os ganhos. [19]

Não obstante, convém ressaltar que a simples ocorrência deste tipo de conduta alimenta uma extensa cadeia de crimes, pois dão suporte ao tráfico de drogas e de armas, além da própria lavagem de dinheiro. Igualmente, mister ressaltar a relação que perdura entre os crimes patrimoniais e a severa taxa de homicídios, pois dentro do espaço criminoso ocorrem diversas disputas entre quadrilhas ou por mercados, o que na regra, é resolvido através de mortes.[20]

Ainda, convém ressaltar o grande número de críticas, sobretudo no universo policial em face da nova lei de prisões (Lei n° 12.403/11), vigente deste julho de 2011. O fato é que tal lei surgiu para diminuir o número de prisões, excetuando-as cada vez mais através de regras mais flexíveis com delitos mais brandos, como é o caso dos delitos com penas máximas não superiores a 4 (quatro) anos. Cumpre salientar que a prisão preventiva é hoje uma exceção, sendo somente admitida quando ausente qualquer possibilidade de substituição desta por outra medida cautelar diversa da prisão, o que em tese cria embaraços na ordem de prisão de crimes como o furto e a receptação (cujas modalidades simples possuem penas máximas de quatro anos), sendo este diploma originário a partir de uma nova política criminal. [21]


[1] LEÃO, Maria do Carmo. A modernização da criminalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 45, 1set. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/937>. Acesso em: 15 out. 2012.

[2] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La globalización y las actuales orientaciones de la política criminal in: Pierangelli, José Enrique (coord.). Direito Criminal, Belo Horizonte: Del Rey, 2000. v.3, p. 15.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La globalización y las actuales orientaciones de la política criminal in: Pierangelli, José Enrique (coord.). Direito Criminal, Belo Horizonte: Del Rey, 2000. v.3, p. 18 – 20.

[4] SUCASAS, Willey Lopes. Crimes contra o patrimônio – uma proposta de política criminal. Boletim Ibccrim. São Paulo, 2003. n.125, p.6.

[5] FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo, Malheiros:2002, p.23.

[6] Extraído do site http://www.portal.mj.gov.br/data/Pages/MJC4D50EDBPTBRNN.htm

[7] GOMES, Luiz Flávio; BUNDUKY, Mariana Cury. Crimes contra o patrimônio são os principais responsáveis por prisões no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3143, 8fev. 2012. Disponível em: <http://www.jus.com.br/revista/texto/21037>. Acesso em: 14 out. 2012.

[8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Reflexões sobre o furto, roubo e receptação, segundo a IF-9426 de 1996. Boletim Ibccrim., São Paulo, 1997. n.53, p. 12.

[9] FERREIRA FILHO, Juvenal Marques. Investigação de crimes contra o patrimônio. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3120, 16 jan. 2012. Disponível em: <http://www.jus.com.br/revista/texto/20867>. Acesso em: 16 out. 2012.

[10] FERREIRA FILHO, Juvenal Marques. Investigação de crimes contra o patrimônio. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3120, 16 jan. 2012. Disponível em: <http://www.jus.com.br/revista/texto/20867>. Acesso em: 6 out. 2012

[11] FERREIRA FILHO, Juvenal Marques. Investigação de crimes contra o patrimônio. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3120, 16 jan. 2012. Disponível em: <http://www.jus.com.br/revista/texto/20867>. Acesso em: 6 out. 2012

[12] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.5.

[13] RHC 63.673-0-SP, DJU 20.06.1986, p.10.929.

[14] LEIRIA, Cláudio da Silva. Ligeiras observações sobre a im(p)unidade penal nos crimes contra o patrimônio. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 371, set. 2008, p.101.

[15] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.5 .

[16] FERREIRA FILHO, Juvenal Marques. Investigação de crimes contra o patrimônio. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3120, 16 jan. 2012. Disponível em: <http://www.jus.com.br/revista/texto/20867>. Acesso em: 6 out. 2012

[17] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – V. 2 – Parte Especial dos Crimes Contra a Pessoa a dos Crimes Contra o Patrimônio. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 492.

[18] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – V. 2 – Parte Especial dos Crimes Contra a Pessoa a dos Crimes Contra o Patrimônio. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 492.

[19] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.7.

[20] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.7.

[21] TREZZI, Humberto. Roubo de carros volta a atemorizar gaúchos. Zero Hora, Porto Alegre, 16 de setembro de 2012. p.5.