"Sabemos que a história da representação da figura humana se encontra atravessada pelo ato de conhecer o universo pelo próprio homem. Nesse sentido, ao revermos nossa história, nos vemos a identificar e compreender as diferentes configurações culturais, conformadas por percepções sociais, filosóficas, religiosas e científicas. Subjacente às manifestações expressivas de cada cultura, projetos imersos na consciência perceptiva que tais sujeitos produziram sobre o mundo, encontram-se as projeções do homem. Assim, ao se projetar, o homem se lança à aventura de conquistar o seu lugar no mundo." (Derdik, 1990)

Durante toda a nossa história, o corpo humano nunca deixou de ser uma encruzilhada de acontecimentos culturais e sociais, animais e psíquicos. O corpo é e sempre será um complexo de símbolos que vai além de si mesmo. Assim sendo, "a unidade efetiva das histórias era a figura humana" (BAXANDALL, 1972), seguramente existe sobre ela, um incontestável inventário reunido durante milênios, constituindo um valioso patrimônio à História da Arte.

O estudo de modelos que ainda é exercício obrigatório para a preparação de profissionais ou amadores cujo intento é representar figurativamente o ser humano, passou a ser tão valorizado na arte da concepção (Raisonné) no início do século XX, quanto à concretização da obra em si. Segundo Baxandall "toda figura desenhada tem o propósito de representar algo" , então se tornou comum, colocar à venda, séries de catálogos Raisonné de artistas famosos.

No período Renascentista, o estudo das proporções humanas, ainda segundo BAXANDALL, era bastante primário em relação às regras matemáticas já conhecidas pelos comerciantes. Como a regra de ouro, por exemplo.

O estudo do modelo humano enquanto disciplina fundamental à formação artística permanece com alto valor pedagógico e empreendedor para tais aptidões perceptivas .

Exemplo de um quadro de disciplinas atualmente lecionadas nos diversos cursos da EBA/UFRJ: (BAF205 - Modelo Vivo I - BAF301 - Modelo Vivo II -BAF103 - Desenho Anatômico I - BAF107 - Desenho Anatômico II).

Na Academia Francesa, o estudo do modelo vivo dava-se do geral para o particular. O aprendiz tinha como questão, a apreensão de todo o conjunto. Primeiramente fazia-se o esboço com as linhas principais a serem trabalhadas. Havia também o que hoje chamamos de ?pose de minuto?, exercício fundamental para uma compreensão rápida da figura posada. Esses alunos já traziam incutidos consigo o necessário ?ideal de beleza? dantes adquirido com o estudo das gravuras. BOIME cita que "[...] obviamente, antes da aparição e desenvolvimento da gravura, a única opção possível para os estudantes era a cópia dos desenhos de mestres, o que testemunham os tratados mais antigos, como o de Cenino Cennini [...]." Em seguida, os alunos dedicavam-se à cópia de modelos em gesso. Chamados de modelos tridimensionais. Depois então, passavam a copiar pinturas originais de alguns grandes mestres.

Na AIBA, o promotor desse legado foi Nicolas-Antoine Taunay, que desde 1834 ao ocupar o cargo de diretor da Academia, promoveu uma reorganização da sua estrutura de ensino. Baseando-se nos moldes da Academia Francesa, implantou aqui, as disciplinas de modelo vivo e as aulas de anatomia.

Os alunos daqui também eram iniciados estudando cópias de telas ou estampas vindas da Europa. Apesar da distância cultural existente entre os continentes, repito BAXANDALL:

[...] as capacidades de que somos mais conscientes não são aquelas que absorvemos, como todo mundo durante a infância, mas aquelas que aprendemos de modo formal, com esforço consciente: aquelas que nos têm sido ensinadas. [...]

Este primeiro momento era chamado de estudo de planos. O uso de gravuras tornou-se mais usual devido às dificuldades de se conseguir modelos originais. O M.D.J.VI guarda um grande acervo dessas gravuras, que ora serviram para formar o elenco conhecido no mundo cultural do país. Depois, os aprendizes se davam aos estudos de partes do corpo humano para logo em seguida começarem o desenho de corpos completos, conhecido como ?academias?. O estudo se completava com desenhos de moldes em gesso e até de cópias originais greco-romanos .

As aulas de Anatomia e Fisiologia das Paixões, que eram aulas teóricas e práticas imprescindíveis para o conhecimento dos ossos e músculos do corpo humano, eram aplicadas logo após os alunos terem feito a disciplina de Modelo Vivo e consistia em grande peso para a formação acadêmica dos matriculados nessa sessão. Sendo que, das aulas de Modelo Vivo somente poderiam participar alunos, artistas e professores designados pelo Corpo Acadêmico, com licença especial do Diretor.

Esta disciplina foi criada em 1831 e era ministrada na Academia Imperial de Belas Artes por médicos e obrigatória aos alunos de Arquitetura, Escultura, Pintura de Paisagem e Pintura Histórica. Cabia ao professor de Pintura ou Escultura escolher variados biótipos humanos para as aulas.

Só depois de finalizada tal etapa, ficava o aluno habilitado a cursar as disciplinas seguintes.

[...] não há maior difficuldade que a figura humana, e o artista que toma a si a responsabilidade de guiar os jovens artistas deverá continuamente observar que não se desviem d?esse fim: a figura humana [...]. (Bernardelli, 1890)

Em carta enviada ao aluno Vítor Meirelles, ganhador de um prêmio de viagem à França, Manuel de Araújo Pôrto-Alegre suscita que "estude o nu, estude anatomia, estude bem o desenho, e veja se toma Mr. Delaroche por mestre, que é hoje o pintor o mais filosófico e o mais estético que eu conheço. (...) estude anatomia e desenho, porque nossa escola está muito fraca no desenho.

Para a antiga academia classicista do início do século XIX, o bom desenho era fundamental e valia, além de exposições, prêmios em viagem. O estudo da observação da figura humana continuou com considerável importância no currículo dos cursos supracitados mesmo após as Reformas e o é até hoje nos cursos que ainda vigoram na atual Escola de Belas Artes.

O corpo é uma expressão representativa e sua apreensão através das formas desenhadas parece devolver-nos a certeza de que somos um. Mesmo nos fracionando em corpo e alma, em barro e luz, em carne e espírito, em eu e outro, etc.

SOBRE O EPÍTOME:


O "Epítome de anatomia relativa às bellas artes seguido de hum compêndio de physiologia das paixões e de algumas considerações geraes sobre as proporções com as divisões do corpo humano; offerecido aos alumnos da Imperial Academia das Bellas Artes do Rio de Janeiro" (M.D.J.VI nº. 0039) servia bem como manual completo da época sobre a anatomia e o estudo da fisionomia humana.

Escrito por Charles Lebrun, baseava-se nos principais tratados anatômicos aplicados na academia francesa desde o século XVII e foi traduzido em Português por Taunay em 1837, trazendo ?taboas de XI e XII? faz importantes e interessantes estudos sobre o movimento dos músculos nas paixões da alma no compêndio sobre o êxtase. "[...] he o grão máximo de admiração. Quando a este sentimento se une a veneração, e que o seu objecto meramente intellectual não ocupa senão o espírito, a cabeça se deita do lado esquerdo; as sobrancellas e a pupilla se dirigem directamente para cima; a boca fica meio aberta, com os seus cantos hum pouco elevados. O resto do semblante se conserva no estado natural [...]" . (LEBRUN, 1837, p.12)


Dividi-se em estudos sobre a Osteologia, da Miologia e da Filosofia das paixões. A primeira parte traz estudo sobre a Osteologia. Acompanha, em seguida, taboas sobre o esqueleto e depois sobre a miologia. Em seguida, o compêndio trata da Fisiologia das paixões e ainda, considerações gerais sobre o estudo das proporções do corpo humano. Segundo Elaine Dias "a obra é composta das principais teorias artísticas relacionadas à anatomia utilizadas na Académie Royale de Peinture et Sculpture no século XVII, embora haja uma pequena parte relativa ao século XIX advinda do dicionário de Millin, dando especial ênfase à questões das proporções"
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A aplicação por parte dos alunos desses subsídios teóricos e práticos lhes dava consistência na elaboração e moldagem de obras bi ou tridimensionais. Mostrando-se presentes na construção dos resultados plásticos e, capacitando-os, inclusive, no mais elevado gênero de feituras de peças de pleno vulto, formando também exímios avaliadores, professores e artistas.



Figura 2 Figura 3



Figura 4 Figura 5

Figura 6 Figura 7

Figura 8 Figura 9


A APLICAÇÃO NA ESCULTURA


O estudo do corpo humano é essencial para se formular uma obra escultórica visto que essa se apresenta com diversos ângulos a serem lapidados. Daí, a necessidade dos estudos de Modelo Vivo, Anatomia e Fisiologia das Paixões.

O escultor tem por obrigatoriedade, conhecer o mecanismo de funcionamento da anatomia humana. Haja visto que desde a Renascença, muitos artistas da época já mostraram interesse pelo estudo do corpo humano.

A aplicação na Escultura, do conhecimento anatômico e fisiológico dá-se mesmo em obras supostamente abstratas. Veja-se que no Construtivismo, mesmo tendo sido a escultura mudada em sua concepção de ser esculpida, inserindo-se nela, materiais diferentes dos tradicionais, inda assim a idéia de anatomia estará presente.

Apesar de todo esse pré-conceito sobre a estrutura escultórica figurativa, não é afastado o livre-arbítrio para a imaginação criadora. Ao contrário, o conhecimento das disciplinas permite aplicabilidades de conotações ?românticas? e até o uso de pulsões mais subjetivas, onde tal aprendizado nas aulas de Fisiologia das Paixões e Anatomia mostra-se presentes nessa construção, acarretando aos bons resultados plásticos. A figura ganha mais realidade física, fazendo-se "a adequação do movimento das circunstâncias mentais, como o desejo, a cólera, e a dor. Os movimentos e as atitudes devem estar de acordo com os acontecimentos da alma." (VINCI, Leonardo da)

Para marcar bem a caracterização de uma figura escultórica, prima-se em trabalhar bem o rosto a ser esculpido.

[...] É verdade que o rosto fornece indícios sobre a natureza dos homens, seus vícios e temperamentos. As linhas que separam as bochechas dos lábios e aquelas que marcam as narinas e circundam os olhos indicam claramente se o homem é alegre e ri com freqüência. Aqueles cujas faces só possuem algumas dessas marcas se entregam ao exercício do pensar. Aqueles cujas faces estão profundamente marcadas são brutos, irascíveis e irracionais. Aqueles que têm a fronte sulcada por linhas horizontais profundas são repletos de tristeza, seja ela secreta ou declarada.
Porém, sabe-se que este é um trabalho bastante complexo. Aí devem estar bem explícitos os códigos de expressão facial apreendidos nas aulas de Fisiologia e Anatomia. Tão importante quanto à boca, são os olhos. Neles deverá estar expressos toda subjetividade representada na escultura. (da Vinci)

Outro cunho fundamental escultórico são as mãos. Caso uma figura apareça envolta em vestimentas, ficará à mostra as mãos e o rosto. Concentrar-se-á, aí, nessas duas peças, toda a expressividade da figura esculpida.

Tão fundamental é para o escultor o aprendizado da representação da figura humana, que sem ela, os escorços característicos que dão às esculturas o movimento necessário e a sensação de tridimensionalidade, não poderiam ser aplicados.

Independente do tipo de representação, a escultura tem que representar quaisquer sentimentos com a mesma nobreza de expressão e adequação às formas subentendidas.

A estatuária romana deixa bem evidente ao observador, a retratação de um magistrado, um imperador ou um deus.

No século XIX era comum o procedimento do ?vazado?. Tal experimento era obtido através de um molde onde se submergia o corpo a ser esculpido em uma massa bem líquida que ia endurecendo lentamente. A difusão desta prática em alguns ateliês induziu a dúvidas quanto à legitimidade criadora de certos artistas, pois os escultores, que mesmo não usando de tal artifício conseguiam resultados bastante semelhantes, eram confundidos com os usuários desta prática fácil.