O Estatuto da Cidade, a propriedade e a função social

 

Heloína Lucas Miranda[1]

 

 

A propriedade como instituição jurídica sempre foi entendida como um direito, sua criação decorreu da necessidade de suprir um anseio econômico. E, como a instituição jurídica é afeta a mudanças sociais, a propriedade também precisou se adequar ao novo modelo de sociedade complexa, desse modo a autonomia da vontade foi superada pela necessidade de bem-estar social.

Isso implica dizer, que a noção de propriedade teve que se enquadrar a doutrina coletiva, os institutos passaram a ser vistos com o intuito de servir a coletividade, proporcionando a solidariedade e o bem comum. É neste momento que surge o problema, pois, o que se quer, é extrair da propriedade o exercício de uma função social, mas essa nada mais é do que um título repousado em um papel. O termo propriedade é apenas uma cártula, que confere ao seu titular o direito, melhor dizendo, a faculdade de usar, gozar, fruir e reivindicar a coisa, como também de não usar, não gozar e não fruir. Esta última prerrogativa, não coaduna com os interesses da comunidade, de tirar proveito econômico e dar destinação a res. Neste sentido, é possível concluir que a propriedade desgarrada da posse não exerce função social. A posse é o exercício de fato, do qual se extrai da coisa, por meio do uso e do trabalho as necessidades humanas mais básicas, como por exemplo, o direito de uso para habitação, o direito de colher e perceber os frutos, dentre outros.

É uma impropriedade afirmar que a propriedade exerce função social, a posse é quem executa primordialmente esta prerrogativa. As teorias para explicar a propriedade, adotadas tradicionalmente como a de Ihering e Savigny, não explicam está nova demanda social, nem sequer tratam a posse com toda a sua magnitude, dissociada da propriedade. Savigny exige o animus e o corpus domine, já Ihering pressupõe o agir como se dono fosse, o que resulta submissão da posse à propriedade. A função social foi pensada diante da teoria de Ihering, o problema dessa teoria é a utilidade e a variação desta perspectiva nos dias de hoje.

O indivíduo passa a ter que cumprir uma obrigação social perante o lugar que ocupa. Assim, só encontrará proteção na medida em que acatar estas determinações. A intensidade do trabalho social pressupõe estreita ligação com o trabalho individual empregado na sociedade, a lei assegura a proteção ao possuidor toda vez que destinar a coisa a proveito social, do contrario não haverá tutela por parte do Estado e, portanto, não recairá proteção.

O direito de propriedade, subentendido como o direito de possuir não é mais concebido como absoluto. A Carta Magna expressamente consignou em seu artigo 5, inciso XXIII – “a propriedade atenderá a sua função social”.

Neste contexto de fim social, a propriedade passa a ter uma obrigação, pois, o possuidor passa a ter que empenhar sua riqueza no que possui aumentando a interdependência social. Não lhe é mais faculdade querer ou não edificar na coisa.

No País em que vivemos, a grande preocupação consiste em contornar a falta de moradia e a hipossuficiência com a função social da propriedade. Neste sentido, a criação do Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257, de 2001 teve suma relevância, pois além dessa lei regulamentar os artigos 182 e 183 da Carta Maior que tratam da política urbana, o mesmo diploma legal trouxe em seu bojo inúmeras medidas destinadas a implementação da função social da propriedade como a modalidade da usucapião urbana coletiva; o parcelamento, edificação ou utilização compulsória; o IPTU progressivo no tempo e a concessão especial para fins de moradia.

O objetivo deste artigo esta pautado na análise da usucapião especial de imóvel urbano, também denominado usucapião coletivo, cuja previsão esta disposta nos artigos 10 e seguintes da Lei n. 10.251de 2001.  Na visão do sábio doutrinador Diógenes Gasparini o Estatuto da Cidade de destina:

Além de regulamentar os arts. 182 e 183 da Lei Maior, o Estatuto da Cidade tem por objetivo estabelecer diretrizes gerais da política urbana, que por sua vez, visa ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade ligadas à habitação, ao trabalho, à criação e à recreação, enquanto são funções sociais da propriedade as relacionadas ao uso e à ocupação do solo urbano. Daí, a primeira das diretrizes arroladas pelo art. 2. desse diploma legal: “...direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. (GASPARINI, 2002, p. 5).

 

Para alguns, o espírito do legislador foi regulamentar ou mesmo acabar com a crescente favelização do País. As construções desordenadas se proliferaram durantes anos diante da inércia do Estado. Este problema demonstra não só a flagrante desigualdade social que assola o Brasil, como a ineficiência do poder público no crescimento desordenado das cidades.

O Estatuto da Cidade trouxe a possibilidade de regulamentar e regularizar a situação irregular de inúmeras famílias, através desta Lei foi instituído a modalidade de usucapião coletiva para amenizar esse problema social, já que o Estado não consegue dar moradia digna para todas conforme determina a Constituição.

Desta feita, explicita o artigo 10 desta lei que “As áreas urbanas com mais de 250m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados), ocupados por população de baixa renda para a sua moradia, por 5 (cinco) anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.”

Os requisitos acima elencados pressupõem a posse mansa e pacifica dos possuidores por 5 anos ininterruptos e sem oposição; que as famílias estejam vivendo em situação de composse, ou seja, vivam em condomínio que haja a delimitação da área de cada um; os moradores devem ser pessoas com parcos recursos econômicos; os possuidores não podem ser proprietários de nenhum outro imóvel urbano ou rural.

Outra novidade trazida pela Lei é o sucessio possessionis, através deste  instituto o Estatuto da Cidade  permite que o sucessor some a sua posse a de seu antecessor para fins da contagem de tempo para a usucapião, que neste caso é de 5 anos.

A sentença que reconhecer a usucapião coletiva será levada a registro, pois funcionará como título para registro no cartório de  imóveis.

Na sentença o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno para cada possuidor, independente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estipulando o contrário.

Esta modalidade de usucapião não é vista com bons olhos por muitos, para alguns é inconstitucional, pois o animus domini não pode ser dividido. Todavia, como o escopo desta Lei é regular situações fáticas envolvendo pessoas de baixa renda, esta modalidade foi amplamente disseminada.

Uma peculiaridade do Estatuto é que a sentença que declarar a usucapião coletiva constituirá condomínio especial e invisível, cuja alteração esta condicionada a deliberações de 2/3 dos seus membros. Essa redação técnica não abarca a realidade das construções. Basta ver as edificações precárias das favelas para visualizar que elas não são regulares e não apresentam unidades padronizadas.

A administração do condomínio será tomada pela deliberação da maioria dos votos dos condôminos presentes, e as decisões vincularão os demais.

Quanto a parte processual, determina a Lei a intervenção obrigatória do Ministério Público no feito; os legitimados gozarão da assistência judiciária gratuita, inclusive não terão qualquer dispêndio para registrar a sentença no cartório do registro de imóveis; o rito utilizado para esta ação será o sumário.

O inovação trazida pela Lei n. 10.257 de 2001, e a arguição de usucapião em defesa ser reconhecida pela sentença, sem a necessidade de se ajuizar ação própria e específica.

 

 

 

Conclusão

O Estatuto da Cidade visa atender aos anseios da população carente de moradia digna, para tanto criou a modalidade da usucapião coletiva. O legislador buscou regularizar situações fáticas de construção desordenada concedendo à população de baixa renda a possibilidade de regularizar sua morada através do reconhecimento do domínio pela sentença declaratória. Criticas a parte, inúmeras famílias foram e serão beneficiadas por essa medida. Enquanto o governo não se manifesta no sentido de melhor distribuir a renda da sua população, instrumentos como estes são primordiais para promover a inserção social daqueles menos abastados, e evitar a inflação da cártula imobiliária, pela coerção da especulação.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA:

BESSONE, Darcy. Direitos Reais. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

DUGUIT, Léon. Las transformaciones Del derecho (público y privado). Buenos Aires: Editora Heliasta S.R.L. (Tradução de Adolfo g. Posada e Ramón Jaén).

FARIAS, Cristiano Chaves, ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6ª Ed. 2ª Tiragem. São Paulo, Editora Lúmen Júris. 2010.

GASPARINI, Diongenes. O Estatuto da Cidade. – São Paulo: Editora NDJ, 2002.

 

 

 


[1] Graduanda  do 10º Período do Curso de Direito.