Por César Francisco Raymundo*
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...Como os primeiros cristãos encararam a questão do estado intermediário entre a morte e a ressurreição final? Alguns afirmam que somente “desde o tempo de Agostinho, os teólogos cristãos pensavam que, entre a morte e a ressurreição, as almas dos homens desfrutavam do descanso ou sofriam enquanto esperavam ou pela complementação de sua salvação, ou pela consumação de sua condenação”.[1]

.. Também no tempo antes de Santo Agostinho “nos primeiros anos da igreja cristã pouco se pensou num estado intermediário. A idéia de que Jesus voltaria como juiz fazia o intervalo parecer pouco importante. O problema surgiu quando se evidenciou que Jesus não voltaria imediatamente”.[2]

...Será que os primeiros cristãos pensaram pouco acerca do estado intermediário porque achavam mesmo que Jesus voltaria logo? Ou será que era porque essas verdades já estavam certas em suas mentes? Se Santo Agotinho sistematizou e creu no estado intermediário, bem depois dos primeiros pais da igreja, porque deveríamos crer em tal doutrina? Uma coisa é crer na sobrevivência da alma após a morte, e outra é crer na teoria platônica da imortalidade da alma como se fosse esta a sorte final dos cristãos. E essa 
“teoria platônica da imortalidade da alma deixa certas marcas mais profundas na obra de Orígenes (c. 185-253). A partir de então, através do contato com a filosofia platônica em Orígenes e, mais tarde, em Agostinho (c. 354-430), doutrinas como esta foram sendo plasmadas na mente dos crentes em geral, de modo que diz Oscar Cullmann: “Se hoje perguntarmos a um cristão, seja protestante ou católico, intelectual ou não, o que diz o Novo Testamento sobre a sorte individual do homem depois da morte, com poucas exceções a resposta será: ‘a imortalidade da alma’. Nessa forma esta opinião representa um dos maiores equívocos do Cristianismo”.[3]

Os Pais da Igreja e o Estado Intermediário


...“A crença na existência de uma vida após a morte é atestada desde a Idade da Pedra pelas práticas funerárias em culturas primitivas. Todavia, foi apenas nos séculos VI e V a.C. que tanto judeus como gregos cristalizaram suas crenças na vida após a morte, que legaram ao cristianismo, bem como a toda cultura ocidental (Cf. PANNENBERG, Systematische Theologie – Vol. 3, p. 556).

...No cristianismo primitivo, esta crença teve algumas nuanças de significado no pensamento dos diferentes teólogos. O apóstolo Paulo e Clemente de Roma (que foi citado pelo apóstolo em Fp 4.3 e viveu no fim da era apostólica, c. 96) referem-se apenas à idéia de ressurreição da vida. Justino, o Mártir, (c. 110-165) fala da ressurreição da vida para salvação ou para julgamento. Ireneu (c. 115-200) e Tertuliano (c. 160-220) ensinaram que a alma é imortal. Todavia, Clemente de Alexandria (c. 160-220) defendia que apenas o Espírito Santo poderia imortalizar a alma dos seres humanos”.[4]

.. Agora, observe o que um dos pais da igreja, Inácio de Antioquia (68–107 d.C) escreveu a Policarpo (69 d.C – 155 d.C), dizendo:

...“Uma vez que a Igreja de Antioquia da Síria está em paz, como fui informado, graças à vossa oração, fiquei mais confiante na serenidade de Deus, se com o sofrimento eu o alcançar, para ser encontrado na ressurreição como vosso discípulo” (Carta de Inácio a Policarpo, 7:1 - 0 grifo é meu).

...Próximo da morte, Inácio, bispo da cidade de Antioquia, escreveu a Policarpo que, caso viesse a morrer, desejava encontrá-lo no dia da ressurreição final. Ora, observe que não há preocupação alguma em se encontrar no céu em um estado intermediário entre a morte e a ressurreição.

...Eles falavam abertamente que a esperança era o encontro no dia da ressurreição - sem tentar dar explicações sobre o período intermediário.

.. 
Veja outro exemplo de Inácio:

...“Fora dele [Jesus], nada tenha valor para vós. Eu carrego as correntes por causa dele. São as pérolas espirituais com as quais eu gostaria que me fosse dado ressuscitar, graças à vossa oração. Desta desejo sempre participar para me encontrar na herança dos cristãos de Éfeso, que estão sempre unidos aos apóstolos pela força de Jesus Cristo” (Inácio aos Efésios, 11:2 - o grifo é meu)

...Observe como Inácio expressa o seu desejo de ser “contato com o grupo dos
cristãos de Éfeso”
 (ibid), mas afirma expressamente qual seria o momento em que isso aconteceria: no dia da ressurreição! 

...“Inácio escreve que gostaria que “me fosse dado ressuscitar”. Para que? Para“me encontrar na herança dos cristãos de Éfeso”; ou, como dizem outros manuscritos do mesmo verso, para “ser contado com o grupo dos cristãos de Éfeso”.[5]

.. 
“Inácio, também chamado Teóforo, àquela que é amada de Deus, o Pai de Jesus Cristo, à Igreja santa que está em Trália, na Ásia, eleita e digna de Deus, vivendo física e espiritualmente na paz, por meio da paixão de Jesus Cristo, nossa esperança de ressuscitar para ele. Eu a saúdo, em toda a plenitude, à maneira dos apóstolos, e lhe desejo a maior alegria” (Saudações de Inácio aos Tralianos - o grifo é meu)

...“Se o aguardarmos neste mundo, ele nos dará em troca o tempo futuro, pois ele nos prometeu ressuscitar-nos dentre os mortos, e, se a nossa conduta for digna dele, também reinaremos com ele, se tivermos fé” (Policarpo aos Filipenses, 5:2 - o grifo é meu)

...“Eles têm os mandamentos do mesmo Senhor Jesus Cristo gravados em seus corações, e os guardam, esperando a ressurreição dos mortos e a vida do século futuro” (Apologia de Aristides, 15:3 - o grifo é meu)

...Melitão, bispo de Sardes (†177), diz:

...“Eu vos conduzirei para as alturas, vos ressuscitarei e vos mostrarei o Pai que está nos céus; eu vos levantarei com a minha mão direita” (Homília sobre a Páscoa)

...Para finalizar, cito Clemente que escreveu que, “ainda que vocês tenham que sofrer aflição durante um tempo breve no mundo, recolherão o fruto imortal da ressurreição” (2Clemente, XIX - o grifo é meu).

...Diante destas declarações, qual é a maior esperança cristã? Viver no céu como espírito desencarnado ou a ressurreição dos mortos? Se não fosse a ressurreição dos mortos, nossa esperança seria a existência fora do corpo ou como erroneamente alguns chamam de “imortalidade da alma”!

...Podemos notar que os pais da igreja criam que primeiro acontece a ressurreição dos mortos – que é a esperança dos cristãos - para, depois, a vida do século futuro que é a vida eterna. E assim, o momento de ver Deus é associado a depois da ressurreição, não antes!

.. Os primeiros pais da igreja criam que era na ressurreição que se encontrariam com amigos, discípulos e irmãos de todas as eras. Pelo visto não era a idéia de se encontrararem como almas desencarnadas no estado intermediário, mas, sim, uma firme convicção de que é por meio da ressurreição que nós ganhamos vida novamente para revermos uns aos outros.

...Assim sendo, os apóstolos, e posteriormente os primeiros pais da igreja cristã parecem não ter se preocupado com o chamado estado intermediário, e muito menos tentaram explicar como é possível partir desta vida e se encontrar num futuro distante, no dia da ressurreição. 

...O problema posterior a Santo Agostinho é que os teólogos exigem uma lógica, ou seja, se Jesus virá daqui alguns milhares de anos, então os mortos devem estar esperando a ressurreição em um estado intermediário. Esta lógica humana nega a grande variabilidade do tempo no mundo físico e também a grande diferença entre o tempo terreno e tempo no mundo espiritual. 

...Talvez, por acharem que existe um tempo universal em todo o Universo - inclusive no céu - os teólogos pensam que necessariamente os mortos têm que estar esperando cada segundo, minuto, hora e ano até a ressurreição, tal qual como nós. Em se tratando do mundo espiritual, mundo do qual se diz que não existe espaço, o tempo seria a coisa menos importante ali.

Os Reformadores


...Os Reformadores rejeitaram a doutrina do purgatório, “por ser antibíblica, mas continuaram a defender um estado intermediário, embora Calvino – mais do que Lutero – tendia a considerar esse estado como de uma existência consciente. Em sua obra Psychopannychia – uma resposta aos anabatistas de seu tempo, que ensinavam que as almas simplesmente dormiam entre a morte e a ressurreição – Calvino ensinou que, para os crentes, o estado intermediário é tanto de bênção como de expectação – e por causa disso a benção é provisória e incompleta. 

...
Desde aquele tempo, a doutrina do estado intermediário tem sido ensinada pelos teólogos da Reforma, e se reflete nas Confissões da Reforma. E, mais que isto, a posição das igrejas reformadas é de que as almas dos crentes, imediatamente após a morte, ingressam nas glórias dos céus”.[6]

.. Ficou claro até agora que desde o tempo de Agostinho - e posteriormente a Reforma - a doutrina do estado intermediario tem sido ensinada. Mais uma vez isto reflete que esta doutrina pós-agostiniana tem sido ensinada e ignorada pelos
primeiros cristãos. 

.. No caso do reformador Martinho Lutero, ele é o que mais se aproxima do que tenho defendido em vários artigos. Segundo Paul Althaus, “Lutero via na palavra proferida por Deus, seja em graça ou em juízo, a eternidade do ser humano. Não seria uma alma, mas o ser integral, como um todo que está vivo para Deus, apesar de morto. No entanto, Lutero não explica como isso seria possível ao comentar sobre Jesus e a ressurreição (Mt 22) - “Deus não é o Deus de mortos, mas de vivos”. A imortalidade, para Lutero, não está na alma humana, mas na palavra dita por Deus. Lutero fazia o seguinte silogismo: “Se Deus se apresenta a você como seu Deus, então você está vivo para Deus, mesmo quando você está morto”.

.. Althaus continua [dizendo que] de acordo com Lutero, isso se aplica como verdade para todo o homem – mesmo que Deus não fale com ele em graça, mas "em ira". Não há base alguma para um homem afastar-se, ou fugir da sua relação com Deus pela morte do seu corpo. O fato de que Deus falou com ele continua a ser o seu destino inevitável.

.. E, na mesma direção, Oswald Bayer assegura que para Lutero a relação com Deus não é interrompida com a morte, antes “essa relação espera tão-somente a continuidade do agir e falar de Deus.” Logo, a imortalidade da alma não se daria como um ente à parte do corpo, mas guardada na palavra pronunciada de Deus.

...[...]

.. Diferente de Calvino [...], o pensamento de Lutero sobre a vida após a morte é afetado por uma antropologia mais integral. A tensão entre corpo e alma, desta vida e do porvir, para Lutero, ao que parece, se dá mais dentro de uma perspectiva escatológica. Segundo Pieper, Lutero fala mais cautelosamente do estado da alma entre a morte e a ressurreição do que [...] os teólogos posteriores que transferiram algumas coisas para o estado entre a morte e a ressurreição que pode ser dito com certeza apenas do estado após a ressurreição . 
...Assim também, nessa mesma linha vê Rieth,

...
Assim, [Lutero] não se incomoda com o fato de Paulo falar da vida com Cristo logo após a morte e, paradoxalmente, abordar a ressurreição futura em face do juízo final. Lutero não busca uma solução sistemática dessas diferenças e evita todo e qualquer arrazoado que conduza à especulação grosseira [...] Sustenta que toda e qualquer consideração sobre um estado intermediário entre morte e ressurreição desvia-se do centro da questão, pois pressupõe uma noção de tempo empiricamente percebida, que é totalmente diversa do tempo de Deus [...] Por isso, Lutero prefere falar em “sono da morte”, ao invés de um “estado intermediário”.[7]

 

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* César Francisco Raymundo é editor da Revista Cristã Última Chamada.
Site: www.revistacrista.org 
E-mail: [email protected]

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Notas:

1. Artigo: O Estado Intermediário dos Mortos. Autor: Marcos Panagio. Site: www.ecristianismo.com.br ..................Acessado dia 08 de janeiro de 2013

2. Idem nº 1.

3. Artigo: Imortalidade da Alma ou Ressurreição da Vida? Autor: José Luiz Martins
Carvalho citando (CULMANN, Imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos, p.
17). Site: www.teologiahoje.blog.com Data: Acessado em 07 de Abril de 2013.

4. Artigo: Imortalidade da Alma ou Ressurreição da Vida? Autor: José Luiz Martins
Carvalho. Site: www.teologiahoje.blog.com .....Acessado em 07 de Abril de 2013.

5. Site: www.apologiacrista.com/index.php?pagina=1086782293

6. Artigo: Reflexões Sobre a Existência Humana: Estado Intermediário. Autor: Nanny & Winston. Site: http://www.decoracaoacoracao.com.br/2012/04/reflexoes-sobre-aexistencia-humana-estado-intermediario/
Acessado em 03 de Maio de 2013

7. Artigo: Lutero, a morte e o Post Mortem: Ars moriendi protestante - uma breve introdução. Autor: GRIMM, Charles. 1 Texto originalmente publicado na revista iProdigo em que o tema da publicação foi “Morte e Vida”. GRIMM, Charles. “Lutero, a Morte e o Post Mortem: ars moriendi protestante - uma breve introdução”. Revista iPródigo, No 2 (2012), p. 50-57.