Colocar um passarinho que poderia estar na natureza em uma gaiola é uma demonstração de desrespeito com o animal, com as pessoas que gostam dos animais livres e com a natureza onde ele deveria desempenhar o seu papel ecológico. Entretanto, indignar-se ao saber que há milhões de pássaros no Brasil nesta situação é o pouco que a Lei lhe permitirá, isso por que a ela criou a figura distorcida do criador amadorista de passeriformes cuja má interpretação tem permitido que os descendentes de animais condenados na mesma situação assim se mantivessem.

A criação amadorista de passeriformes tem sua origem histórica com a edição da Lei nº 5.197/67 que determinou que os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais fossem propriedades do Estado, sendo, portanto proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.


De tal forma, a partir de 1967, a captura de animais na natureza e sua conseqüente manutenção em cativeiro passou a ser considerado crime. No entanto, ainda havia a questão do que fazer com os animais silvestres que antes de 1967 haviam sido capturados e eram mantidos nas residências. 


Considerando que a Lei somente pode retroagir em favor do réu (art. 5º XL da Constituição Federal), as pessoas que os detinham sob sua guarda não poderiam ser penalizadas pela nova Lei. Precisava-se, entretanto, diferenciar estes casos de novos atos de captura e, em 1972 o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) editou a Portaria n° 3.175 determinando que aqueles que mantinham criadouro de aves, pássaros e animais da fauna de origem indígena, bem como aquelas que se dedicassem, sem objetivo comercial, a criação de aves, deveriam se registrar no IBDF e obter concessão de registro. Começa aqui a criação amadorista de animais silvestres da fauna nativa. Para se ter o registro, esta ave deveria ser anilhada. A anilha é um anel que colocada na ave quando filhote mantem se presa à pata quando o animal cresce. Todavia, ao editar esta Portaria o IBDF cometeu um erro jurídico quando determinou que os pássaros pudessem doravante continuar cativos, assim como os filhotes que viessem a ter. 


Assim, considerando que os passarinhos não constituem sujeitos de direito, e sim seus donos, apenas estes poderiam ser agraciados com a irretroatividade da Lei. Desta forma, a correta interpretação da lei deveria ser: enquanto perdurar a vida das pessoas que na data da entrada em vigor da Lei n° 5.197/67 possuíssem passarinhos, estas teriam o direito de ter estes animais, bem como as crias destes. Sendo este direito intransferível.


Desse modo, com o passar do tempo, o número de animais cativos oriundos desta situação deveria diminuir. Mas a errônea interpretação da Lei, desde 1972, tem permitido a transferência destes animais e o ingresso de novos criadores. Isto contraria, inclusive, outro dispositivo da Lei n° 5.197/67 que concerne aos criadouros comerciais a única forma pela qual, após 1967, uma pessoa poderia adquirir espécimes da fauna silvestre nativa. 


Em 2001 o Ibama passou a controlar a atividade. Este controle foi retomado por meio de um recadastramento em um sistema informatizado, o Sispass. Porém, o Ibama manteve o erro jurídico do IBDF e autorizou (inclusive via internet) a entrada de novos criadores. Como consequência, de 1972 a 2002, quando houve o recadastramento, foram contabilizados 70.970 criadores amadoristas de Passeriformes, e de 2003 até dezembro de 2005, com a atuação do IBAMA, 108.453 novos criadores se registraram. Fato, no mínimo curioso, pois em 30 anos existiram cerca de 70.000 criadores e em apenas três anos ocorreu um aumento que ultrapassou 100%. Tal fato se torna ainda mais preocupante pelo fato de várias unidades do Ibama constatarem que diversos novos criadores se tratam, na verdade, de “laranjas”. O Estado possui ainda outras informações que lhe dizem que as interpretações legais estão caminhando no sentido de facilitar o tráfico, e não coibi-lo. Veja, a criação comercial objetivaria substituir os animais do tráfico por aqueles legalizados, portanto, qual seria o interesse dos criadores em espécies comuns? Pois justamente, um estudo de Nicácio, em 2005, mostrou que as espécies mais criadas pelos criadores amadoristas são justamente as mais traficadas. Ao se considerar que a atividade estava regulamentada desde 1972 e que não havia e ainda não existem empecilhos ao ingresso de novos criadores é curioso que o tráfico ainda incida sobre as mesmas espécies que são criadas e podem, portanto, ser adquiridas de forma legal. Mais de 40 anos se passaram. Não deveria a pressão do tráfico sobre as espécies mais criadas ter diminuído?


Outra questão problemática com o segmento se refere à venda de anilhas, na verdade registros, pela internet. Este ilícito funciona da seguinte forma: quando ocorreu o recadastramento alguns criadores informaram a existência de pássaros e suas respectivas anilhas, porém os animais não existiam. Assim, estas supostas anilhas foram cadastradas no sistema e hoje são comercializadas ilegalmente pela internet objetivando regularizar aqueles animais capturados na natureza. As anilhas ou registros que possuem maior valor são aquelas que à época foram feitas pelos clubes e federações, pois as entregues pelo Ibama seguem um padrão mais rígido quanto ao diâmetro interno, o que dificulta o anilhamento de pássaros adultos capturados na natureza. Rigidez esta, porém, amolecida no torno de fundos de quintal. Porém, se não for possível falsificar a anilha ou se não for possível passá-la pela pata da ave, há outro método: passarinheiros quebram as falanges da ave para colocar anilhas em pássaros adultos retirados da natureza. Tais ocorrências são extremamente comuns nas apreensões do Ibama e de conhecimento generalizado entre os criadores. 


Uma abordagem do vulto das negociações praticadas foi observada em inúmeros fóruns de discussão da internet, por exemplo, o hoje suspenso sitiado em http://inforum.insite.com.br/1905/forum=1905&limit=0&max_msg=28&sort= . Nele foram localizadas, até a data de 12 de janeiro de 2007, 1006 mensagens relacionadas a compra e venda de anilhas, e no site http://inforum.insite.com.br/4108/, outras 503 mensagens envolvendo troca e venda de aves por particulares, venda de anilhas do Ibama, venda de registros de aves que já morreram, contatos com caçadores de aves e demais negociações criminosas que envolvem criadores amadoristas.


A sociedade, por outro lado, tem cobrado maiores esforços da fiscalização. O número de denúncias feitas ao Linha Verde, o sistema de denúncias do IBAMA, em 2006 envolvendo fauna corresponderam a cerca de 45% de todas as denúncias do Ibama, e deste percentual, aquelas envolvendo cativeiro de fauna representaram 64,2% (2.062). Esses números tem se mantidos ao longo dos anos. 


Por outro lado, a resposta do Estado é inversamente proporcional. Além de sambar sob o entendimento legal que poderia coibir o tráfico, a verba destinada ao combate a este crime está muito aquém do necessário. Em 2004, 500 mil reais foram destinados ao IBAMA com rubrica para a fiscalização de assuntos relacionados à fauna. Então diminuída para 395 mil reais em 2005 e para 150 mil reais em 2006. Um levantamento da Divisão de Fiscalização da Fauna da Coordenação Geral de Fiscalização/DIPRO precisou ser necessário recursos da ordem de R$ 2.800.000,00 apenas para o atendimento ao básico das demandas relacionadas à fauna no Brasil. 


Medidas alternativas poderiam ter sido tomadas. Entre elas a adoção de anilhas eletrônicas não falsificáveis para pássaros. Estas possuem sistema eletrônico de identificação, não podendo ser limadas, alargadas ou adulteradas, e permitem o registro de diversas informações sobre a ave. Outro método de controle poderia ter sido a adoção de um sistema “Delivery”de entrega de anilhas, pela qual um agente do IBAMA visitaria a propriedade do interessado em receber anilhas das aves silvestres nascidas em cativeiro confirmando a existência dos filhotes. 


Por fim, se de fato o Estado quisesse acabar com o tráfico de animais neste país, começaria alterando o Art. 29 da Lei n° 9.605 de 1998 que não distingue criadores, traficantes nacionais e traficantes internacionais. Para que as ações de fiscalização sejam eficientes é imprescindível que a legislação diferencie os criminosos, atribuindo àqueles cujas evidências apontam como traficante, penas de prisão de no mínimo 3 anos. Seria importante também que, com base na ausência de respaldo legal para registros dos criadores amadoristas, que eles fossem interrompidos, e por último, um aumento significativo dos recursos destinados à proteção aos animais.


Por hora, a resposta a nível Federal do Estado é medíocre. Se antes ele era incapaz de atuar, agora nem sequer recebe as denúncias. Com o advento da Lei Complementar 140/07 a federação passou a repassar, ou melhor, indicar ao cidadão que faça a denúncia junto ao órgão Estadual ou Municipal. Estes, por sua vez, descalçados de recursos, de legislação e incapazes de atuar em uma atividade cuja abrangência é federal assistem o tráfico sem assistir ao cidadão.