INDISCIPLINA E VIOLÊNCIA

Todos os dias vemos tanto em noticiários quanto com nossos próprios olhos, cada vez mais crianças e jovens entrando para o mundo do crime, da violência e das drogas. Apesar da violência e da indisciplina serem universais e sempre terem existido, o que preocupa agora é que, nas últimas décadas, elas passaram a se manifestar fortemente nas escolas. Seja entre alunos, funcionários ou professores, a violência está sempre presente nas escolas e se expande através de  várias formas e níveis de gravidade. Na verdade, essa questão da indisciplina constituí-se preocupação já em outras épocas. Santo Agostinho em suas confissões testemunhou que na sua vida de professor era amargurado pela indisciplina dos seus jovens discípulos que perturbavam a ordem estabelecida. Tanto na literatura, como nos filmes e peças teatrais verifica-se a indisciplina como elemento importante na descrição da vida do jovem e do seu percurso de desenvolvimento escolar.

A indisciplina no ambiente escolar pode ocorrer, segundo Aquino (2005), de diversas maneiras, como: atraso do aluno na entrada aula, atraso no retorno à aula depois do intervalo, excesso de faltas, desinteresse, agressões físicas e verbais dirigidas ao professor ou aos colegas, ausência do material de aula, dormir em aula, entre outros. O aluno que apresenta estes comportamentos é considerado indisciplinado e transgressor. A própria constituição física ou intelectual do aluno pode provocar comportamentos indisciplinados. A imaturidade, a vadiagem, a desatenção, a incapacidade de fixação, o baixo rendimento escolar, a agressividade devem ser pesquisadas como sintomas de distúrbios mais profundos (quer fisiológicos, quer emocionais), que é preciso tratar, sem o qual as repressões serão totalmente ineficazes e até contraproducentes.

Aquino (1996) define aluno indisciplinado como aquele que não tem limites, que não se interessa pela opinião e sentimentos dos outros, que possui dificuldades em entender o ponto de vista alheio, que não compartilha, não dialoga e tão pouco coopera com seus pares. A indisciplina é descrita como uma atitude de desrespeito, intolerância e intransigência ao cumprimento de regras capazes de pautar a forma de agir de um indivíduo ou grupo. Nesses casos, falta no aluno uma compreensão a respeito dos limites existentes, tanto no seu sentido negativo, ou seja, do que não pode ser feito ou ultrapassado, como do seu sentido positivo de dar consciência da posição ocupada dentro de um espaço social (família, escola, sociedade).

Segundo Blomart (2002) a escola pode vivenciar a indisciplina dos seus alunos das mais variadas formas como, por exemplo: ruído permanente, rudeza, recusa para realizar tarefas, hostilidade, zombaria e passividade. Estes comportamentos agressivos acabam por prejudicar o ambiente de sala de aula o que acarreta no desgaste físico e emocional dos professores. O autor cita alguns fatores que podem contribuir com o aumento da indisciplina na escola, entre eles estão: características de cada nível etário; falta de interesse pelas matérias lecionadas; dificuldade em acompanhar as matérias dadas na aula, por falta de bases ou por dificuldades de aprendizagem; excessiva permissividade ou demasiado autoritarismo por parte do professor; aulas pouco motivadoras; dificuldades de relacionamento professor/alunos ou alunos/alunos; turmas muito grandes. Muitas vezes os motivos da indisciplina podem ser extrínsecos à aula, e por isso também deve ser considerado a situação social quando envolve desemprego, pobreza, desigualdade social; a insegurança dentro da família quando há conflitos, separações, abandono, carências, até mesmo excessiva proteção dos pais; a influencia de ídolos violentos; a estrutura da escola quando há ambientes pouco acolhedores, disciplina rígida, elitismo e conflitos internos entre o corpo docente; os fatores ambientais como a insegurança nas ruas, moradias de baixa qualidade, áreas de risco; os problemas e distúrbios emocionais do próprio aluno; e por último, a introdução do uso de drogas no ambiente escolar que aumentou significativamente a violência, tanto entre os próprios alunos como entre os alunos e o corpo docente. Nestes casos o professor pouco pode fazer. O aluno traz para a aula os valores e atitudes que foi apreendendo até aquele momento. A indisciplina pode ser um reflexo da ausência de condições para uma adequada educação familiar. Ou mesmo, pode surgir como a outra alternativa ao seu insucesso escolar, procurando deste modo "valorizar" a sua relação com os outros. Este insucesso não se refere exclusivamente às classificações nas disciplinas, mas também em certos valores que o aluno não vê refletido nele (Blomart, 2002).

Seja qual for o motivo causador da indisciplina do aluno, ela normalmente é encarada como uma resposta desafiadora à autoridade do professor. O aluno contesta porque não está de acordo com as exigências do professor, com os valores que ele pretende impor, com os seus critérios de avaliação, a sua parcialidade. Nesse momento podemos afirmar que existe, entre o professor e o aluno, uma relação desequilibrada.

Buscando lançar um olhar psicológico sobre a questão da indisciplina, percebemos que esta está associada à idéia de uma carência psíquica do aluno. Entretanto, esse fenômeno deve ser pensado como um estado psicossocial cujas raízes encontram-se no advento da noção de autoridade. Ademais, o reconhecimento da autoridade externa pressupõe uma infra-estrutura psicológica, ou poderíamos chamar de moral, anterior à escolarização.Nesse sentido, a estruturação escolar não poderá ser pensada apartada da familiar. Pois, na realidade, elas são as duas instituições responsáveis pelo que se denomina educação (Aquino, 1996, p. 45).

Oliver (2000) propõe que procuremos entender a violência como uma forma de expressão e comunicação da criança e que é preferível considerá-la como algo inerente às relações sociais ao invés de negá-la. Para ele, a violência pode manifestar-se nas mais variadas circunstâncias: reação à violência sofrida, como resposta a um estresse ou a uma frustração e como desejo de impor-se. Para que a criança passe a administrar e controlar a complexidade das relações violentas é preciso que as mesmas percebam e reconheçam as conseqüências dos atos violentos, ou seja, do perigo que eles podem representar para si mesma e para o outro.

Entretanto, vale analisar a questão por outro ângulo: muitas escolas de hoje em dia estão mais preocupadas em moralizar a infância e produzir uma criança ideal. Psicanalistas atendem a queixa escolar com a realização de psicodiagnósticos, psicoterapias, tratando a criança como se nela houvesse uma doença ou um problema e excluindo as reflexões que podemos fazer sobre indisciplina e práticas escolares. O imprevisto, o ato indisciplinado, é visto como um desvio em relação à norma. Os psicólogos por sua vez, tentando normalizar o processo pedagógico, criam um espaço moral no registro do imaginário e estreitam o registro do simbólico. Para isso, acabam abrindo mão do discurso escolar hegemônico, ou seja, abdicar do desejo de formar um aluno ideal e reinventar o cotidiano escolar (Freller, 2001, p. 28).

É valido salientar que apesar dos mecanismos de reprodução social e cultural, as escolas produzem sua própria violência e sua própria indisciplina. A escola, como qualquer instituição, está pautada na idéia de que todas as pessoas sejam iguais. Dessa forma, ao desconsiderar as diferenças, a escola acaba tendo que lidar com formas de resistência de alunos que não se submetem as imposições de normas que regulam modos de agir e ser de cada um, o que acarreta em uma reação que culmina na indisciplina e na violência (Aquino, 1996).

Para Cintia Freller (2001) a escola exige dos seus alunos a sublimação ou inibição de muito de seus instintos agressivos. Para se relacionar com os colegas e professores, o aluno precisa aceitar as regras. Alem dos impulsos agressivos inatos dirigidos à escola, mais agressividade é produzida com a repressão e frustração dos primeiros instintos. A agressividade é vista então como algo que compromete e ameaça o funcionamento da instituição escolar, assim como o processo de ensino e aprendizagem. O papel dos educadores é o de preservar essa organização fazendo valer a lei, mesmo que, em algumas situações, tenham de recorrer à prática violenta contra os alunos. Assim a agressividade dos alunos expressa pela indisciplina deve ser reprimida, desviada para outros fins. Para então se defender e fazer valer suas regras, a escola utiliza-se de mecanismos para controlar os instintos em sua finalidade, oferece meios substitutivos de satisfação e vale-se do superego do aluno.

Ao mesmo tempo em que a escola exige do aluno cumprimento de normas determinadas e aparece como ambiente de conflitos, seja entre os próprios alunos, ou entre eles e os professores, Cenpec & Litteris (2001), afirmam que também um lugar desejado pois é onde eles podem conviver com os amigos. Esta visão ambígua está presente no dia-a-dia das escolas e eu pude notar durante o curso do meu estágio no Colégio Estadual Piratini com relatos de alunos que mesmo tendo conflitos com alguns professores ou colegas, não querem deixar o colégio por causa de suas amizades.

De acordo com Corti & Souza (2004) existe uma distância entre o mundo escolar e o mundo juvenil, que são as vivencias do jovem fora do ambiente escolar, ocorrendo assim uma dificuldade de comunicação entre estes dois mundos e ocasionando um enfraquecimento do papel educativo da escola, que acaba tendo que competir com a mídia e a sociedade. Isto pode gerar no colégio uma reprodução dos valores deturpados de nossa sociedade, ocasionando assim comportamentos inadequados e baixo desempenho escolar dos estudantes, pois o jovem não é visto pela escola.

Dubet (1998, apud Aquino 2005) sugere que a escola não deve mais ser tomada como uma instituição, apontando para uma desinstitucionalização da escola, pela dificuldade que a mesma tem de administrar o mundo escolar e o mundo juvenil. Para ele, o sistema escolar não oferece mais um verdadeiro enquadramento da vida juvenil. Muitas vezes os professores enxergam apenas o estudante, esquecendo-se que ele é um jovem que tem uma vida fora do ambiente escolar e tem suas dificuldades e uma história singular. Foram inúmeros os casos de professores que encaminharam alunos ao SOE (Setor de Orientação Educacional) e SPE (Serviço de Psicologia Escolar) da escola pública onde estagiei com a queixa de indisciplina e quando foi feita a escuta do aluno, foi percebido que havia uma história por trás de seu comportamento transgressor, ou seja, um "mundo" que não foi visto ou levado em consideração pelo professor. Em um dos casos atendidos no Ensino Fundamental, há um menino que entrou na quinta série este ano e tem quatorze anos. Ele estava sempre sendo retirado de sala de aula todos dias e sendo foco de reclamação da escola toda encarado como "aluno-problema". Chamamos seu responsável para conversar, que nos contou que o menino fora abandonado pela família diversas vezes apresentando um histórico de vivências nas ruas muito precocemente. O dindo, seu responsável, contou que a família não o cuidava e que foi no ano passado que ele realmente se preocupou quando soube que o garoto não freqüentava mais a escola pois estava nas ruas, fumando maconha e quase virando um marginal aos treze anos. O dindo então resolveu assumir a responsabilidade pelo afilhado, passando a controlá-lo, educá-lo, alimentá-lo, pagando médicos e psicoterapia. Desta forma, a escola se sensibilizou com o menino, olhando para ele não mais como um transgressor de má índole, mas sim como alguém descuidado e acostumado com vivências de rua, que por conseqüência, não sabia como adaptar-se as regras e rotinas de uma escola. A partir disso o SPE realiza uma atenção especial com o menino, sempre conversando com ele e oferecendo o aconselhamento, que segundo Scheefer (1991), visa ajudar a resolver seus problemas educacionais. Por sabermos que ele é alguém que nunca teve limites e que pela primeira vez está sentindo os limites e o cuidado de uma instituição e os limites e o cuidado de um familiar temos mais tolerância antes de torná-lo foco dos problemas, assim, os professores mudam sua postura encarando o caso como um menino que está sendo resgatado de um futuro péssimo, que é o mundo da violência, o mundo das crianças de rua, e a escola então consegue sentir-se assumindo seu papel de educar para a vida. Este caso reflete o distanciamento entre o mundo escolar e o mundo do jovem, que através da escuta do SPE, pode proporcionar um olhar que não fosse apenas o de estudante (indisciplinado), mas sim o de uma pessoa como um todo.

Aquino (2005) lembra que onde houver normas sempre haverá burlas, isso significa que a transgressão de determinadas normas pode ser considerada previsível e até mesmo saudável. Caso contrário, não existiria a necessidade de normas, pois se já estivessem internalizadas no aluno as regras de boa convivência e conduta e ele entendesse o porquê delas, não haveria necessidade de burlas pois faria parte do mundo do jovem e dessa forma seria natural respeitá-las.

Gentile (2002) observa que o professor não deve ser autoritário e sim ter autoridade. Deve se perceber como aquele que educa, oferece parâmetros e estabelece limites (principalmente no seu sentido positivo). A disciplina pode ser entendida como um dos resultados da prática realizada na escola. Para isso o professor necessita conhecer bem seus alunos e a si próprio, devendo estar consciente da dinâmica das relações interpessoais existentes em sala de aula e propondo atividades que estejam de acordo com a diversidade existente na sua turma (Zenhas, 2003). O professor com autoridade conquista a participação com atividades pertinentes ao invés de exigir silêncio, assim dialoga ao invés de punir e ameaçar. Isto se torna possível quando o estudante aprende noção de limites e percebe que há direitos e deveres para todos. Acompanhei o percurso de uma professora que nunca apresentava problemas com as turmas, o que pude observar é que esta professora sabia impor autoridade mas mesclava-a com afeto. As outras professoras se queixam que é só na aula dela que os alunos sentam nos lugares corretos (conforme espelho de classe), ilustrando o quanto ela sabe impor o respeito. Além disso, muitas vezes ela usa a sua aula para conversar e ajudar a resolver algum conflito da turma. Quando ela realmente está com problemas com determinado aluno, costuma chamá-lo para o corredor e, sem o expor, conversa para saber o que está acontecendo, porque ele não está conseguindo colaborar, mostrando seu lado afetivo e se colocando disponível para ajudá-lo. Zagury (apud Gentile 2002)postula que um professor atencioso e uma relação de afeto pode reverter qualquer caso difícil e isto pôde ser evidenciado na situação relatada.

PSICOLOGIA ESCOLAR

Pensar em psicologia supõe um olhar para o universo da saúde mental. A psicanálise surgiu então como possibilidade de compreensão, a partir do qual a realidade poderia ser modificada de uma maneira científica. Dessa forma, diversas faculdades brasileiras de psicologia constituíram-se sobre essas bases voltando sua atenção para aspectos intrapsíquicos dos pacientes. Com isso, muitos psicólogos ainda buscam compreender uma parte do sujeito como se essa parte fosse o todo e, os estudantes, tendo como referência tais profissionais, se tornam herdeiros dessa concepção e modo de ação (Dias, 2001). Ademais, a produção de conhecimento na área de Psicologia Escolar apesar de estar em crescente desenvolvimento, ainda carece de produções teóricas consistentes que permita ao estudante de psicologia a possibilidade de re-significar seu conhecimento para o contexto das práticas escolares. De qualquer forma, as práticas da psicologia dentro do ambiente escolar visam, sobretudo, o exercício integrado com a realidade brasileira, em uma perspectiva mais preventiva e interdisciplinar. Como refere Almeida (1999, p. 78),

"as práticas psicológicas que orientam a atuação profissional serão, necessariamente, re-significadas se apoiadas em teorias que enfatizam os fatores objetivos e subjetivos do processo ensinar-aprender, as condições do contexto sócio-cultural, a importância das relações inter e intra-subjetivas professor-alunos, o aprendiz como sujeito do conhecimento e o papel social da escola, na formação do cidadão. A re-significação da atuação profissional passa, portanto, pela apropriação de referenciais teóricos que levem em consideração os processos interativos, conscientes e inconscientes constitutivos dos sujeitos em processo de ensino, de desenvolvimento e de aprendizagem, em uma perspectiva psicodinâmica e sócio-histórica, cujo foco não é o indivíduo mas os sujeitos em relação".

Atualmente o trabalho do psicólogo na área educacional tem se ampliado significativamente, outrora ocupávamos uma sala nos corredores da escola, hoje o psicólogo que se envolve com a aprendizagem pode estar inserido em vários contextos educativos. Dentro ou fora da escola, seja em assessorias, consultorias, empresas, ou até mesmo na extensão de seus consultórios, as relações estabelecidas com o aprender vão se configurando para uma ação em comum, que é a viabilização de saúde mental nos processos educacionais. O papel do psicólogo escolar/educacional passa a ser então o de estimular um diálogo aberto entre adultos e jovens a partir de uma escuta empática, construída em contextos ricos de afeto, que possa desenvolver a reflexão crítica, estimulando a participação e a responsabilidade de todos pelos seus atos. Um diálogo nem tão rígido e nem tão flexível ajuda o jovem em crise no momento que contribui com o equilíbrio para o seu crescimento (Constantini, 2004).

INTERVENÇÃO: TRABALHANDO COM A PREVENÇÃO

Aproveitando o espaço da escola na tentativa de promover discussões e reflexões, a psicologia entra para proporcionar mudanças significativas e rompimento de paradigmas existentes através da construção de relações baseadas no princípio de igualdade e justiça. Intervenções que promovam autonomia, solidariedade e que desenvolvam o pensamento reflexivo ganham uma relevância neste trabalho que visa ampliar o intrapsíquico para um coletivo social. De acordo com Daniel Stern (2007), há evidências do desenvolvimento que sugerem que, desde o nascimento, a criança penetra numa matriz intersubejtiva. De acordo com ele, há evidências neurocientíficas, sendo que a descoberta dos neurônios-espelho foi crucial para a compreensão do fenômeno – criar empatia com o outro e estabelecer contato intersubjetivo.A "participação" no estado mental do outro cria um senso de sentir/compartilhar com/compreender a pessoa, em particular suas intenções e sentimentos. Deste modo, pensamos que um cuidador reflexivo, seja pai/mãe ou professor, propicia um ambiente facilitador ou seguro e facilita o desenvolvimento da mentalização. A ausência desta capacidade reflexiva cria vulnerabilidades, que podem repercutir tanto no desenvolvimento da criança como no funcionamento do ambiente escolar.De modo especial, a falta da consciência do estado emocional é um dos fatores que desencadeia muito a impulsividade – sem a mentalização, resultados visíveis geram a ação, que conduz outra ação.

Pensando na questão da violência e indisciplina dentro das escolas e pensando em usar o espaço da Psicologia Escolar como ação para prevenção, eu e a outra estagiária criamos um projeto supervisionado pela psicóloga da escola, composto por diversas intervenções para as crianças da terceira e da quarta série, pensando em promover desde cedo o pensamento reflexivo, a integração da turma, regras de sociabilidade e convivência, o respeito ao próximo, a empatia, a solidariedade, cooperação, etc. Escolhemos as séries inicias, pois começamos a ver que seria um espaço potencial para trabalhar a prevenção daquilo que vemos já com milhares de queixas aparecendo no ensino fundamental (quinta à oitava série). Para isso buscamos desenvolver um projeto através de uma metodologia dinâmica, criativa, interativa e integrativa que possibilitasse esta reflexão. São dinâmicas grupais: jogos, técnicas didáticas, vivências, exercícios relacionais que dinamizam o grupo para o desenvolvimento de suas potencialidades e o alcance dos objetivos.

Sabe-se quejogos proporcionam a experiência de trabalhar em grupo estimulando a cooperação entre as crianças e a solução de conflitos de forma criativa. Além disso, utilizar atividades de psicomotricidade de cunho educativo como uma possibilidade de oportunizar as crianças um ambiente que permita a ampliação do seu vocabulário psicomotriz, favorecendo "avanços nos processos de comunicação, expressão corporal e de vivência simbólica" (Negrine, 2002, p.141) é muito positivo para o desenvolvimento infantil. A idéia foi buscar, através das práticas corporais, a possibilidade das crianças experimentarem diferentes formas de expressão e de comunicação, pois isso lhes proporciona uma rica vivencia simbólica.

É muito comum que as professoras, no intuito de garantir ordem e harmonia na sala de aula, "faça o uso de algumas praticas educativas que procuram simplesmente suprimir o movimento, impondo às crianças de diferentes idades rígidas restrições posturais", onde qualquer deslocamento, gesto ou mudança de posição da criança podem ser vistas como desordem ou indisciplina (Mattos & Neira, 2002, p 26). O problema desse procedimento é que muitas vezes essa rigidez pode gerar uma atitude de passividade nas crianças ou mesmo criar um clima hostil dentro da sala. Acontece que o movimento para as crianças, algumas vezes, significa muito mais que um mero deslocar-se no espaço físico, mas é através deste movimento que a criança pode expressar-se e comunicar-se através de mímicas faciais e gestos, podendo interagir através do seu próprio corpo. Neste sentido, é fundamental que se faça um trabalho integrando a expressividade e a mobilidade própria das crianças. A partir disto podemos até mesmo repensar a indisciplina nas crianças através de uma ótica em que "um grupo disciplinado não é aquele em que todos se mantêm quietos e calados, mas sim um grupo em que vários elementos se encontram envolvidos e mobilizados pelas atividades propostas" (Mattos & Neira, 2002, p. 28).

A partir disto, montamos o plano de intervenções rico de atividades que envolviam o lúdico, e todas as vezes que chegávamos na sala de aula da turma para buscá-los para o "horário da psicologia", a turma nos recebia com uma motivadora comemoração e um grito coletivo de "êêêêêê!!!!!". Isso vai de acordo com o que Mattos & Neira (2002, p 29) colocam ao "recordamos os comentários, os sorrisos, a felicidade estampada no rosto das crianças quando lhes é permitido simplesmente, brincar. Essa felicidade, constatada ao longo as atividades lúdicas, representa o envolvimento com a proposta" (p. 29), com o viver a atividade, as experiências e as emoções deste processo.

Para isso fizemos alguns encontros com as crianças em uma sala ampla, vazia, com um espelho grande e colchonetes de educação física. Escolhemos esse ambiente para sair do espaço de sala de aula e deixá-los mais a vontade para o grupo. Sempre sentamos em roda e estipulamos regras de convivência, como por exemplo levantar a mão na hora que quer falar, pois muitas vezes o assunto é empolgante e as crianças querendo participar acabam gritando e falando ao mesmo tempo de outras. No primeiro dia apresentamos a psicologia numa conversa interativa, perguntando quem já tinha ido ou sabia o que era uma psicóloga e pedindo para que eles pensassem para quê e como poderia ser o trabalho que iríamos realizar com eles. Sugerimos uma atividade inicial que consistia em formar uma grande roda onde cada um circularia com giz o seu local. Então, eu, no centro da roda, escolhi algumas características e solicitei a seguinte ordem "Deverão trocar de lugar os alunos que estiverem usando tênis, e o resto que não estiver permanece no mesmo lugar", depois "Deverão trocar de lugar os que torcem para o Grêmio", "Deverão trocar de lugar os alunos que são filhos únicos", "Deverão trocar de lugar os alunos que não gostam de chocolate", e assim por diante. Desta forma alem de trabalhar movimento corporal e estruturação espacial, foi uma forma de quebrar o gelo do primeiro encontro. Alem disso, cada vez que havia troca de lugar enfatizávamos o quanto cada pessoa era diferente uma da outra, o quanto cada um gostava e tinha o direito de gostar de coisas diferentes do colega, e o quanto tínhamos de coisas em comum com os colegas que nem são tão amigos. Neste meio tempo, entrei em um dos espaços marcados pelos alunos e, dando continuidade, solicitamos que o aluno que ficou sem espaço teria de criar nova ordem. Assim, estimulamos a capacidade criativa e de resolução de problema naquela criança, dando autonomia para que ela continuasse com a brincadeira enquanto os colegas dependiam dela para brincar. A atividade foi super positiva.

Em outro momento propomos a atividade lúdica da Luta das serpentes. A turma foi dividida em quatro equipes. Para dividir demos um número de um a quatro para cada criança e depois organizamos as equipes pelos números, pois dessa forma acabava com as "panelinhas". Apesar disso, alguns alunos pediram para trocar de equipe por não se relacionar com algum colega da sua equipe, mas como o objetivo era justamente o contrário, isto não foi permitido. Então solicitamos que cada uma organizasse uma fila com as mãos nos ombros do colega da frente. O objetivo consistia no primeiro de cada fila (a boca da serpente) conseguir tocar o último da outra fila (o rabo da serpente). A cada rompimento da fila, paralisávamos a atividade e solicitávamos que as serpentes se reorganizassem. Dessa forma não adiantava um da equipe sair correndo rápido, se os colegas atrás não conseguissem acompanhar. Depois da atividade sentamos em roda e conversamos sobre a brincadeira, mostrando a necessidade de um trabalho em equipe, onde não adianta ser o melhor ou o mais rápido, e sim a melhor serpente era aquela onde os integrantes conseguiam prestar atenção no seu grupo, ajudando os colegas numa integração entre todos.

Outra atividade que realizamos para observar as necessidades e demanda da turma foi entregar uma folha de oficio e pedir para que eles desenhassem de um lado da folha alguma coisa do qual gostavam muito da turma deles, e do outro lado, algo ruim na turma. Bem como imaginávamos, no desenho dos meninos apareceu muito sobre brigas no futebol, brigas entre os colegas como algo ruim, e no trabalho das meninas apareceu muita queixa de bagunça em sala de aula e briga dos meninos. Pensando nisto resolvemos separar os grupos e fazer alguns encontros só com o grupo das meninas e alguns encontros só com o grupo dos meninos para que pudéssemos trabalhar questões mais específicas e tendo menos pessoas poderíamos fazer um espaço mais rico para reflexões.

Porém, antes de dividir os grupos, ainda fizemos um encontro com a turma toda junta. A idéia era trabalhar a cooperação e a resolução de problemas. Perguntamos para eles quem conhecia a história do Aladin e pedimos que nos contassem. Depois, lemos uma versão da história do Aladin para todos e fizemos a seguinte proposta: que cada um escrevesse num pedaço de papel um desejo que gostaria que se realizasse sem se identificar. Depois recolhemos todos e misturamos. Sorteamos um de cada vez, lemos em voz alta para todos e pedimos que ajudassem a dar idéias de como aquela pessoa desconhecida poderia realizar aquele desejo. Antes disso fizemos algumas combinações das regras, como por exemplo, quem quiser falar tem que levantar a mão e que todos devem respeitar cada pedido, sem interessar quem foi que escreveu. A atividade foi super bem aproveitada por todos, pois cada pedido lido teve várias dicas de como poderia ser realizado.

No outro encontro chamamos somente os meninos para trabalhamos a história do Beto. Levamos uma história em folhas grande e coloridas feitas a mão, com um boneco chamado Beto, para ficar mais lúdico e prender mais a atenção. A história era de Beto, um menino novo na escola que não estava acostumado com brigas e se assustou quando assistiu a cena de um colega sendo humilhado e ameaçado por outros colegas. Beto então resolve tomar uma atitude e acaba apanhando dos mesmos agressores. No fim da história, Beto convence a vítima a tomar coragem e ir na direção da escola relatar tudo que aqueles colegas já haviam feito de mal para ele. A partir dessa historia entramos nesse tema com os meninos, questionando o que eles acharam da historia, do final da historia, se eles dariam outro fim, se eles vêem coisas desse tipo acontecer na turma deles ou com outros colegas de outras turmas. Trabalhar com esse tema de crianças violentas e violentadas é muito interessante, pois muitas vezes a criança que é agressiva na escola não sabe se relacionar de outro jeito, pois em casa o convívio que serve de modelo também é violento. Nesses casos "a criança não sabe como lidar com esses sentimentos que são gerados dentro dela pelo seu ambiente hostil. E assim, quando agride o ambiente, de uma certa maneira, o faz porque não sabe que outra coisa fazer". Tem vezes que até mesmo a mídia e a televisão acabam servindo de modelo de comportamento social. Essas crianças geralmente não conseguem "comunicar seus verdadeiros sentimentos de forma diferente daquela que está utilizando. É como se estivesse fazendo a única coisa que sabe. No sentido de prosseguir na batalha de viver nesse mundo" (Oaklander, 1980, p. 233). Dessa forma, vamos trabalhando em cima do que eles vão falando, através de intervenções, tentando refletir junto sobre as melhores alternativas, construindo um pensamento crítico em cima de questões muito próximas do cotidiano escolar deles, permitindo que cada um possa expressar sua opinião, extravasar sentimentos ruins, desabafar alguma coisa para o grupo e principalmente aprender novos modelos de relacionamento interpessoal.

Com as meninas foi diferente, acabamos trabalhando a demanda do momento. Na terceira série havia acontecido um episódio em que um colega tinha dito que "estava com tesão", fato que deixou as meninas bastante assustadas e agitadas. Então, a partir disto, pedimos que elas nos contassem a história e conforme elas foram trazendo questões de sexualidade, fomos conversando com elas, deixando que elas colocassem seus receios, culpas e angustias em relação a isto para o grupo. Proporcionamos um acolhimento àqueles sentimentos contraditórios que elas trouxeram e tivemos uma conversa aberta e esclarecedora. Com relação às meninas da quarta série, foi um pouco diferente. Elas chegaram para o grupo com caras de desânimo, raiva e desmotivação. Conversamos mostrando o que estávamos observando e perguntamos o que estava acontecendo. As meninas trouxeram muitas queixas da professora, relatando situações em que não gostam, em que acham injustas e também situações de ciúmes em relação a professora com seu filho, que estuda na sala do lado. Ao final do grupo, fizemos juntos uma lista de situações e em cima disto pensamos sobre cada item, explorando a capacidade crítica de refletir sobre o problema. Para o encontro seguinte foi proposto um psicodrama, onde pudessem ser expostas, através do corpo e do movimento, os conflitos que ocorrem em sala de aula, relatados anteriormente por elas. A atividade de dramatização é uma maneira de compreender a si mesmo e ao outro, pois permite insights profundos por parte do grupo a respeito do significado dos papéis assumidos por cada um. Uma atividade muito rica para explorar a empatia deles.
Continuamos ainda fazendo até o final do ano atividades no intuito de
estimular a autonomia, a capacidade de pensamento reflexivo, a cooperação, as habilidades sociais, pois sabemos que ao facilitar essas relações interpessoais, é possível consolidar o vínculo afetivo na relação entre as pessoas, resultando numa socialização que permite o desenvolvimento do grupo. Entretanto o ano letivo ainda não acabou e não terei como citar agora detalhadamente todas as atividades que estamos e ainda vamos realizar com essas duas turmas nos quais estamos trabalhando. Fica aqui um pouco de exemplos do que já foi feito, tentei ser rica em detalhes para que o trabalho pudesse ser claramente compreendido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho procurou mostrar como se dá o fazer da Psicologia no âmbito escolar levando-se em conta o universo de variáveis envolvidas nesse espaço de atuação. Procurei relatar as minhas ações sendo sempre fiel a realidade e as dificuldades enfrentadas. Diante de tudo o que foi relatado, acredito que há muito ainda o que fazer na instituição, a demanda parece aumentar na medida em que o tempo passa, exigindo cada vez mais de quem a ela se dedica trabalhando.

O que aprendi é que trabalhar com a prevenção da indisciplina e a violência foi apenas um dispositivo inicial para estimular o pensamento reflexivo das crianças dentro da escola num espaço oferecido pelo serviço de psicologia. Iniciamos o trabalho com o objetivo de prevenir a indisciplina e a violência escolar, algo muito constatado atualmente no ensino fundamental, mas verificamos que somente a oportunidade de ter esse espaço fixo semanal com as turmas já foi muito rico para as crianças, onde puderam ser discutidos não só questões de indisciplina escolar, como também trabalhar com a demanda trazida pela turma que borbulhava atenção e necessitava espaço para ser extravasada.

Com este trabalho fica clara a importância de organizar atividades dentro da escola para que as crianças possam expressar suas angustias, medos e anseios. Está aí um campo de atuação rico para o psicólogo escolar que queira explorar junto das crianças um mundo mais acolhedor, que organize junto à elas cada ritmo interno, oportunizando um expressar-se por inteiro na relação com o outro. Cada vez mais se faz necessário compreender o ser humano na sua globalidade, de acordo com o princípio fundamental de que se deve aprender a cuidar da pessoa e não da doença, através de uma ação preventiva que leve em consideração o relacionamento interpessoal. Afinal das contas, ajudar as crianças a olhar para si mesmo, para o outro e para o mundo é uma forma de mudar o mundo.

Referências

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