Uma boa metáfora para o erudito é compará-lo ao verniz, pois este autonomiza o objeto em relação ao sujeito, algo que torna o conhecimento petrificado, numa prática contínua de deixar o passado, ou o conhecimento de outros povos, sempre válido para o presente, ou seja, a prática erudita tende a uma covardia e a uma preguiça que podem imobilizar o presente em nome de um passado revisitado. O eruditismo, não respondendo adequadamente às questões da vida, cujo conhecimento é sempre contingente, torna-se o senhor do excesso e do supérfluo, pois a decompõe em prol de seus vários interesses unilaterais (especializados), preconizando o desprezo pela grandeza da existência, que exige uma visão orgânica e não uma restrição/limitação por parte do erudito; "ele decompõe uma imagem em simples manchas, do mesmo modo como, na ópera, se usa um binóculo para ver a cena e examinar um rosto ou um detalhe da vestimenta, nada inteiro" (NIETZSCHE, 2003, p. 193). O eruditismo é uma resposta ressentida diante da complexidade da existência e o homem erudito torna-se especialista e fossiliza a si próprio em vida, não se inserindo num estado contínuo de criação de novos valores.

O sujeito erudito torna-se aquele que projeta no "outro" sua própria falência, representada em discursos que reproduzem sua mentalidade obtusa, pautada num constante falatório que diz pouco de si e de suas vivências, mas muito dos outros. É quando ocorre talsituação que a história torna-se desvantagem para a vida, já que ocasiona uma práxis vexatória que nada faz para engrandecer a vida, mas, pelo contrário, a coloca numa situação de prejuízo existencial, social, individual. Esta tipologia de indivíduo, não raro, preconiza uma genuína decadência valorativa que culmina em afetos tristes, tais como: vingança, medo, ressentimento. Uma história cujo pilar seja a vida, que exige muito mais do que uma sabedoria de compêndio, deve experimentar o presente e deve valorizar a alteridade e não visualizar no outro o diferente que deve ser formatado às perspectivas do erudito, ou do sujeito ressentido dotado de um complexo espírito de vingança. O erudito-vernizcontinuamente petrifica os indivíduos em seus moldes obtusos, "é um metal impuro por excelência" (NIETZSCHE, 2003, p. 191).

Com a prática (especialidade) da invasão da história de outros povos, o erudito tende a uma pérfida manipulação da história e dos indivíduos, numa ação covarde, que é, muitas vezes, mentirosa. De que forma a mentira opera nesse contexto? Na medida em que o sujeito de mentalidade tacanha se arroga no direito de dizer o que quer, agir como quer e, assim, como conseqüência de suas maquinações, acaba por criar situações tensas que o fazem continuamente projetar mentiras, devido às suas ações decadentes.

Experimentando o passado demais o homem deixa de conhecer o presente; tem muitas respostas para o passado, mas poucas para o presente: eis o problema do especialista, que pode pensar que os problemas da vida são sempre os mesmos, escamoteando-se nessa perspectiva errônea do real. Conhecer por conhecer é tentar responder sem ter resposta.

Não se deve pressupor, obviamente, que o conhecimento seja algo prejudicial para a vida e que a erudição seja sinônimo de prejuízo (e filisteísmo) para o ser humano, mas o que está em questão é o excesso, que pode tornar o conhecimento uma desvantagem para a existência. A relação entre saber desvinculado da vida é semelhante ao que aconteceu com Nietzsche que, durante seus três primeiros anos no internato de Pforta, estudou sem descanso, chegando depois à reflexão: "o que havia lucrado com ela?", e à sua crítica ao sistema educacional que se deparou enquanto professor, que visava promover o "homem teórico", que separava a vida do pensamento. Em contraponto a tal educação, "Nietzsche sonha com um ideal de educação que o estudo dos gregos pré-platônicos lhe revelara, uma educação ancorada nas experiências da vida de cada indivíduo" (DIAS, 1991, p. 32-33). Dessa maneira, Nietzsche não despreza o indivíduo que valoriza o conhecimento, mas critica de forma intempestiva o ideário de educador da Alemanha do século XIX, cujo protótipo era de um sujeito (erudito) que conhecia demais o passado e, em decorrência negativa disso, acabava por não viver adequadamente o presente, não criando novos valores.

Em uma prática abusiva do passado o presente pode ser relegado em detrimento de respostas prontas diante da complexidade daquilo que a vida é (devir), mas, pode gerar uma mentalidade que arrogue sua época como sendo o ápice da evolução, algo que culmina numa supressão da pluralidade e na legitimação de etnocentrismos. Como é possível cogitar tal mentalidade, na medida em que o indivíduo dessa visão, não vivendo a vida em sua constante transformação, fossiliza o passado e ainda assim se crê no ápice da história? Talvez devido à erupção científica da Alemanha oitocentista que tendia a uma abstração dos problemas da existência, talvez porque tal mentalidade era mera representante de um status quo que exigia continuamente sua legitimação, seja através da filosofia acadêmica sob o signo de Hegel, seja através da justificação da marcha de Deus na terra (NIETZSCHE, 2005, p. 145). Há que se ressaltar que Schopenhauer - filósofo no qual Nietzsche demonstra a sua filiação (NEUKAMP, 2008, p. 55), considerando-o como seu "educador" - considera que, através da influência de Hegel, (BITTENCOURT, 2009, p.6) a filosofia universitária (acadêmica) torna-se a Filosofia por excelência, enquanto que a Filosofia que não se encaixasse nesse estilo tornava-se intelectualmente e valorativamente marginalizada.

Referências bibliográficas

Bittencourt (UFRJ), R.. Convergências entre Schopenhauer e Nietzsche na crítica da filosofia acadêmica. Intuitio, América do Sul, 2 4 12 2009.

DIAS, Rosa Maria. Nietzsche educador. São Paulo: Scipione, 1991

NEUKAMP, Elenilton. Nietzsche, o professor. São Leopoldo: Oikos/Nova Harmonia, 2008

NIETZSCHE, F. W. II Consideração Intempestiva (Sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida). Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005

________________. Schopenhauer como educador. Trad. De Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003