- E aí, magrona?
Tirei a contragosto os olhos do "Balzac", levantei a aba do chapéu de praia e fui tentando reconhecer a imagem diante de mim. Tirei os óculos e mirei com raiva o dito cujo que me privava do sol. Posso ser chamada de qualquer coisa, mas... Magrona?
Uns olhos azuis como os do céu nesse dia me fitavam meio risonhos. Havia uma figura saída dos folhetins dos anos sessenta. Calças largas de algodão branco, uma bata bordada no decote junto ao pescoço, colares de sementes e grãos, um chapéu panamá, óculos "ray ban" e... pés descalços. O homem tinha a pele branquinha dos europeus apesar da praia, cabelos brancos amarelados como surfista, capanga na cintura.
Estendeu-me a mão e lascou:
- Tudo bem, bicho? Sou Fernando. Os camaradinha pediram que eu viesse buscá-la, podes crer.
Então sorri num mudo pedido de desculpas pela cara enfarruscada. Levantei, juntei toalha, livro, sacola, e saí andando com ele rumo a um quadriciclo. Aqui, em meio às Mercedes, circulam também motos como essa.
Num instante e estávamos na casa dos amigos com quem eu veraneava. Punta Del Este é magnífica. Situada no sul do continente, tem um ar pretensamente europeu. Lindas mansões, hotéis luxuosos, onde é possível encontrar personalidades, brasileiras e internacionais. Fica próxima ao Chuí, então para gaúchos é fácil "esticar" até lá para curtir férias diferentes.
Nosso grupo é grande. Alugamos uma casa e rachamos as despesas. Fernando mora em Punta, apesar de brasileiro. É vizinho da casa onde estamos e já "é de casa", participa dos churrascos, do jogo de damas, do karaokê.
Como sou a "solteira" do grupo há um empenho cerrado em arranjarem-me companhia. Vale tudo: de ricaços solteirões, amigos castelhanos, entregadores de pizza...
Acho graça sem me ofender. Mas eles (os amigos) não cansam no empenho de me arrumarem marido ou companheiro. Nesse momento, o alvo é Fernando. Montam esquema para nos deixarem juntos, programam passeios, passo a ser a companhia constante do hippie.
Ele não é má pessoa, também não posso dizer que seja fastidioso. Simplesmente, o homem é assombroso. Parou no tempo.
Numa dessas ocasiões, convidou-me para "um café" na casa dele. Espantosa casa, diga-se de passagem. O portão do jardim é ladeado por dois vasos sanitários onde estão plantadas flores diversas. No avarandado da casa, cordas coloridas e pneus. Num canto uma remington... Há uma sala que parece um templo: As paredes são revestidas de prateleiras e ali milhares de livros, todos os clássicos. Ele cita Pessoa como o "Mano", conhece tudo de literatura, da nacional à estrangeira. Fala em autores célebres com toda a naturalidade, sem pretensão alguma. É formado em Letras, mas nunca trabalhou. Herdeiro, filho único de uma família bem conhecida no sul do Brasil, não se preocupa com finanças. Dizem as más línguas que os empregados o roubam, mas ele não parece se incomodar com isso.
Junto aos livros, toda uma coleção de discos de vinil, Bob Dylan e outros, e muitos rolos de filmes, daqueles que só se via em cinemas.
Não me aventurei a tomar o café diante da cozinha onde ele tinha de tudo, desde o paio pendurado ao teto à forma de pão caseiro.
Um leve cheiro lembrando a incenso me deixou meio enjoada. Reconheci o aroma que me lembrou os alunos do ensino médio...
Fernando não é para mim. Sou muito convencional, sou "bocomoco". Apesar dele ser um tipo interessante, culto, amável, típico romântico, não me vejo "riponga".
Sorrio pensando nos meus familiares, amigos e alunas; Visualizo minha figura de sandálias rasteirinhas, saias rodadas, cabelos sem trato, colares e flores no cabelo, criando artesanato na praia... Não, não dá mesmo!
Woodstock já era. Desculpe, Fernando... Essa não é minha praia.