A Utilização da Amiodarona no Tratamento da Fibrilação Atrial

Com o advento do tratamento não farmacológico das arritmias cardíacas através da ablação com radiofreqüência, a grande maioria dos pacientes com taquicardias supraventriculares, como a reentrada nodal e a reentrada atrioventricular, tem a cura definitiva obtida com elevado índice de sucesso e com boa segurança, e o mais importante, não mais necessitam utilizar medicamentos para prevenção de recorrências. O sucesso da terapêutica ablativa se deve ao conhecimento do mecanismo que origina a taquicardia, bem como das estruturas envolvidas na sua manutenção. Infelizmente o mesmo ainda não ocorre com a fibrilação atrial, a taquiarritmia supraventricular mais freqüente documentada na clínica e cuja incidência aumenta com o avançar da idade.

A fibrilação atrial é uma arritmia originada por múltiplas causas e essa é uma das razões pelas quais o seu tratamento é complexo. Não existe um fármaco que consiga atuar sobre todos os mecanismos que deflagram e mantém a arritmia e isso obriga a utilização de medicamentos com diferentes mecanismos de atuação. Além disso, o tratamento depende da forma de apresentação da arritmia. Do ponto de vista clínico, a fibrilação atrial é classificada em paroxística, ou seja, aquela que ocorre em crises intermitentes de duração variável, que pode surgir e se interromper de modo espontâneo. Nesse caso, o objetivo do tratamento é a prevenção de recorrências. A fibrilação atrial pode ser do tipo crônica persistente ou seja, aquela que nunca foi submetida a qualquer forma de tratamento e os objetivos terapêuticos são a reversão ao ritmo sinusal e a prevenção de recorrências. Por último, a forma crônica permanente que já se manifesta refratária a qualquer tipo de tratamento e o objetivo seria apenas o controle da freqüência ventricular associada a anticoagulação crônica nos pacientes de risco.

Um dos principais fatores limitantes no tratamento farmacológico de pacientes com fibrilação atrial é o risco de efeitos adversos e pró-arrítmicos que implicam, não apenas no insucesso mas, também, no maior risco de complicações graves, incluindo a morte. Por essa razão, a utilização de fármacos de alta eficácia e com bom perfil de segurança deve ser sempre considerada nessa população. Esse fato é ainda mais importante quando se considera que a fibrilação atrial complica a evolução de pacientes com algum grau de disfunção ventricular, o que limitaria sobremaneira as indicações de agentes farmacológicos atualmente disponíveis em nosso meio. A amiodarona é o antiarrímico mais eficaz e seguro no tratamento de pacientes com taquiarritmias supraventriculares e ventriculares, conforme demonstram algumas meta-análises já publicadas. O objetivo dessa monografia é o de discutir os efeitos da amiodarona no manuseio clínico de pacientes com fibrilação atrial.

Reversão da Fibrilação Atrial Aguda

A necessidade do restabelecimento precoce do ritmo sinusal se baseia no conhecimento de que quanto mais longa a duração da fibrilação atrial, maior deve ser o remodelamento atrial, tanto histológico quanto elétrico, o que tenderia a facilitar a sua manutenção. Por essa razão, defende-se na atualidade que, uma vez diagnosticada a fibrilação atrial, deve-se tentar o restabelecimento do ritmo sinusal. A amiodarona, um potente fármaco antiarrítmico do grupo III, atua na reversão da fibrilação atrial através do prolongamento do período refratário atrial.

Esse achado parece ser importante no pós-operatório de cirurgia cardíaca, período no qual a incidência dessa arritmia pode chegar a 30-40% dos casos, principalmente nos pacientes de maior risco, como os idosos e aqueles submetidos a trocas valvares e revascularização miocárdica. Os fármacos do grupo IC entretanto, como a flecainida e a propafenona, revertem a fibrilação atrial mais precocemente do que a amiodarona (Chevalier P et al. J Am Coll Cardiol 2003; 41:255.).

A dose e a quantidade infundida de amiodarona por unidade de tempo influencia os resultados relacionados ao restabelecimento do ritmo sinusal. Alguns estudos indicam que na dose de 5,0 mg/Kg de peso, a amiodarona infundida por via venosa em 24 horas não é superior ao placebo na reversão da fibrilação atrial de recente começo, sendo necessário para essa condição doses maiores (Galve E et al. J Am Coll Cardiol 1996; 27:1079; Slavik RS, Zed PJ. Pharmacotherapy 2004; 24:792). Pacientes internados em unidade de terapia intensiva que evoluem com fibrilação atrial, apresentam maiores taxas de reversão quando a infusão de amiodarona é de 100 mg/h em comparação com a dose de 50 mg/h (Tuseth V et al. Heart 2005; 91:964).

A amiodarona por via oral apresenta eficácia maior que o placebo no restabelecimento do ritmo sinusal, particularmente quando administrada na dose de 30 mg/Kg, e esse fato ocorre tanto quando se considera a reversão precoce em até 8 h (50% vs. 20% para amiodarona e placebo respectivamente) quanto para reversão em 24 horas (87% vs. 35% para amiodarona e placebo). O tempo médio de reversão entretanto, não é diferente comparando-se a amiodarona com o placebo (Peuhkurinen K et al. Am J Cardiol 2000; 85:462.).

Vale salientar que quando a reversão ao ritmo sinusal não é obtida, o controle da freqüência ventricular é satisfatoriamente obtida após a infusão de amiodarona, particularmente em pacientes que se apresentam em más condições hemodinâmicas. Um estudo demonstrou que a infusão de 2,0 a 3,0 mg/Kg de peso de amiodarona foi eficaz na redução significativa da freqüência ventricular de pacientes com insuficiência cardíaca descompensada associada a taquiarritmias atriais rápidas (fibrilação e flutter atrial) , além de causar aumento da pressão arterial, indicando assim melhora clínica considerável das condições hemodinâmicas desses pacientes. O sucesso foi atribuído à ação antiadrenérgica e antagonista de canais de cálcio da amiodarona sobre o nódulo atrioventricular, demonstrados fundamentalmente pelo maior tempo de enchimento diastólico e conseqüentemente, do débito cardíaco (Clemo HF et al. Am J cardiol 1998; 81:594). A infusão venosa de amiodarona deve ser feita com cautela para se evitar o risco de hipotensão arterial causada pela depressão da função ventricular e a vasodilatação periférica.

Reversão da Fibrilação Atrial Crônica

Quando da abordagem dos pacientes com fibrilação atrial crônica, deve-se considerar que quanto maior o tempo de permanência dessa arritmia, maior deve ser o impacto do remodelamento atrial que perpetua a arritmia. Para que a reversão ocorra, o fármaco deve prolongar de maneira significativa o período refratário atrial, além de atuar efetivamente sobre os fatores que mantém a fibrilação atrial, provavelmente representados pelas ectopias atriais. É possível que parte do insucesso terapêutico da medicação antiarrítmica seja causada pelos outros fatores nos quais os antiarrítmicos não exercem qualquer influencia, tais como a fibrose tecidual desencadeada pela apoptose celular, as modificações genéticas causadas nos canais de membrana que perpetuam o encurtamento da refratariedade atrial, etc. Mesmo considerando-se essas condições, a amiodarona administrada por via oral restabelece o ritmo sinusal em cerca de 52% dos casos (Galperin J, et al. J Cardiovasc Pharmacol Ther 2001; 6:341). Esse agente é superior a propafenona, sotalol e também a quinidina na reversão da fibrilação atrial crônica ao ritmo sinusal. Um dos principais fatores que influencia esses resultados é o tempo de duração da fibrilação atrial, sendo os casos de insucesso observados nos casos em que a arritmia é mais duradoura. A idade, tipo de cardiopatia e tamanho do átrio esquerdo parece não exercer qualquer influencia.

Pelo fato de haver alguma chance de restabelecimento do ritmo sinusal normal com antiarrítmicos em pacientes com fibrilação atrial, é valida a tentativa de iniciar o uso dessa medicação antes de se encaminhar o paciente para a cardioversão elétrica. A grande vantagem dessa conduta seria, além da real possibilidade de reversão, a estabilização atrial logo após a aplicação do choque. Sabe-se que o principal fator responsável pela recorrência precoce de fibrilação atrial após o procedimento é o aumento das ectopias atriais que desencadeiam novamente a fibrilação atrial. Um estudo recente demonstrou que a administração de amiodarona na dose de 800 mg ao dia por duas semanas antes da  cardioversão elétrica, aumentou a chance de manutenção do ritmo sinusal no período pós-choque, em comparação ao grupo de pacientes que recebeu placebo e esse achado se deveu, provavelmente, a maior establização elétrica atrial conferida pelo fármaco (Channer KS et al. Eur Heart J 2004; 25:144.).

Em pacientes que já se demonstraram refratários a cardioversão elétrica ou que não reverteram a fibrilação atrial ao ritmo sinusal apenas utilizando fármacos, a adição de amiodarona aumentou a chance de sucesso de uma nova tentativa de cardioversão elétrica da fibrilação atrial. Esse fato indica que a amiodarona aumenta a estabilidade elétrica atrial e aumenta a eficácia do choque e esse efeito se deve, provavelmente, à transformação da fibrilação em flutter atrial, um circuito de macroreentrada em que a penetração da frente de onda causada pelo choque parece ser facilitada.

A amiodarona é o agente mais freqüentemente empregado no tratamento de pacientes com fibrilação atrial e, por essa razão, seus efeitos sobre os resultados de uma cardioversão elétrica devem ser lembrados. Num estudo prospectivo por nós realizado em pacientes que iam ser submetidos a cardioversão elétrica, a população alvo foi dividida em dois grupos: grupo A que estava em uso de amiodarona precedendo a cardioversão; grupo B que não tomava nenhum antiarrítmico, apenas fármacos para o controle da freqüência cardíaca. No protocolo de reversão estavam incluídas aplicações de até quatro choques com cargas pregressivamente crescentes (100, 200, 300, 300 W). No grupo A a intensidade cumulativa de cargas foi significativamente maior que no grupo B (475±284 W e 303±219 W; p=0,02) o mesmo acontecendo com relação ao número de choques aplicados (2,7±1,0 e 1,9±1,7; p=0,017). Esse fato demonstra que o limiar de desfibrilação elétrica se eleva com a amiodarona e alerta para que as tentativas de cardioversão não devam ser interrompidas antes que o protocolo com pelo menos quatro choques se complete (Moreira DAR dados ainda não publicados).

Prevenção de Recorrências de Fibrilação Atrial

Na atualidade e com os conhecimentos já obtidos, parece que a discussão sobre a reversão ou não da fibrilação atrial na grande maioria dos casos não passa de uma mera especulação acadêmica. A utilização de antiarrítmicos, outros fármacos que estabilizam os átrios ou até revertem o remodelamento elétrico atrial, além da utilização de macapassos, desfibriladores atriais e, mais recentemente, a ablação com radiofreqüência, indicam que a recuperação e manutenção do ritmo sinusal sempre vale a pena, e pelo menos uma tentativa deva ser implementada. Por essa razão também, a utilização de medidas terapêuticas que visam manter o ritmo sinusal normal devem ser sempre consideradas para o sucesso do tratamento. Tal sucesso não deve ser avaliado pela abolição total dos episódios de fibrilação atrial, pois até mesmo os mais sofisticados métodos de prevenção podem falhar, tal como ocorre com o isolamento das veias pulmonares com radiofreqüência, tido na atualidade como método curativo de excelência da fibrilação atrial. O sucesso é obtido quando se prolonga o período entre crises ou seja, aumenta-se o tempo no qual o paciente se mantém em ritmo sinusal. Esse fato é muito importante pois a manutenção de um ritmo cardíaco normal, além de promover a reversão das condições elétricas atriais normais, abolindo os efeitos do remodelamento, pode retardar um eventual surgimento da forma crônica da fibrilação atrial.

Além do fármaco antiarrítmico, a utilização de outros medicamentos que atuam sobre mecanismos que favorecem o remodelamento atrial, como antagonistas dos canais de cálcio, inibidores da enzima de conversão de angiotensina ou bloqueadores de seus receptores, diuréticos, estatinas, vitamina C, etc, devem ser sempre considerados em casos selecionados. Somente a administração do antiarrítmico tem elevada probabilidade de insucesso.

A maioria dos estudos que avaliou os efeitos de fármacos antiarrítmicos para prevenção de fibrilação atrial, incluiu todos os pacientes sem randomização quanto a idade, sexo, tipo de cardiopatia subjacente (hipertensão arterial, miocardiopatia isquêmica ou não isquêmica, etc), tempo de duração da arritmia, e outros fatores que sabidamente podem interferir nos resultados do tratamento. A fibrilação atrial não parece ser a mesma arritmia para todos os pacientes, embora sua forma de apresentação eletrocardiográfica seja similar. Esse fato poderia explicar por exemplo, a heterogeneidade de resultados quanto ao sucesso de um medicamento em relação ao outro.

Meta-análises publicadas recentemente demonstram que, definitivamente,  os medicamentos antiarrítmicos são superiores ao placebo na prevenção de recorrências de fibrilação atrial e, por essa razão, sua utilização se justifica. Além disso, não parece haver diferença significativa quanto ao sucesso na prevenção quando se compara os diferentes antiarrímicos entre si. A tolerabilidade ao fármaco, a experiência do médico que prescreve, a presença ou não de disfunção ventricular, sexo, idade, todos esses fatores devem influenciar na escolha do medicamento. De maneira geral os estudos indicam que a amiodarona é o fármaco mais eficaz na prevenção de recorrência quando todos aqueles fatores são levados em consideração. Um exemplo muito importante é o fato de que seu emprego está autorizado principalmente nos pacientes que apresentam baixa fração de ejeção ou estão evoluindo com insuficiência cardíaca, condição nas quais os outros medicamentos como a propafenona ou sotalol estão contra-indicados, devido ao maior risco de efeito pró-arrítmico. Pelo fato dos efeitos colaterais surgirem e obrigarem a sua suspensão  definitiva em cerca de 20% dos pacientes, a norma atual é que sempre que possível sejam utilizados fármacos de mais fácil manuseio clínico e com menor risco de efeitos colaterais, antes de se pensar na utilização de amiodarona.

No estudo AFFIRM, que incluiu pacientes idosos com fibrilação atrial com risco de tromboembolismo e morte por causa da arritmia, num seguimento de um ano, a amiodarona foi eficaz na manutenção do ritmo sinusal em 60% dos casos, enquanto o sotalol foi eficaz em apenas 38%. Comparando-se os pacientes que fizeram uso de sotalol e fármacos do grupo I, os resultados apontaram sucesso de 34% e 23% respectivamente (J Am Coll Cardiol 2003;42:20). Um publicação recente demonstrou que a amiodarona prolongou de maneira significativa o período entre recorrências de fibrilação atrial em comparação aos pacientes que utilizaram sotalol e ambos os agentes foram muito superiores ao placebo com o mesmo objetivo. A diferença foi menor quando se considerou os pacientes com fibrilação atrial associada à cardiopatia isquêmica, quando o desempenho do sotalol foi similar a amiodarona, numa clara indicação de que o tipo de cardiopatia definitivamente influencia os resultados do tratamento preventivo (Singh B et al. NEJM 2005; 352:1861).

Concluindo, para o tratamento da fibrilação atrial quando se considera a reversão ao ritmo sinusal, seja na sua forma aguda ou crônica e a prevençao de recorrências, a escolha do fármaco antiarrítmico deve ser baseada em critérios clínicos não apenas de eficácia mas também de segurança. É sempre importante salientar a necessidade de se identificar o fator causal envolvido na gênese da arritmia, pois além dos antiarrítmicos, a medicação coadjuvante especifica deve desempenhar um papel adicional fundamental. A amiodarona é um fármaco seguro, eficaz e é o agente de escolha nos indivíduos com disfunção ventricular ou insuficiência cardíaca e, também para aqueles nos quais outros antiarrítmicos falharam.