A palavra ironia, do grego, eironeia (ειρωνεία) pode ser traduzida por aquele que tem a pretensão de ser ignorante, ou que diz menos do que parece pensar. Em geral, costuma-se traduzir ironia, talvez por questão de brevidade, por dissimulação ou fingimento. Na história da filosofia pode-se falar de dois tipos principais de ironia, a saber, a ironia socrática e a ironia moderna ou romântica.

A primeira consiste na atitude de Sócrates subestimar-se em relação aos seus interlocutores; ele se apresentava como ignorante e pede instrução, e somente para fazer demonstração aos demais que são ignorantes quanto ao que afirmam saber. Sócrates persuadido de não possuir nenhum saber positivo e impelido pela necessidade de saber, dirige-se aos seus interlocutores para com eles aprender, pelo que também neste processo de exame, desfaz, através de sua dialética, as presunções de conhecimento dos seus interlocutores, como podemos observar na clássica passagem da República[1] que se reporta a esta característica do método socrático:

"Sócrates - Não fiques zangado, Trasímaco, porque, se eu e este jovem cometemos um erro em nossa análise, sabes que foi involuntariamente.

Pois, se estivéssemos a procura de ouro, não nos inclinaríamos um para o outro, prejudicando assim as nossas oportunidades de descoberta; portanto, não penses que, procurando a justiça, coisa mais preciosa que grandes quantidades de ouro, façamos totalmente concessões mútuas,, em vez de nos esforçarmos o mais possível por descobri-la. Não penses isto de forma alguma, meu amigo. Mas creio que a tarefa ultrapassa as nossas forças. Por isso, é muito mais natural para vós, os hábeis, ter compaixão de nós do que testemunhar-nos irritação.

Ao ouvir estas palavras, Trasímaco soltou uma risada sardônica e exclamou: - Ó Hércules! Aqui está a habitual ironia de Sócrates! Eu sabia e disse a estes jovens que não quererias responder, que fingirias ignorância, que farias por não responder às perguntas que te fizessem!"

Outra faceta da ironia socrática, a qual não podemos negligenciar consiste no seu aspecto zombeteiro, presente em alguns momentos dos seus diálogos, como quando, naconclusão de sua apologia[2] registrada por Platão, no momento em que se esperava que implorasse ao júri por clemência, como era bem típico nessa circunstância,fanfarrona e zomba dos seus juízes utilizando da ironia sobre o tema da morte - a morte como o fim da consciência e a morte como continuidade:

"Façamos mais uma esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou então como se costuma dizer, trata-se de uma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!

Bem posso imaginar que, se a gente devesse identificar uma noite em que tivesse dormido tão profundamente que nem mesmo sonhasse e, contrapondo a essas as demais noites e dias de sua vida, pensar e dizer quantos dias e noites de sua existência viveu melhor e mais agradavelmente do que naquela noite, bem posso imaginar quem já não digo em particular, mas o próprio rei Pérsia fáceis de enumerar essas noites entre as outras noites e dias. Logo a morte é isso, digo que é uma vantagem, porque assim sendo toda a duração do tempo se apresenta como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse senhores juízes?"

A última alternativa podia ser agradável, porque assim, ele escaparia dos seus juízes que se apresentam como sendo juízes, e se iria ter co juízes verdadeiros, tais como, Minos, Radamanto, Éaco, e Triptoleno, que por serem justos merecem o título de juízes. No que se refere a primeira alternativa do dilema, Sócrates acredita que, através da morte, tornar-se em nada é um ganho maravilhoso.E ainda, no que tangea segunda alternativa do dilema, Sócrates manifesta o quão bom seria, no Hades[3], ir disputar com aqueles grandes homens do passado, para interrogá-los e examiná-los.

Esta peculiaridade da ironia de Sócrates, foi absorvida unilateralmente pela escola socrática cínica,fundada por seu discípulo Antístenes( 445 -365 a.C), a qual foi transformada em sarcasmo e cinismo. A tradição nos legou bela história, segundo a qual, Alexandre o Grande,encontrando Diógenes (404 ou 412 -323 a.C), o maior dos filósofos cínicos, sentado no chãoao lado de seu barril aonde morava, tomando sol, o grande imperador, apressou-se em lhe dizer: "Sou Alexandre o Grande, aquele que conquistou todas as terras. Peça-me o que quiser que eu lhe darei. O que você quer, ó Sábio?". Diógenes levantou os olhos e respondeu: "Senhor, apenas não tire de mim o que não pode me dar". Diógenes estava falando da luz do sol que o aquecia. O mesmo Diógenes tinha o hábito de andar pela cidade com uma lâmpada acessa em plena luz do dia, e numa certa ocasião, ao ser indagado por um curioso, disse que estava procurando um "verdadeiro homem".

A segunda forma de ironia, a romântica, parte do pressuposto da atividade criadora do eu absoluto. Quando o filósofo identifica-se com o Eu absoluto é levado a considerar a realidade mais concreta como uma mera sombra ou um jogo do Eu, numa atitude de subestimação da importância da realidade, não a tomando a sério. Seu principal vulto, dentre Solger, Fichte e Schlegel, foi Soren Kierkegaard, segundo o qual, a ironia socrática no seu aspecto fenomênico, aspecto este adotado neste trabalho como o mais coerente com o método socrático (o elemento dissimulador que visa um despertamento e purificação da consciência), é irrelevante e constitui um aspecto secundário do socratismo; segundo a sua famosa dissertação de 1841, a ironia Socrática é classificada como sensu eminentiori, isto é, não se dirige contra este ou aquele objeto individual,mas se dirige contra toda a realidade, em seu aspecto metafísico, em oposição ao que chama de ironia empírica ou fenomênica, a qual se dirige a um caso particular[4] .

Para Kierkegaard a ironia de Sócrates constitui uma negatividade infinita e absoluta. Ela é negatividade porque apenas nega, e nega toda a Realidade; e tem caráter de infinitude porque não nega este ou aquele fenômeno, e é absoluta, pois aquilo, e virtude deu que nega, é um mais alto , que contudo não é[5].

O grande erro de Kierkegaard ao considerar a ironia no seu aspecto metafísico, reduzindo todo o método socrático a esta concepção, não obstante sua indiscutível genialidade consiste em querer voar, como bem expressa Kant na sua Crítica da Razão Pura[6] com as asas da metafísica para além do fenômeno, e para além da capacidade do entendimento humano. Kierkegaard, ao dar pouco significado ao que ele mesmo chama de aspecto fenomênico ou empírico da ironia como elemento do método socrático, abstração esta já repleta de dificuldades, acreditou poder ir além dos textos que exaram o agir e a filosofia de Sócrates, desconfiando do testemunho aristotélico e xenofontino,construiu certamentetodo um edifício, belo e bem concatenado, porém, ilusório.

Se a ironia socrática não deve ser identificada com o próprio método, como tentou demonstrar Kierkegaard, não deve também ser confundida com a hipocrisia, a qual pode ser definida como o esforço constante para parecer bom, embora seja mau, pois ele somente procurava parecer diferente do que realmente era, e tal atitude está longe de ser um embuste; nem com o escárnioe o sarcasmo se identificam com sua ironia, os quais podem ser definidos como instrumentos de crítica cujo objetivo é magoar e ferir, características de uma vaidade dogmática que pretende possuir uma certeza inabalável. Pelo contrário, a ironia socrática é aquele elemento importantíssimo do seu método, o qual não possui um fim em si mesmo, pois não é mais que um instrumento utilizado para alcançar a finalidade da indução - o universal.A ironia na dialética socrática tem essencialmente um caráter purificador, pois visa, além de subestimar-se ante seus interlocutores, fazer a dissolvição de todo saber apregoado irrefletidamente por eles e reduzir a simplesmente nada todas as pretensões positivas, por este motivo também a ironia socrática parece estar ligada indissociavelmente com a refutação.



[1] Platão. A república. Os pensadores. Nova cultural, 1997, p.18.

[2] Platão. Defesa de Sócrates. Os Pensadores. Abril cultural. São Paulo: 1972. P.32.

[3]Hades. Na mitologia grega, oHades é o deus do submundo e das riquezas dos mortos. O nome Hadesera usado freqüentemente para designar tanto o deus quanto o reino que governa, nos subterrâneos da Terra.

[4] Kierkegaad, S.A. O conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates. Editora Universitária São Francisco.Bragança Paulista, 2006, p.221.

[5] Ibid, p. 226.

[6] Ver o Prefácio à Segunda Edição, e Do princípio da Distinção entre de todos os objetos em geral em fenômenos e numenos, na obra de Kant, Crítica da Razão Pura.