O Egresso : Inserção social
Newvone Ferreira da Costa
Este texto foi palestra proferida na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ) em outubro de 2009.


Bom dia a todos e a todas, é um prazer estar participando desse fórum permanente de execução penal presidido pelo Desembargador Álvaro Mayrink da Costa.
Vou dividir a minha fala em quatro eixos:
O primeiro uma análise da conjuntura
Em segundo o sistema prisional
Em terceiro o Egresso e
Em quarto a inserção social
Chegamos ao século XXI com realidades profundamente desumanas em todo mundo, mas principalmente, nos países em desenvolvimento. Milhares de seres humanos se encontram na mais absoluta condição de pobreza e miséria. Massas de trabalhadores estão desempregados ou em subempregos, sem condições mínimas e justas para a subsistência. A violência e os índices de criminalidade são fenômenos mundializados, de múltiplas causas e graves conseqüências sociais.
Numa conjuntura social e econômica marcada por profundas transformações, onde se ampliam os efeitos da globalização baseada nas leis do mercado. O estado neoliberal vem consolidando seu caráter desregulados, retirando progressivamente políticas sociais que enfrentem a questão social e suas múltiplas expressões, desresponsabilizando-se dos problemas sociais gerados pelo capitalismo e sua exacerbada concentração de renda e riquezas nas mãos de uma minoria.
No Brasil, a política neoliberal dos governos tem comprometido o processo de consolidação da democracia, cujo princípio fundamental é a garantia e o respeito aos direitos dos cidadãos, que passam permanentemente a ter que "lutar pelo direito a ter direitos". (Isso aconteceu em São Paulo pessoas vivendo debaixo de viaduto, a maior cidade do Brasil, com 14 graus)
Neste contexto é relevante tratarmos da questão carcerária na sociedade brasileira. A realidade dos presídios em todo país é o retrato fiel de uma sociedade desigual e da ausência de uma política setorial séria e estruturada que enfrente a ineficiência do sistema penitenciário. Hoje temos 469 mil presos que cumprem pena em espaço para 299 mil pessoas. O déficit é de aproximadamente 170 mil vagas. Os dados fazem parte do levantamento feito pelo DEPEN.
Portanto o quadro caótico em que se encontra hoje o sistema carcerário brasileiro revela uma desassistência generalizada nos presídios, reflexos da ausência de uma política que venha minimamente romper com o estado de degradação em que se encontram milhares de homens e mulheres presos.
Ao Serviço Social cabe a tarefa de confrontar-se com a realidade das prisões brasileiras, de modo crítico e ético, viabilizando respostas que superem os limites deste sistema punitivo, violador incessante dos direitos humanos da população brasileira.
Com isso vou analisar que as pessoas que passaram por unidades prisionais foram marcadas por pressões sofridas no período em que estiveram cumprindo pena. A prisão na verdade é um mundo particular cuja imagem mais freqüente envolta um mundo sombrio, degradante, onde o preso experimenta custos da infração dos códigos normativos da sociedade. É também apredinzagem no isolamento, segregação da família, dos amigos e de outras relações socialmente significativas, onde se espera que o preso vá cotidianamente refletir sobre o ato criminoso e sentir a representação mais direta da punição. Em outras palavras as unidades prisionais é uma escola do sofrimento.
Enfim é uma instituição total cuja singularidade é transformar os que nela entram, considerados indivíduos deteriorados, onde se exerce não apenas as técnicas de sofrimento, como oferecem a essa matéria um espaço de interação e aprendizagem, do qual resulta a conversão de novos adeptos a uma perspectiva criminosa. Porém isso não acontece e é transformada em universidade do crime- local de socialização e aperfeiçoamento de técnicas delinqüentes. Com isso destaco a frase dita ontem pelo Ministro da Justiça Tarso Genro "O SISTEMA PENITENCIÁRIO OU QUASE PARTE DELE É A VERGONHA DA DEMOCRACIA BRASILEIRA".
É por isso que, aos ouvir o egresso que passou por ela, significa compreender as marcas reais e simbólicas que trazem e carregam para o resto de suas vidas, principalmente quando passaram longos anos nessas escolas de sofrimento, para depois retornarem ao convívio social e enfrentarem desafios, por muitos considerados maiores do que os encontrados no interior das prisões.
Um "grande jurista italiano Francesco Carnellutti, ao se referir à situação dos presos que são postos em liberdade diz:" Infelizmente, na maior parte dos casos, a expectativa de sair da prisão é enganosa. O processo termina com a saída da prisão, mas a pena não. Quero dizer que o sofrimento e o castigo continuam. Pode-se pensar, especialmente no caso das condenações a amplos períodos de reclusão, nas dificuldades que a mudança de costumes, as relações interrompidas, os ambientes modificados significam para o egresso do estabelecimento prisional. Estes fatos não podem deixar de acarretar uma crise no rompimento. Mas isso é pouco. Na maior parte dos casos, o egresso não enfrenta a crise.
A questão é muito mais grave, o egresso crê não ser mais um preso, um encarcerado. Costumeiramente se diz ex-preso: nesta formula residem a crueldade e o engano. Crueldade por se pensar que alguém deve continuar a ser sempre o que foi. A sociedade associa indissoluvelmente cada pessoa ao passado. Portanto a pena continua mesmo quando o preso se livra das grades.
Outra reflexão que eu aponto é segundo Foucault, a prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes. "Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados em celas, ou que lhe seja imposto um trabalho inútil, (costura de bolas) para a qual não encontrarão utilidade, é de qualquer maneira não pensar no homem em sociedade; e criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa; queremos que a prisão eduque os detentos, mas um sistema de educação, que se dirige ao homem pode ter razoavelmente como objetivo agir contra o desejo da natureza? A prisão fabrica também delinqüente impondo aos detentos limitações violentas: ela se destina a aplicar a lei, e a ensinar o respeito por elas; ora todo o funcionamento se desenrola no sentido de abuso de poder" "Outra pessoa que expressou muito bem foi Graciliano Ramos quando diz:" O individuo animais desequilibrados, fizeram-nos assim, deram-nos almas incompatíveis. Sentimos em demasia e o pensamento já não existe: funciona e para. Querem- livre não entende a nossa vida além das grades, as oscilações de caráter e da inteligência, desespero sem causa aparente, a covardia substituída por atos de covardia doida. Somos nos reduzir a maquinas. "Avançamos, recuamos, nem sabermos para onde nos levam".
Não podemos falar no egresso do sistema prisional se não falarmos primeiramente no processo de reintegração e ou ressocialização dentro da prisão. Pois não vejo que esteja desvinculado um do outro. As conseqüências positivas aos presos depois de sair da prisão, depende do trabalho desenvolvido no cumprimento da pena. Este pensamento vem afirmar a partir da minha experiência enquanto assistente social do sistema prisional há 17 anos e só na penitenciaria Lemos Brito há oito anos. Preciso apontar duas Lemos Brito antes de 2007 na Frei Caneca e depois localizada em Bangu. Na Frei Caneca tínhamos uma penitenciária que realmente cumpria a lei de execução penal que prevê cubículos individuais, trabalho, escola, oficinas, que prevê as assistências: educação, material, social, saúde, jurídica e religiosa Tínhamos varias oficinas de trabalho, (oficina mecânica, fabrica de moveis de banheiro, padaria de pão congelado) todas gerenciadas pela Fundação Santa Cabrini, tínhamos vários trabalhos que chamo de artesanais e culturais, onde o preso fazia (confeccionava) para ajudar na sua renda familiar, muitas famílias compareciam na unidade para visitar através dessa renda (desse dinheiro), eram artesanatos de papel, madeira, garrafas (navio dentro da garrafa), pintura, bijuterias, enfim varias técnicas aprendidas e desenvolvidas por eles mesmos; mesmo que empiricamente, porem com um objetivo, o trabalho, ocupação do tempo ocioso dentro do cárcere. Muitos presos que eu fiz relatório para progressão de regime ou para livramento condicional eu consignava o seu trabalho, a sua atividade dentro da unidade prisional e muitos me afirmavam que seguiriam o ofício que aprendeu dentro da unidade, fora dos muros. Muitos presos eu orientei para quando fosse de liberdade poderiam procurar a autonomia da prefeitura para serem artesãos. Expor seus trabalhos nas feiras de artesanato que existem na nossa cidade.
Não posso esquecer uma das atividades mais enriquecedora dentro da unidade prisional eram as aulas teóricas e práticas de música, onde tínhamos uma pequena orquestra, onde surgiram também três grupos musicais com os ritmos de rock, gospel e samba. Hoje tenho conhecimento que muitos presos continuam a sobreviver nesta cidade através da música. Tínhamos uma biblioteca com mais de dois mil livros, onde a leitura era incentivada por todos os profissionais da unidade prisional.
Enfim com todos esses trabalhos, o preso da Lemos Brito a antiga Frei Caneca tinha responsabilidade pessoal e coletiva, no aspecto de submeter à ordem, disciplina, normas e determinações existentes. Tenho hoje certeza que o preso da antiga Lemos Brito tinha consciência que estava na unidade prisional por um fato criminoso praticado por ele e a pena é, antes de tudo, uma retribuição de ordem moral ao fato cometido. Como qualquer pessoa humana, a liberdade significa essencialmente responsabilidade pelos atos desenvolvidos em um leque de ações que tem diante de si. Envereda-se pelo caminho do cometimento de atos anti-sociais e típicos previstos na lei, deve-se sujeitar a pena que lhe é imposta e as suas conseqüências: a ausência de liberdade e a observância das regras e normas da prisão.
Enfim o preso deve - se convencer de que tem de assegurar a sua participação nesta ordem, normas e determinações, não só pela observância pessoal, como também pela co-responsabilidade de ajuda no desenvolvimento do sistema. Significa uma co-participação em todas as questões de comportamento próprio e coletivo no presídio, de respeito aos colegas e autoridades administrativas, de ajuda inestimável nas questões de segurança coletiva, de ausência de presença nefasta de drogas e da fabricação de estiletes no aconselhamento para evitar o cometimento de faltas graves ou fugas, na compreensão e responsabilidade pelas sanções decorrentes de faltas cometidas. Isso eu me lembro muito bem do papel do Ronaldo na Lemos Brito, estar sempre com este pensamento da co-participação no comportamento coletivo no presídio.
Como está a Lemos Brito em Bangu, dividida em duas galerias A e a B, presos ociosos, quatro presos por cubículos, escola estadual só para uma galeria, escola sem nenhuma infra estrutura. Sem artesanato, sem nada absolutamente nada para fazer , apenas o futebol, presos extremamente nervosos. E sem nenhuma perspectiva de mudança. Estamos com muita dificuldade tentando voltar com um mínimo de projetos que fazíamos na antiga Lemos Brito. Não sei se conseguiremos... e agora?Eu me pergunto, por um problema de concepção política, acabou todo um trabalho que ali exercíamos, para que?O que levou a antiga Frei Caneca?Hoje Lemos Brito é conhecida como unidade prisional de castigo. Pergunto-me é isso que esperamos do homem que esta preso e que será o egresso de amanhã?O que nós oferecemos para esse homem?
Qual o programa que a Secretaria Estadual de Administração Penitenciaria tem para egresso do sistema prisional? Não sei, não tem.
O que penso disso é que teríamos que ter iniciativas que visem fomentar a participação social no processo de reintegração da população prisional, articulando redes de serviços, pessoas e instituições, a partir de uma visão de universalidade de acessos aos bens e serviços públicos. Ou seja, com uma maior mobilização comunitária com vistas à reintegração social de presos, egressos e familiares.
Em termos conceituais entende-se por reintegração social o processo pelo qual a sociedade (re) inclui aqueles que ela excluiu, através de estratégias nas quais esses excluídos tenham uma participação ativa, isto é, não como meros objetos de assistência, mas como sujeitos.
Como exemplo identifico um preso que saiu de livramento condicional e pediu para retornar a unidade, pois ele estava passando necessidade nas ruas, não tinha dinheiro para comer, não tinha dinheiro para alugar um barraco, enfim virou morador de rua, essa é a nossa realidade.
Identifico outro preso, que passou quase 30 anos encarcerado, saiu a três meses da Lemos Brito de indulto por não ter cometido nenhuma falta disciplinar, porém ao chegar à rua ficou com medo de andar, sorte que sua família estava presente para ampará-lo.
E aí eu faço uma reflexão; meus senhores e minhas senhoras não adiantam apenas a luta pela melhoria do sistema prisional, se ao retornar ao convívio da sociedade ele é rejeitado, estigmatizado, forçado muitas das vezes a delinqüir por falta de oportunidade.
É imprescindível que o estado e a sociedade encarem a cruel realidade deixando o campo das discussões meramente acadêmicas e políticas para uma solução urgente a partir do conhecimento da pessoa do egresso, ou seja, quem ele é e quem o produz. A própria lei de execução penal em seu art. 26 define ser o egresso o condenado liberado definitivamente, pelo prazo de um ano após a sua saída do estabelecimento. A definição objetiva qualificar o libertado, que a priori, deveria receber do estado à assistência previsto nos artigos 25/27 da citada lei como missão de orientá-lo, apoiá-lo e reintegrá-lo a vida em liberdade, consistindo esta assistência em alojamento e alimentação durante dois meses, com possibilidade por uma única vez e, na orientação em seu retorno ao trabalho.
Lembro de mais um caso de um preso que era natural da Bahia, (toda família residente lá) o temor dele era muito grande, sempre estava no serviço social me perguntando Dona Newvone o que eu vou fazer ao sair de livramento condicional, pois não tenho nenhuma família aqui no Rio de Janeiro, quero voltar para o meu estado, como devo proceder, aonde vou morar, aonde vou arrumar emprego, enfim o que eu vou fazer? Esses exemplos são muitos. Por fim também esta na LEP que a obrigação legal é assistir o egresso e o estabelecimento é o Patronato , onde vimos no Rio de Janeiro problemas graves nesse lugar, lugar este que possui programas sociais isolados, implantados por alguns administradores penitenciários idealistas, enfim medidas isoladas pois ainda não assumidas pela sociedade que irá verdadeiramente receber o egresso.
Infelizmente esta sociedade possui um alto índice de desemprego, miséria proporcionando o afloramento da pobreza, criando assim mais probabilidade do aumento de condutas delitivas.
Assim, a ausência de políticas publicas somadas ao estigma de ex-preso forma um quadro pouco promissor, agravado ainda pelo desinteresse de grupos econômicos e agentes de governo na implementação de recursos e promoção de esforços no sentido de garantir ao egresso do sistema penitenciário meios de se profissionalizar e se capitalizar em termos de conhecimentos para inseri-se no mercado de trabalho quando egresso do sistema prisional.
Faço um questionamento quando estou fazendo o relatório social pra livramento condicional existe chance de reinserção social aos rotulados do sistema prisional?A resposta dependerá da visão de cada um. Não devemos e não podemos desanimar. Há sempre uma luz no final do túnel. Quem foi minha aluna sabe disso como sou empolgada com essa temática, e como eu estudo isso.
Como esperar que o egresso retorne para um lugar que sequer não existia. Voltar para um lugar que é seu. Sonho para ser compartilhado e construído por toda a sociedade, principalmente pelos profissionais do serviço social.

Bibliografia

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