O discurso de Foucault e o nosso. 

  “Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela tivesse me dado um sinal, mantendo-se por um instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem partisse o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível”.

“Gostaria de ter atrás de mim uma voz que dissesse: `É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as há, é preciso dizê-las até que elas me encontrem, até que me digam - estranho castigo, estranha falta, é preciso continuar, talvez já tenha acontecido talvez já me tenham dito talvez já me tenham levado ao limiar de minha história, diante da porta que se abre sobre minha história, eu me surpreenderia se ela se abrisse.´”

(Michel Foucault, A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de Dezembro de 1970)

 

  Esta foi a introdução do belo discurso que Michael Foucault pronunciou em sua aula inaugural no College de France, que ficou conhecido como “A ordem do discurso”. Neste trecho podemos observar como o autor se desloca da condição de criador de um discurso, para ser apenas o continuísta de um discurso que transcende a sua própria existência. Tal desejo se dá, segundo o autor, pelo imperativo: “é preciso continuar”, que tal voz projeta sobre ele.

  Podemos inferir hipoteticamente entre várias possibilidades de interpretação para esta analogia, porém, o que eu mais admiro neste trecho é a sujeição do preletor ao direcionamento que o tal discurso transcendente já possui, de forma que o orador se coloca como apenas uma lacuna por onde o discurso deve passar. Como o leito do rio que desaparece dando o seu lugar as torrentes e corredeiras. Ser lacuna é permitir que o discurso siga seu caminho natural sem impor a ele desvios que modifiquem seu curso original. Represá-lo impediria seu constante prosseguir, pois, o imperativo é: “precisamos deixá-lo continuar sempre”.

  A sujeição do poema ao trabalho de leitura do leitor, a sujeição do apaixonado ao ser que lhe comove, são representações da postura daquele que se dispõe a precipitar-se no ato do discurso. Não pode este, de forma alguma, supor que tal discurso surge de si mesmo, negando forçosamente o processo histórico que nos trouxe até aqui, mas deve simplesmente ocupar o seu lugar na lacuna do tempo e permitir, como dormentes do trilho, a passagem da voz do discurso. Sendo necessário negar a autoria para pertencer ao tempo. Se eu alego que tal discurso, hoje proferido por mim, teve inicio em mim mesmo, demonstro não possuir conhecimento do processo histórico que me permitiu pensar em tal discurso, demonstro ignorar um fato importante: este discurso, ou sua possibilidade, chegou até mim de alguma forma. Este discurso é um produto e não um fator.

  É fácil perceber que a existência do marinheiro “Mão Negra”, José Maria Candido, está diretamente relacionada a uma referencia simbólica como Zumbi dos Palmares, pois, ambos estão diretamente relacionados a um caráter de resistência politica.  O difícil é perceber em que seguimento da produção do pensamento eu me encontro enquanto, inserido em uma rede de conhecimento global, ao exercitar o ato de criar, que erroneamente julgo intuitivo, mas que, na verdade, tem determinada genealogia histórica. Tudo que digo hoje pertence a uma genealogia do conhecimento que precede minha existência e carrega desde muito tempo os sinais, ou referenciais de sentido, que hoje posso deduzir resumir ou inferir sobre. Pertencemos a uma herdade de pensamentos, seguimos alinhados a um sentido histórico ancestral que remete a certa tradição humana de criatividade que não podemos renegar ou o preço a ser pago é nos desumanizarmos. Quando deixamos de produzir caminhos de conhecimento renegamos a esta condição criativa e criadora. Sendo Foucault quem era, é obvio que não cometeria este anacronismo epistemológico, a nós, todavia, cabe à mesma responsabilidade na qualidade de quem se situa, historicamente, na incumbência de dar continuidade ao legado deste discurso.

 E que discurso seria este o qual planejo incumbir-lhe de prosseguir? Deixemos o próprio Foucault responder:

- “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que e pelo que se luta o poder do qual nos queremos apoderar”. (pag. 10)

  Pelo que temos lutado, este é o nosso discurso impronunciado, ainda assim é, a parte mais audível da nossa existência. Mais que denunciarmos por meio do discurso, é dever de cada um tomar postos em militância ativa pelo que se acredita. “Aquilo por que e pelo que se luta”, em minha opinião, pode ser traduzido como causas apriorísticas. Estas causas que devem seguir simples princípios como justiça, verdade e razão norteariam nossa disposição. É hora de demonstrarmos quem somos o que somos, e porque, para evitarmos confusões ou decepções quanto ao destino que buscamos. Devemos tomar o ensino de Foucault em suas várias vertentes e compreender que assim como tudo o que hoje existe é fruto de construções culturais historicamente referenciais, é possível a nós, transformarmos a concepção de realidade se pudermos, obviamente como resultado de estudos sistemáticos, alcançarmos a compreensão de como esta realidade cultural foi arquitetada de forma não natural. Os simbolismos que hoje extraímos da organização social de forma alguma podem ser considerados naturais, pois, derivam de um querer predominantemente excludente e patologista.  A indústria patologista (de produção de doenças) obtém retorno financeiro abundante de sua sanha de fabricar, doentes para seus chamados “tratamentos”, que em sua maioria não curam, somente preservam sob controle de sua custosa terapia aqueles que ela mesma define como doentes. Extrair doentes de uma sociedade doente não é assim tão complicado! Experimente realizar todos os sonhos de  consumo que propõem para você o tempo todo e ainda assim, conseguir se constranger diante do mal estar no qual esta inserida a civilização. A partir do momento que determinado individuo se aproxima de concluir o sonho alienado que comprou, logo ocorrerá uma conveniente “atualização” do sonho, sendo preciso angariar mais fundos para concretização deste sonho de ultima geração. Sendo que apenas uma parcela ínfima da população é capaz de viver os sonhos prometidos assim que são propostos, cabendo a quase totalidade dos outros “iguais”, apenas trabalharem para produzir boas condições, aos poucos “bem aventurados” que podem se servir a vontade enquanto aguardamos como “demanda reprimida” (é assim que os economistas chamam aos pobres como nós), aguardar até o dia do excedente nas pontas de estoque da tecnologia e do conforto. Dentro desta roda viva de decepções e de sonhos não realizáveis, os patologistas simbólicos se aplicam em advertir que o problema esta em nós, e que se não fossemos assim tão deprimidos, desmotivados, com baixa autoestima, conseguiríamos todo quanto o sonho ideológico nos promete.

- Se você acreditasse mais em deus... - Qual deus o dono dos bancos?

- Se você acreditasse mais em deus... - Qual deus o dono das farmácias?

Se você acreditasse mais na constatação racional de que a nossa sociedade é uma fabrica de doenças e de crimes, pois, fabrica acima de tudo desigualdade de condições cujo resultado é o que se pode ver pela janela. Olhando pela teletela vemos apenas aquilo que desejam nos mostrar, sendo impossível observar a realidade por ela. Advertem que hoje temos pleno emprego no Brasil, porém em seguida firmam que 12 milhões de brasileiros, em idade ativa, estão desempregados, como pode ser isso...?    Pagam milhões para correrem atrás de uma bola, e mil e duzentos para que cuidem do futuro, como explicar esta desigualdade...? Afirmam eles que se seguirmos neste caminho de desigualdade o resultado será certamente a justiça social... Há, Há, Há!!! Cultivam celeiros de assassinos e os alimentam com crack, abusam de pais e filhos, expõem mulheres em vitrines como carne em açougue, valorizam os músculos mais que as ideias.

Se não concordamos e nos calamos seremos culpados por omissão. Podemos, todavia, buscar saber a genealogia desta prática de poder, se quisermos podemos. Temos a nosso favor a capacidade de ouvir a voz do discurso prático que Foucault ouvia a bandeira que hoje cabe a nós carregar, ainda jaze caída, mas não está esquecida. Olhe ao seu redor e pense: - O que mata mais as armas da ROTA ou a minha omissão? 

Ser é não permitir que outro pense por você e assim assumir a grande responsabilidade de existir em plenitude. A única maneira de se fazer alguma coisa ser eterna é trocar o invólucro para manter seu conteúdo.

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