O Direito Penal na tutela das Cobaias Humanas:

Limites de quem coloca o próprio corpo à disposição da ciência

 

 

Jayane Antônia Alves

 

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. A proposta e o público-alvo para os testes; 2. As cláusulas contratuais, consentimento e responsabilidade; 3. A interferência do Estado por meio do Direito Penal; REFERÊNCIAS.

 

 

RESUMO

 

 

Este artigo tem por escopo apresentar a problemática envolvida entre a disposição do próprio corpo para testes em humanos utilizando substâncias cujos efeitos não são devidamente conhecidos e a atuação do Estado, por meio do Direito Penal, para coibir essa prática, uma vez que seu nível de periculosidade é elevado. O estudo passa ainda pela questão da responsabilidade, visando averiguar se cabe a solidariedade entre o paciente que consente tal procedimento e o profissional que se presta a tal ato. Além disso, o presente artigo nos remete à ponderação de valores decorrente da manifestação da autonomia do indivíduo e da interferência do Estado para garantir a superioridade do direito a vida de todos os cidadãos.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

 

 

Cobaias Humanas. Paternalismo Penal. Consentimento. Direitos Humanos. Testes.

 

 

Introdução

Não é de agora que a humanidade assiste o avanço de pesquisas biomédicas que envolvem estudos com seres humanos. Desde a época das Grandes Guerras há indícios de que eram realizados experimentos com reféns nas prisões e nos campos de concentração. Outro exemplo, apresentado inclusive pela criminologia, é a atividade investigativa que o italiano Cesare Lombroso fazia nas prisões com a finalidade de traçar o perfil do “sujeito criminoso”.

Contudo, atualmente os experimentos que envolvem seres humanos se apresentam de maneira mais invasiva, uma vez que submetem os sujeitos a um regime quase de tortura. Escondidos no objetivo de desenvolver conhecimentos biológicos e médicos para propor a cura ou tratamento de doenças até então desconhecidas, os abusos em tal prática acabam por promover uma “coisificação” no indivíduo, visto que sua existência torna-se manipulada como se fosse apenas um produto da ciência.

Diante dessa colocação, o Estado, representado pela aplicação do Direito Penal, busca coibir essa atividade, que além de representar alto risco para as “cobaias humanas”, trazem em seu seio outras ilicitudes, tais como o uso de má-fé na escolha proposital do público alvo das pesquisas, o consentimento viciado pela proposta financeira, o impedimento de ressarcimento por possíveis danos, bem como a possível ausência de responsabilidade médica.

1- A proposta e o público-alvo para os testes

A cada ano a indústria farmacêutica e os centros de pesquisa apresentam à sociedade estudos sobre novos medicamentos e tratamentos no intuito de restabelecer a saúde ou mesmo promover a cura das mais diversas moléstias humanas. Contudo, para que estes medicamentos sejam disponíveis para consumo, é necessário que eles passem por testes, inicialmente em animais e posteriormente em humanos.

Os remédios expostos em farmácias tiveram que passar por testes em voluntários antes que fossem aprovados, sem contar que “mais de 10 mil compostos são testados para que apenas um chegue ao mercado” (MENAI, 2010, p. 58). Sendo assim, infere-se que muitas pessoas têm que se sacrificar a cada nova droga que surge.

Visando alcançar esses indivíduos dispostos a colaborar com a ciência, os estabelecimentos farmacêuticos e outros ligados a pesquisa, tratam de reproduzir e divulgar anúncios assim que brota um novo estudo. Esses anúncios geralmente se apresentam como publicações nos jornais, nas revistas, na internet e, em países como os Estados Unidos, chegam a ser divulgados até pela televisão. (MENAI, 2010, p. 58).

Nas publicações há perguntas que, muitas vezes, induzem os interlocutores a acreditarem na possibilidade de cura de seus males e, levados por essa esperança, os promitentes voluntários saem a procura dos responsáveis pelos anúncios na intenção de se submeter ao tratamento.

Contudo, não só a promessa de cura atrai o interesse dessas pessoas, mas também as quantias de dinheiro anexas às propostas. Desta forma, pode se pressupor que aqueles que se comprometem a ajudar a ciência se dividem entre os que precisam de saúde e os que precisam de dinheiro. Em ambos os casos, a questão financeira se apresenta, visto que, os que precisam de saúde também se submetem visando receber o tratamento e não pagar nada por isso, ou seja, podem se curar gratuitamente, apenas dispondo seu corpo; e os que precisam de dinheiro “vendem” seu corpo, ou partes dele, objetivando receber as quantias oferecidas pelos cientistas, médicos, farmacêuticos e outros profissionais que estudam e trabalham com o corpo humano. (MENAI, 2010, p.58).

Diante de tal colocação, cabe refletir que os principais atraídos pela oportunidade de dinheiro rápido, o que não implica que este é conseguido de forma fácil, são pessoas de baixa renda e de baixa escolaridade, além de desempregados e estudantes que pretendem complementar o orçamento. (MENAI, 2010, p.58)

Remetendo-se a dados históricos, nas épocas de crise financeira, “em regiões dos EUA, laboratórios e centros de pesquisa passaram a ser procurados por todo tipo de gente, interessada em acrescentar qualquer centavo à renda doméstica” (MENAI, 2010). Isso prova que a questão do dinheiro é um importante fator atrativo para as “cobaias humanas”, tanto que existem até sites dedicados apenas a ofertas de experimentos.

No Brasil há vedação expressa em lei para a prática de tal ato, pois segundo dados fornecidos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), a população brasileira é em sua maioria pobre e seria alvo fácil para pesquisas científicas que oferecem certas quantias aos promitentes voluntários. (TANNOUS, 2003 apud MENAI, 2010; p.59).

Analisando o caso concreto, em 2003 a Conep chegou a interromper estudos realizados no Amapá cujo objetivo era averiguar os hábitos do mosquito da malária. Para tanto, os pesquisadores ofereciam cerca de R$ 30,00 (trinta reais) aos moradores das comunidades ribeirinhas da região para que eles se deixassem picar pelos insetos e, além disso, alimentá-los com seu sangue. (TANNOUS, 2003 apud MENAI, 2010; p.59).

A intervenção da Conep, em vez de ser vista com bons olhos, foi repudiada pelos moradores, pois aquela era uma fonte de renda complementar, e o dinheiro, apesar de ser relativamente baixo diante do risco do procedimento, fazia muita diferença ali. (TANNOUS, 2003 apud MENAI, 2010; p. 59).

2- As cláusulas contratuais, consentimento e responsabilidade

Quando decidem se submeter aos experimentos, as cobaias humanas assinam um contrato com os centros de pesquisa, de forma a deixar explícita a permissão para o uso de seu corpo. Dentre as cláusulas contratuais, se vislumbram a questão do consentimento válido e esclarecido; as chances de sucesso ou fracasso da pesquisa, bem como seus efeitos e riscos; a responsabilidade do profissional que gerencia a pesquisa e do participante e os direitos de indenização por possíveis danos e prejuízos ao paciente. (MENAI, 2010, p. 59-61).

Os contratos apresentados aos voluntários devem conter, dentre outras informações, o caráter do experimento (que é científico), os objetivos (de testar a nova droga), os possíveis efeitos (bons ou ruins, ainda que sejam só hipóteses), a possibilidade de desistência (bem como o auxílio profissional para sair com segurança), a ocorrência do risco de morte (caso a pesquisa seja altamente perigosa), a garantia de sigilo (e as hipóteses em que este pode ser dispensado) e por fim, mas não menos importante, a possibilidade de indenização por lesões provenientes do estudo (trata-se dos direitos legais inerentes ao indivíduo). (MENAI, 2010, p. 59-61).

A questão da exposição dos riscos dos procedimentos é o que vai dar fundamento para que os voluntários manifestem seu consentimento esclarecido, para que este seja válido, pois segundo o Código de Ética Médica (CEM), no capítulo IV que trata dos Direitos Humanos, diz que “é vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte” (CEM, 2009). Sendo assim, não pode o médico e outros profissionais envolvidos nas pesquisas, submeter o paciente a qualquer tipo de procedimento sem a autorização livre e esclarecida deste.

Em se tratando dos experimentos, o CEM destinou o capítulo XII do seu conteúdo, que fala justamente sobre Ensino e Pesquisa Médica, para, além de indicar como estas devem proceder, enfatizar a questão do consentimento. Nos dispositivos em destaque diz que:

É vedado ao médico:

Art. 100. Deixar de obter aprovação de protocolo para a realização de pesquisa em seres humanos, de acordo com a legislação vigente.

Art. 101. Deixar de obter do paciente ou de seu representante legal o termo de consentimento livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo seres humanos, após as devidas explicações sobre a natureza e as consequências da pesquisa. (CEM, 2009).

Sendo assim, além de obter o consentimento do paciente, as pesquisas devem ser efetuadas de forma estarem de acordo com as diretrizes éticas traçadas pelos órgãos que regem a medicina e outras legislações vigentes que também podem ser relacionadas ao caso.

Nesse sentido, a responsabilidade do indivíduo ao aceitar ceder seu corpo para pesquisas atinge apenas os limites de seu consentimento esclarecido e termina quando da ocorrência de desvio de conduta do profissional responsável.

Caso os médicos, pesquisadores e/ou cientistas submeterem o voluntário a tal procedimento sem seu consentimento ou, depois de obtido consentimento, realizarem operação diversa da acordada, deverão responder civil e criminalmente por seus atos, ainda que exista a alegação de que agiam em exercício regular de direito, com base no art. 23, III do Código Penal. Desta forma, a responsabilidade recai no excesso punível, que de acordo com o mesmo código, no parágrafo único desse mesmo artigo: “o agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”.

3- A interferência do Estado por meio do Direito Penal

Dando continuidade ao conteúdo já exposto no decorrer deste trabalho, nos resta analisar de que modo o Estado, utilizando-se do Direito Penal, protege o indivíduo contra os abusos decorrentes de tais procedimentos, além de condenar as ilicitudes envolvidas desde a proposição até a conclusão das pesquisas.

De início, depara-se com a escolha proposital do público alvo pra onde são direcionadas as pesquisas, visto que trata-se não só de doentes, mas de pessoas desprovidas de recursos financeiros; seja para bancar um tratamento médico, seja para garantir a própria subsistência. Essa colocação trás como conseqüência o consentimento viciado pela proposta financeira, o que põe em dúvida a segurança jurídica dessa disposição. Como a expressão de aceitação do voluntário implica em aferir riscos para sua vida e saúde, Rogério Greco considera a possibilidade de relativizar esse consentimento, dizendo:

Se o bem jurídico que sofre perigo de lesão for a integridade corporal ou a saúde da vítima, entendemos que o seu consentimento terá o condão de afastar a ilicitude da conduta levada a feito pelo agente. Contudo, como também já afirmamos, se o comportamento perigoso trouxer em si a probabilidade de ocorrência de lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, ou mesmo perigo para a vida da vítima, nesse caso entendemos que o consentimento não terá força suficiente para afastar o delito. (GRECO, 2011, p. 312).

Desta forma, ainda que haja manifestação de vontade e aceitação, cabe a responsabilização dos profissionais envolvidos nos testes, uma vez que os riscos advindos destes são altos e se houver algum erro, os danos provocados podem ser irreversíveis.

O Direito entende que não se deve colocar seres humanos na condição de cobaias para experimentos científicos, pois considera que tal ato afronta a Constituição Federal no que toca ao princípio da dignidade humana (Art. 1º, III) e o direito à vida (Art. 5º, caput), que também é defendido no Código Civil com irrenunciável e intransferível.

A afronta se dá, de acordo com o Código Penal, ao “expor a vida ou saúde de outrem a perigo direto e iminente” (Art. 132, CP), que é o que ocorre com as pesquisas. E assim sendo, tal crime resulta em uma punição correspondente.

 

 

 

REFERÊNCIAS

ANGHER, Anne Joyce (Org.).Vade Mecum: acadêmico de direito. 12. ed. São Paulo: Rideel, 2011.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2007.

BRASIL. Resolução nº 1.931 de 17 de setembro de 2009. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, 24 set. 2009. Seção I, p. 90-2
Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, 13 out. 2009. Seção I, p. 173 – RETIFICAÇÃO.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 5. ed. Niterói: Impetus, 2011.

MENAI, Tania. SUPERINTERESSANTE. Vida de Cobaia. São Paulo: Abril. p. 57-61.