O DIREITO BRASILEIRO E A FAMÍLIA SOCIOAFETIVA: uma análise a respeito dos seus efeitos na obrigação de prestação alimentícia.* 

        Mylla Soares Almeida **

Ruana Talita Penha de Sá   

RESUMO 

O direito brasileiro está passando por uma profunda mudança de paradigmas. No ramo do direito de família, um dos fenômenos que merece destaque é o da desbiologização da paternidade, a partir do qual a família pode ser constituída através de laços afetivos e não apenas sanguíneos. Nesse sentido, busca-se abordar a legitimidade da exigência de obrigação de prestação alimentícia quando estabelecido o vínculo socioafetivo, perquirindo-se acerca da possibilidade de estabelecimento deste tipo de parentesco.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

 

Família socioafetiva. Prestação alimentícia. Afeto. Alimentos.

 

Introdução

Embora o Novo Código Civil tenha trazido mudanças significativas em comparação ao diploma revogado, o legislador permaneceu silente a respeito da filiação socioafetiva, visto que tratou-a apenas do ponto de vista biológico.

A paternidade socioafetiva é aquela que se funda no afeto entre as partes, gerando um vínculo através da convivência, não obstante a inexistência de vínculo biológico. Vê-se, pois, que o reconhecimento da paternidade socioafetiva é um meio de garantir o bem estar do menor, afastando as limitações impostas por uma visão estritamente do ponto de vista biológico. Exemplo é o da relação existente entre madrastas, padrastos e seus enteados, situações que podem dar ensejo à casos controvertidos envolvendo a possível exigibilidade de prestação alimentar, nosso objeto de estudo.

A obrigação de prestar alimentos está disciplinada no Código Civil, que dispõe que estes são devidos por parentes, cônjuges e companheiros, observada a possibilidade econômica dos alimentantes e da necessidade do requerente. Depreende-se, portanto, que se não se prova a relação de parentesco, a prestação é inexigível. O parentesco, por sua vez, pode ser aquele natural ou civil (art. 1593, CC). Analisar-se-á a possibilidade de entender o parentesco socioafetivo como forma de parentesco civil e, a partir daí, reconhecer o dever de prestação alimentícia decorrente de tal vínculo. Este trabalho possui como objetivo perquirir acerca da possibilidade e legitimidade da imposição de prestação alimentícia àqueles que não possuem vínculo biológico, mas afetivo, em detrimento do dever conferido aos pais biológicos.

1 A família socioafetiva na legislação brasileira

Um dos desafios do Direito é acompanhar as mudanças apresentadas na sociedade sem tornar-se ultrapassado, dando conta de tutelar as mais diversas espécies de situações existentes – as quais, anteriormente, eram inimagináveis. Atualmente, ganha relevância a discussão a respeito do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva.

A filiação socioafetiva não está lastreada no nascimento (fato biológico), mas em ato de vontade, cimentada, cotidianamente, no tratamento e na publicidade, colocando em xeque, a um só tempo, a verdade biológica e as presunções jurídicas. Socioafetiva é aquela filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em mão-dupla como pai e filho. Apresenta-se, desse modo, o critério socioafetivo de determinação do estado de filho como um tempero ao império da genética, representando uma verdadeira desbiologização da filiação, fazendo com que o vínculo paterno-filial não esteja aprisionado somente na transmissão de gens (ROSENVALD; FARIAS, 2012, p. 670).

A Constituição Federal de 1988, contudo, não previu expressamente a existência da filiação socioafetiva. Todavia, Paulo Lôbo (apud GOMES 2008, p. 25) infere que na Carta Magna podem ser encontrados uma gama de fundamentos que asseguram o respeito ao afeto e baseiam o estado de filiação numa perspectiva abrangente, sem limitar-se ao seu caráter biológico. São exemplos:

[...] todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, §6º); a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, § 5º e 6º); a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º), não sendo relevante a origem ou a existência de outro pai (genitor); o direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227, caput) (LOBO apud GOMES, 2008, p. 25)

O novo Código Civil também não fez referência a esta forma de filiação. Fernando Gomes (2008, p. 28) leciona que foi papel de doutrina e da jurisprudência, interpretando o art. 1593 do referido diploma, adequar a legislação aos anseios sociais. Tal artigo dispõe que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Assim, a doutrina se utiliza de um exercício interpretativo e conclui que “parece induvidoso que o Código Civil reconheça, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo a paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho” (FACHIN apud GOMES, 2008, p. 34). Maria Berenice Dias pontua:

(...) a verdade genética deixou de ser o ponto fundamental na definição dos elos parentais. Assim, a paternidade não pode ser buscada nem na verdade jurídica nem na realidade biológica. O critério que se impõe é a filiação social, que tem como elemento estruturante o elo da afetividade: filho não é o que nasce da caverna do ventre, mas tem origem e se legitima no pulsar do coração (apud GOMES, 2008, p. 33)

Por fim, importante destacar que foi consolidado o entendimento doutrinário quanto ao reconhecimento da paternidade socioafetiva por meio dos Enunciados 108 e 256 da Jornada de Direito Civil, este último assim redigido: “a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil)” (ROSENVALD; FARIAS, 2012, p. 671). A posse do estado de filho é o critério utilizado para reconhecer este vínculo, e caracteriza-se com a presença de três elementos: nome, trato e fama. A saber:

a utilização pela pessoa do nome daquele que considera pai, o que faz supor a existência do laço de filiação; o tratamento, que corresponde ao comportamento, como atos que expressam  a vontade de tratar como faria um pai, e a fama, que constitui a imagem social, ou seja, fatos exteriores que revelam uma relação de paternidade com notoriedade – a pessoa aparenta à sociedade ser filho do pretendido pai (AZEVEDO, 2007, p. 48)

Assim, vê-se que a filiação não é unicamente aquela constituída por vínculo biológico, pois não se pode ignorar o vínculo afetivo que muitas vezes une pais e filhos, ainda que inexistente o vínculo consanguíneo.

 

2  A obrigação de prestação alimentícia: uma abordagem geral

 A pedra angular quanto a obrigação de prestar alimentos assenta-se no principio da dignidade da pessoa humana e solidariedade social e familiar, elencadas na CF/88, visto que esta prestação de alimentos tem caráter personalíssimo (DINIZ, 2012, p.627).

O Código Civil de 2002, nos dispositivos 1.694 e 1.695, elenca as regras basilares que indicam as pessoas que são incumbidas a prestar alimentos e aqueles que podem requerê-los. O dispositivo 1.965 prescreve os pressupostos para a obrigação alimentar, qual seja, razão do parentesco, vinculo conjugal ou convencial, contudo, não serão todas as pessoas com vinculo familiar que irão prestar alimentos, senão os ascendentes, descendentes, irmãos unilaterais ou bilaterais e o ex-cônjuge, com algumas ressalvas (DINIZ, 2012, p.631).

Quanto à necessidade do alimentando, é imprescindível a prestação alimentícia, daquele genitor se aquele se encontra incapacitado, seja pela sua menoridade ou deficiência mental, interditado ou impossibilitado de trabalhar pra obter sua subsistência. Deve-se ponderar a possibilidade econômica do alimentante, no que tange sua disponibilidade financeira, evitando, contudo, a fraude ao sustento do alimentando e assim  fixando de forma proporcional a real necessidade do alimentário com os recursos do alimentante (DINIZ, 2012, p.632).

É controversa a discussão quanto à natureza jurídica do direito a alimentos. Uns entendem que é um direito pessoal extrapatrimonial, posto que o alimentando não tem qualquer interesse econômico. Outros consideram um direito patrimonial. Maria Helena Diniz se filia a essa corrente argüindo que se trata de uma relação de crédito-débito, por consistir no pagamento periódico de soma de dinheiro ou fornecimento de víveres, remédio e roupas, havendo um credor e um devedor na relação (DINIZ, 2012, p.637).

Destarte, a obrigação de prestar alimentos incorre na condição de existir os pressupostos legais elencados nos dispositivos 1.694 e 1.695 do CC/2002, na falta de qualquer requisito cessa a obrigação alimentícia. Além disso, nada obsta a mutação no que tange o “quantum” da verba alimentícia, que será fixado pelo juiz de acordo com a necessidade do alimentando e condição econômica do alimentante (necessidade x proporcionalidade). É cabível pontuar que a reciprocidade na relação jurídico-familiar pauta-se no dever de filhos, mesmo incapaz, porém possuindo recursos financeiros suficientes, a obrigação de prestar alimentos aos ascendentes mais remotos (art.1696 e 1697) (DINIZ, 2012, p.642).

3 Os efeitos decorrentes da filiação socioafetiva no que tange a obrigação de prestar alimentos

Analisada a existência da filiação socioafetiva, a posse do estado de filho, e apresentadas de forma breve, noções gerais sobre o direito a alimentos, passa-se agora ao ponto central do estudo desenvolvido: a análise dos efeitos jurídicos decorrentes do reconhecimento da filiação socioafetiva no que diz respeito à obrigação de prestação alimentícia. É necessário frisar que a legislação brasileira é omissa neste ponto e o tratamento do tema no direito nacional baseia-se em considerações doutrinárias e jurisprudenciais.

O art. 227, § 6º da CF/88 estabeleceu a igualdade entre os filhos, o que deu azo a discussões a respeito da generalização de direitos entre os filhos, independente de sua origem (LIMA, 2011). Contudo, sabe-se que o pagamento de alimentos só é devido em função da relação de parentesco, e se esta não se encontrar provada, a reclamação não será acatada. Todavia, Azevedo leciona que no art. 1694 do CC/02, quando se fala em parente, refere-se ao parente consangüíneo ou ao parente civil (sócio-afetivo) (2007, p. 49-51).

Neste sentido, embora o legislador não tenha previsto a posse de estado de filho como um dos motivos que ensejam a investigação de paternidade, a jurisprudência tem reconhecido a relação de paternidade através da sua comprovação, reconhecendo, consequentemente, o direito à prestação alimentícia (MUNIZ, 2011, p. 28). Maria Berenice corrobora com este entendimento ao inferir que o magistrado deve identificar a presença do vínculo de afetividade, sendo dispensável a certidão de casamento ou de nascimento, pois a formalização dos relacionamentos é desnecessária para o estabelecimento de vínculos afetivos e, consequentemente, para o reconhecimento de direitos e imposição de obrigações (apud GOMES, 2008, p. 53). E arremata:

Quando se fala em obrigação alimentar dos pais sempre se pensa no pai registral, que, no entanto, nem sempre se identifica com o pai biológico. Como vem, cada vez mais, sendo prestigiada a filiação socioafetiva – que, inclusive, prevalece sobre o vínculo jurídico e o genético –, essa mudança também se reflete no dever de prestar alimentos. Assim, deve alimentos quem desempenha as funções parentais (apud GOMES, 2008, p. 53).

Rosenvald e Farias (2012, p. 672) destacam que não é necessário que o afeto esteja presente no momento em que a relação afetiva é discutida em juízo, visto que quando se chega a instâncias judiciais é exatamente porque o afeto cessou. O importante é provar que o afeto esteve presente durante a convivência, devendo o vínculo ser reconhecido pelo juiz. Após tal reconhecimento, defendem os autores ser automático, quanto aos pais afetivos, os direitos à herança e aos alimentos, de cunho patrimonial, além de direitos de ordem pessoal. Contudo, em relação ao pai biológico são automaticamente rompidos os vínculos, tornando-se este meramente genitor, não podendo, portanto, ser compelido a prestar alimentos.

A possibilidade de cobrar alimentos do genitor quando o pai socioafetivo não possuir condições de prestá-los é questão que suscita divergências. Advogando a tese favorável a tal pedido, Rolf Madaleno (apud ROSENVALD; FARIAS, 2012, p. 675) defende o que chama de “paternidade alimentar”. Rosenvald e Farias, contudo, entendem que tal hipótese seja admitida apenas em situações extraordinárias a fim de impedir a periclitação da dignidade do filho, quando os alimentos não possam ser pleiteados de outro membro da família socioafetiva, sob pena de enfraquecimento do instituto da filiação socioafetiva, visto que não estariam rompidos por completo os vínculos genéticos.

Por fim, entendemos ser possível a cobrança de prestação alimentícia fundada no vínculo socioafetivo, em razão de ser legítimo o reconhecimento deste dentre as formas de parentesco.

Considerações Finais

Ao Direito cabe atualizar-se a fim de acompanhar as mudanças culturais que acontecem em sociedade. Todavia, viu-se que no ramo do Direito de Família é patente a deficiência legislativa no que toca o vínculo socioafetivo, pois este não foi objeto de tutela. Assim, coube à doutrina e à jurisprudência tratar do assunto, como forma de não desamparar uma realidade tão latente em nosso país.

A paternidade socioafetiva nasce da convivência durante a criação e pode ser comprovada pela posse de estado de filho, que deve atender aos requisitos nome, trato e fama. Entendemos que este tipo de filiação é apto a gerar o reconhecimento da paternidade, dando ensejo a efeitos jurídicos legítimos, dentre os quais o direito dos filhos de reclamarem o pagamento de prestação alimentícia dos pais socioafetivos.

Com vistas a aprofundar o estudo da prestação alimentícia, foram analisados os requisitos legais que tornam legítima tal expectativa. Dentre eles está o vínculo de parentesco, o qual é responsável pela discussão doutrinária acerca da legitimidade ou não de exigibilidade desta prestação quando o vínculo existente é de natureza socioafetiva. Neste ínterim, foi analisado entendimento acerca da redação do art. 1.593 do Código Civil de 2002, a partir do qual a doutrina e jurisprudência defendem a possibilidade de estabelecimento de vínculo de parentesco através do afetividade, o que torna a legítimo o direito a alimentos.

Desta forma, pelos motivos expostos, entendemos que o vínculo socioafetivo é uma forma legítima de filiação que deve ser reconhecida pela posse do estado de filho e, consequentemente, dá direito à exigibilidade da prestação alimentícia.

Contudo, sabe-se que a necessidade de segurança jurídica nas relações torna fundamental que o legislador reconheça em lei tais direitos, a fim de não dar ensejo a  qualquer margem de dúvidas na aplicação do direito, tornando, assim, eficaz o princípio da igualdade entre os filhos, além dos demais princípios assegurados na Constituição Federal.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Andrea Salgado de. A paternidade socioafetiva e a obrigação alimentar. 2007. Disponível em: < http://sare.unianhanguera.edu.br/index.php/rdire/article/view/5> Acesso em maio 2012.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito de família. 5. Ed. Saraiva. 27 edição. São Paulo, 2012.

FARIAS; Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: famílias. 4. Ed. Salvador: Juspodium, 2012.

GOMES, Fernando Guidi Quintão. A filiação socioafetiva e seus efeitos na obrigação de prestar alimentos. 2008

LIMA, Adriana Karlla de. Reconhecimento da paternidade socioafetiva e suas consequências no mundo jurídico. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 88, maio 2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9280&revista_caderno=14>. Acesso em maio 2012.

MUNIZ, Mariana Zomer de Albernaz. A paternidade socioafetiva e seus efeitos na obrigação de prestar alimentos aos filhos afetivos.Revista Emesc, v.18, n.24, 2011. Disponivel em : <http://revista.esmesc.org.br/re/article/view/38>. Acesso em maio 2012.



** Graduandas em direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

*Paper apresentado como requisito para obtenção de nota na disciplina Direito da Família e Sucessões, ministrada pela Professora Anna Valéria Cabral Marques.