O direito brasileiro e a família socioafetiva: a responsabilidade civil no abandono afetivo de paternidade biológica[1]

Gessyane Rodrigues Costa*

Taisa Moura Ribeiro Macieira*

 

Sumário: Introdução; 1 Novo conceito de família: princípio da dignidade da pessoa humana e da afetividade; 2 Responsabilidade civil por abandono afetivo; 3 Posicionamento dos Tribunais; Conclusão; Referências.

RESUMO

Este artigo apresenta um viés recente dentro da temática da família socioafetiva que é o da incidência da responsabilidade civil nas relações paterno-filiais em casos de abandono afetivo. Tem em vista, sobretudo, analisar dentro das normas jurídicas se existem e quais seriam as responsabilidades dos pais frente ao que já foi estabelecido no Código Civil quanto ao Poder Familiar e os deveres destes para com os filhos dentro do instituto familiar. Em função disso, comparar-se-à o direito positivo com as demandas atuais - permeadas nas discussões éticas e sócio-culturais – referente aos deveres da família e sua incidência na vida civil.

Palavras-chave: Abandono afetivo. Responsabilidade civil. Dano moral.

INTRODUÇÃO

O desenho da instituição familiar atual se alterou diante das mudanças da própria sociedade e do estreitamento da relação entre pais-filhos, que antes era concebido de maneira hierárquica. Dessa forma, a família tradicional passou a assumir uma natureza socioafetiva, pautada nas relações afetivas entre pais-filhos. O direito de família positivou no Código Civil os deveres dos pais, calcado no princípio da dignidade da pessoa humana, principalmente. Entretanto a omissão deste dever recai apenas na perda do Poder Familiar ou por atingir também dados princípios constitucionais há que se falar em reparação a nível de responsabilidade civil?

Destarte, vem-se demonstrar e elucidar ponderações normativas e até que ponto estas resolveriam tais questões sociais que levam a oscilação dos próprios aplicadores da lei. Seria a responsabilidade civil o instrumento correto para apaziguar os conflitos na seara familiar socioafetiva?

1 NOVO CONCEITO DE FAMÍLIA: princípio da dignidade da pessoa humana e da afetividade

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o conceito de família passou a ter um sentido amplo, uma vez que abarcou na sua definição não somente aquela família matrimonializada do antigo Código Civil de 1916, mas também reconheceu a união estável e a monoparental como entidade familiar. Dessa forma, essas novas entidades familiares juntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana alteraram o conceito de família. O novo conceito de família da sociedade contemporânea retrata-se não mais pelo vinculo jurídico, mas sim pela sua formação através do elemento da afetividade (ALVES, 2007).

O princípio da dignidade da pessoa humana constitui o marco principal da mudança do paradigma desse novo conceito de família. É no ambiente familiar que o indivíduo tem a maior possibilidade de “realização da sua dignidade enquanto ser humano, porque o elo entre os integrantes da família deixa de ter conotação patrimonial para envolver, sobretudo, o afeto, o carinho, o amor e a ajuda mútua”, dito isto pode-se analisar que a Constituição Federal/88 quis dar maior ênfase a dignidade dos membros da família e a afetividade que os une (ALVES, 2007). Crislaine De Almeida e Fernanda Noronha (2012) argumentam ainda que com CF/88 a afetividade passou a ser inserida no texto legal implicitamente como princípio, o princípio da afetividade.

Maria Elena De Oliveira Cunha (2009) ainda discorre que o afeto seria um direito de personalidade, entretanto o Código Civil não o conheceu expressamente como tal. Sílvio de Salvo Venosa conceitua os direitos de personalidade como aqueles que conservam a dignidade humana, dessa forma caso o afeto fosse considerado um direito de personalidade, o seu desafeto ensejaria um dano moral através de ação judicial.

O afeto constitui o elemento essencial caracterizador do novo conceito de família, como também está intimamente ligado a dignidade da pessoa humana, sendo este último a principal influência para formação da personalidade do ser humano a qual teria na família a instituição mais propicia para o desenvolvimento adequado dessa personalidade (ALVES, 2007). É com base nesta premissa que analisaremos se poderá ser dado um valor jurídico para o afeto com o objetivo de futura imposição de indenização por danos morais acerca do abandono afetivo de paternidade biológica (ALMEIDA; NORONHA, 2012).

2 RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO

O abandono afetivo dos pais em relações aos filhos acarretam em diversas consequências negativas para com este último, uma vez que os próprios pais se omitiram de qualquer demonstração de afeto. A partir dessas diversas implicações resultantes do abandono afetivo, questiona-se a possibilidade de reparação de danos através de uma ação judicial para abrandar toda a aflição sofrida por este filho, pois “o abandono imaterial de uma criança poderá ocasionar a ela imensuráveis danos morais, atingindo de forma brutal o seu psicológico e prejudicando de maneira severa sua própria formação” (ALMEIDA; NORONHA, 2012).

Para incidir em dano moral o abandono afetivo, faz-se necessário a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil ou do dever de indenizar, quais sejam, a conduta humana, a culpa genérica, o nexo de causalidade e o dano. A conduta humana pode ter sido ocasionada por uma ação ou omissão, porém para a caracterização da omissão “é necessária que exista um dever jurídico de praticar determinado ato, bem como a prova de que a conduta não foi praticada” (TARTUCE, 2009, p. 347). A culpa genérica abrange tanto o dolo quanto a culpa estrita (imprudência, negligência e imperícia). O nexo de causalidade diz respeito “a relação de causa e efeito entre a conduta culposa ou o risco criado e o dano suportado por alguém” (TARTUCE, 2009, p. 359). O dano assim como na culpa genérica deve ser provado, e ainda poderá ser um dano patrimonial e/ou um dano moral.

No caso do abandono afetivo, deverá ser demonstrado o desafeto dos pais, como também o dever jurídico omitido, tal dever jurídico corresponde ao dever de cuidar ou de tê-los em sua companhia ou guarda disposto no Código Civil em seu art. 1.634, inciso III, além do que o afeto, como explicitado em tópico anterior, constitui um caracterizador essencial para a designação do novo conceito de família estabelecido pela Constituição e pelas recentes relações familiares, dessa forma o afeto está sendo incorporado como um valor jurídico no âmbito dessas relações (MÁRIO, 2006).

A possibilidade de indenização por dano moral no abandono afetivo gera muita discussão dividindo a doutrina e também, mais recentemente, a jurisprudência. A corrente que rejeita a referida indenização argumenta que não há no ordenamento brasileiro nenhuma obrigação legal de amar e que tal indenização imposta ao pai não contribuirá em nada para a aproximação dos pais em relação aos filhos (DILL; CALDERAN, 2011). Entretanto, a corrente que admite a indenização por dano moral ao filho que enfrentou o abandono afetivo não refere-se ao amor como obrigação legal a ser reparada, mas sim ao dever que compete aos pais de ter seus filhos em sua companhia e guarda, ou seja, o dever de cuidar, e ainda pela ofensa do direito de personalidade do filho, haja vista que atingiu a sua dignidade humana.

A permissão da indenização não afirma ser o afeto calculável, mas sim requer que a omissão do dever jurídico de cuidado, assim como o direito de personalidade possam ser reparados, pois como bem assevera Flávio Tartuce, quando relata sobre os danos morais, “não se requer a determinação de um preço para dor ou sofrimento, mas sim um meio de atenuar, em parte, as consequências” (grifo nosso) (2009, p. 390). Tal corrente ainda argumenta que a indenização a ser imposta aos pais ausentes serviria como repreensão, uma vez que a perda do poder familiar desses pais lhes acarretaria como um benefício, ao invés de uma penalidade (ALMEIDA, NORONHA, 2012).

No que diz respeito ao valor a ser fixado da indenização por abandono afetivo, o Código Civil não estabelece critérios para tanto, apenas que tal encargo cabe ao magistrado. No entanto a doutrina e jurisprudência alegam que o juiz deve agir com equidade e seguindo alguns parâmetros, dentre eles, “a extensão do dano, as condições socioeconômicas e culturais, condições psicológicas das partes e o grau de culpa do agente, de terceiro ou da vítima” (TARTUCE, 2009, p. 406). Contudo, nas jurisprudências mais atuais o valor da indenização tem como padrão a quantum referente a 2 (dois) salários mínimos.

3. POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS

No dia 24 de abril de 2012, o STJ pronunciou decisão inédita acerca da temática do abandono afetivo: foi a primeira vez que o órgão decretou que um pai indenizasse a filha por abandono afetivo. Luciane Nunes de Oliveira Sousa acionou o pai Antônio Carlos Jamas dos Santos na justiça alegando abandono material e afetivo durante a infância e adolescência. A justiça comum de São Paulo não deu ganho de causa a Luciane por entender que o distanciamento decorreu do comportamento agressivo da sua mãe contra seu pai. Em novembro de 2008, Luciane recorreu através de apelação, que foi julgada favoravelmente a ela fixando indenização no valor de R$ 415 mil. Antonio Carlos recorreu através de recurso especial ao STJ alegando que não haveria ilícito indenizável no caso de abandono afetivo. O STJ decidiu, por fim, manter a condenação do TJSP, apenas reduzindo a indenização para R$ 200 mil.

A Min. Nancy Andrighi, relatora do recurso especial nº 1.159.242-SP se posicionou sobre a matéria no acórdão:

Sendo assim, entendo que o reconhecimento de dano moral em matéria de família é situação excepcionalíssima, devendo-se admitir apenas em casos extremos de efetivo excesso nas relações familiares. O presente caso situa-se dentro dessa excepcionalidade, merecendo ser reconhecida a ocorrência de ato ilícito causador de dano moral (p.41).

O recente posicionamento abriu precedente favorável não somente para as causas que chegarem ao Tribunal Superior, mas serviu de norteador acerca dos dissídios dos tribunais estaduais sobre tal matéria. Desde 2005, o STJ era contrário a hipótese de indenização sobre abandono afetivo, decisão que só veio a ser modificada com tal julgado. Em sede de recurso especial nº 757.411-MG o Rel. Min. Fernando Gonçalves decidiu unanimemente em decisão publicada no DJU em 29/11/2005 que “a indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária”.

O debate nos tribunais brasileiros teve início em 2003, quando no TJRS um pai teve acertada sua condenação logo na primeira instância a pagar indenização no valor de R$ 48 mil (200 salários mínimo à época). No caso, a autora recebia regularmente o valor da pensão alimentícia, contudo o pai não cumpria com o dever de convivência, conforme estipulado judicialmente de passear com a filha a cada 15 dias, bem como prestar devida assistência e o acompanhamento do desenvolvimento da mesma (OLIVEIRA, 2011).

Entretanto, o entendimento entre os tribunais continuaram a divergir. Sob uma análise geral percebia-se que os tribunais do eixo sul-sudeste entendiam favoravelmente frente à possibilidade de incidência de danos morais por abandono afetivo. Mas não havia uma regra, era necessária a análise frente ao caso concreto, como ilustrado em apelação nº 2007.001.63727-RJ, julgada em 09/04/2008 pela Primeira Câmara Cível do TJRJ, tendo como Rel. Des. José C. Figueiredo:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RELAÇÃO DE AFETIVIDADE. AUSÊNCIA. DANO MORAL. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. Ninguém é obrigado a amar ou continuar amando outrem. Hipótese em que o filho postula a compensação por dano moral em face de seu pai ao argumento da falta de amor. Com a separação dos pais, a regra geral é a de que haja um natural afastamento daquele que se ausentou do lar em relação aos filhos. Em casos tais, é mesmo comum a dificuldade de relacionamento entre ascendentes e descendentes o que pode resultar em questões co1mo as narradas nestes autos. Eventuais discórdias e mágoas recíprocas, além de outros infortúnios oriundos da conturbada relação não podem ensejar a compensação pretendida. RECURSO PROVIDO (grifo nosso).

      

Contrapondo o posicionamento ventilado no julgado acima exposto, a juíza Simone Ramalho Novaes, da 1ª Vara Cível de São Gonçalo no Rio de Janeiro entendeu que “se o pai não tem culpa por não amar o filho, a tem por negligenciá-lo. O pai deve arcar com a responsabilidade de tê-lo abandonado, por não ter cumprido com o seu dever de assistência moral, por não ter convivido com o filho, por não tê-lo educado, enfim, todos esses direitos impostos pela Lei” (GOMES, 2008).

O Tribunal de Minas Gerais tem um Colegiado que há anos reconhece a possibilidade de indenização por danos morais, tornando-se pioneiro e invocado nos pedidos similares em outros tribunais. Segue uma das jurisprudências obre o tema, proveniente do Tribunal de Alçada de Minas Gerais em Apelação Cível nº 408.550-5, de 01/04/2004, julgado perante a Sétima Câmara Cível. A indenização do caso correspondeu ao valor de 200 salários mínimos.

INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.

É dessa forma, ao prestigiar o princípio da dignidade humana, que os tribunais evoluem no sentido de reconhecer o valor do afeto, prestigiando, sobretudo a filiação socioafetiva. A pretensão que se tem, diante do recente julgado do STJ, é de não se ter mais dúvidas com relação a este entendimento.

CONCLUSÃO

O Direito tem como uma de suas funções regular as instituições sociais. Neste diapasão, insere-se o instituto social da família como o primeiro em que o cidadão se vê inserido. No contexto atual de família, o aspecto afetivo possui maior relevância do que os laços sanguíneos, e em função destes atuais desígnios os operadores do direito se inclinam a apreciar especificamente esta relação nas celeumas jurídicas que levam a cabo conflitos familiares.

A importância de tal afeto leva ao entender que as relações familiares, e principalmente elas, não podem ser analisadas somente na esfera patrimonial, o grande valor dado ao afeto atualmente pela doutrina está intimamente ligado com o princípio da dignidade da pessoa humana, pois é através desse sentimento juntamente com o núcleo familiar que gera o desenvolvimento pessoal da criança. Dessa forma, considerando que a noção de família pode se fundar também na questão afetiva poderá, portanto, ensejar uma responsabilidade civil e consequentemente um dano moral pelo abandono afetivo dos pais biológicos.

 

REFERÊNCIAS

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ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O reconhecimento legal do conceito moderno de família. Disponível em: << http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/26887/reconhecimento_legal_conceito_moderno.pdf?sequence=1>>. Acesso em: 12 de março de 2012.

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CUNHA, Marcia Elena de Oliveira. Afeto face ao princípio da dignidade da pessoa humana e seus efeitos jurídicos no Direito de Família. Disponível em: << http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=482>>. Acesso em: 12 de março de 2012.

DILL, Michele Amaral; CALDERAN, Thanabi Bellenzier. A importância do papel dos pais no desenvolvimento dos filhos e a responsabilidade civil por abandono. Disponível em: << http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=703>>. Acesso em: 13 de março de 2012.

GOMES, Eddla Karina. Responsabilidade civil por abandono afetivo na filiação. In: IBDFAM Acadêmico, Belo Horizonte, ago. 2008. Disponível em: << http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=439>>. Acesso em: 16. mai. 2012.

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PEREIRA,Caio Mário da Silva. Instituições do Direito Civil: direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

OLIVEIRA, Luciane Dias de. Indenização civil por abandono afetivo de menor perante a lei brasileira. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 86, mar. 2011. Disponível em: <<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9057&revista_caderno=14>>. Acesso em: 15 mai. 2012.

TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. vol 2. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense – São Paulo: Método, 2009.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007.



[1] Artigo desenvolvido para obtenção de nota relativa à disciplina Direito de Família e Sucessões ministrada pela professora Anna Valéria Cabral. Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

* Graduando do 6° período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.