INTRODUÇÃO

Sob circunstâncias normais, a homeostase da glicose é um balanço entre produção de glicose pelo fígado e consumo de glicose na periferia, particularmente nos músculos. A célula beta das ilhotas pancreáticas é o regulador do sistema; a liberação de insulina é ajustada continuamente, de modo que a produção e o consumo de glicose mantêm a normoglicemia.

Diabetes mellitus é uma síndrome de alterações metabólicas e hiperglicemia devido à deficiência absoluta ou relativa de secreção de insulina e/ou redução na sua eficácia biológica. É classificado basicamente em dois tipos principais: I e II.

Diabetes mellitus tipo I ou diabetes mellitus insulino-dependente é uma forma grave de diabetes, com cetose presente (na ausência de tratamento). Ocorre principalmente na infância e adolescência, mas ocasionalmente em adultos (especialmente não obesos). O nível de insulina circulante é praticamente indetectável, o glucagon plasmático é elevado e as células betas não respondem aos estímulos insulinogênicos. A insulina administrada reverte o estado catabólico, previne a cetose, reduz a hiperglucagonemia e reduz os níveis séricos de glicose. Certos antígenos de histocompartibilidade (HLA) estão fortemente associados ao desenvolvimento do diabetes do tipo I. Cerca de 95% dos pacientes com diabetes mellitus tipo I têm HLA-DR3 ou HLA-DR4, contra 45% a 50% dos controles. Além disso, anticorpos circulantes anticélulas da ilhota foram detectados em 85% dos pacientes testados nas primeiras semanas de diagnóstico. A maior parte dos anticorpos anticélulas da ilhota são dirigidos contra uma enzima da célula beta, a descarboxilase do ácido glutâmico (DAG) (COTRAN et al.,2000).

Mais de 80% dos pacientes recém diagnosticados e com anticorpos anticélulas da ilhota positivo apresentam anticorpos contra a DAG. Espera-se que, em breve, desenvolvam-se ensaios específicos para detecção da presença deste anticorpo, para screening de descendentes de diabéticos. Acredita-se que os diabetes tipo I resulta de uma lesão infecciosa (vírus da parotidite endêmica ou Coxsackie B4) ou tóxica (agentes químicos ambientais) ou por citoxinas e anticorpos liberados de linfócitos sensibilizados. Melhora de hiperglicemia (em pacientes com diabetes tipo I recém diagnosticado) com ciclosporina reforça o papel etiopatogênico de auto-imunidade (ISSELBACHER et al.,1995).

Diabetes mellitus tipo II ou diabetes mellitus não insulino-dependente é um grupo heterogêneo que compreende formas menos graves de diabete. Representa cerca de 95% da população diabética e a maior parte dos pacientes tem mais que 40 anos e é obesa. A insulina endógena é suficiente para prevenir cetoacidose, mas inadequada para um controle glicêmico perfeito. O diabetes mellitus tipo II não está associado a nenhum HLA, não são detectados anticorpos antiilhota e os pacientes dele acometidos não são em geral dependentes de insulina para manter a vida. Dados epidemiológicos indicam forte influência genética, já que há grande concordância entre gêmeos monozigóticos (FISCHBACH, 2002).

Uma forma de diabetes mellitus tipo II é aquela que os indivíduos apresentam liberações de insulina diminuída em resposta à glicose, podendo, porém responder à administração e sulfoniluréias. Neste caso, o defeito primário está localizado numa produção deficiente de insulina pelas células  do pâncreas. Por outro lado, há diabéticos não insulino-dependente, em geral obesos, nos quais o defeito primário é uma resistência à ação da insulina, levando a hiperinsulismo e eventual resposta exacerbada da insulina à glicose. Nestes pacientes, a obesidade apresenta, geralmente, uma relação abdome-quadril elevada, com presença de gordura visceral. A resistência à insulina, levando a hiperinsulinemia, contribui para o aumento de VLDL-colesterol (produção hepática) e retenção de sódio (túbulos renais), levando a hiperlipidemia e hipertensão (síndrome X ou CHAOS – coronariopatia, hipertensão, aterosclerose, obesidade e acidente vascular cerebral) (COTRAN, et al.2000).

É claro para os estudiosos do assunto que para o desenvolvimento do quadro de hiperglicemia nos casos de resistência à insulina deve haver um defeito concomitante na produção de insulina ou um fator desencadeante, tal como o uso de cortIcosteróides ou um grande grau de obesidade (DUNCAN et al.,1996).


DIAGNÓSTICO

Segundo FISCHBACH (2002), os pacientes diabéticos tipo I, em geral, apresentam-se com poliúria, polidipsia e polifagia, com perda de peso; deficiência absoluta de insulina leva a hiperglicemia e produção de corpos cetônicos. Em crianças, ocorre com freqüência enurese noturna. Pode ocorrer embaçamento visual devido a fluído intraoculares hiperosmolares. Pode ocorrer hipotensão e fraqueza por diminuição de volume plasmático e por catabolismo muscular. Ocorre acidose metabólica, eventualmente com resporação de Kussmaul. Se a osmolaridade ultrapassar 320-330 mOSm/l, ocorre diminuição do nível de consciência e coma.

Os pacientes diabéticos tipo II podem se apresentar sem sintomas. A presença de obesidade andróide ou central (relação entre a circunferência abdominal e circunferência do quadril > 1 em homens ou > 0,8 em mulheres) e história familiar sugere o diagnóstico. A hiperglicemia pode ocorrer insidiosamente. Ocasionalmente, pacientes com diabetes mellitus tipo II podem apresentar-se com complicações cardiovasculares e neuropáticas devido à doença oculta não diagnosticada, presente durante algum tempo antes do diagnóstico. São comuns infecções crônicas de pele, hipertensão e hiperlipidemias e vulvovaginite em mulheres.

Laboratorialmente, está quase invariavelmente presente glicosúria, que pode ser medida através de fitas reagentes urinárias. A cetonúria pode ser estimada, embora as fitas não detectem o ácido beta-hidroxibutírico.

A glicemia de jejum pode ser medida no plasma ou no soro, evitando variações da glicose que ocorriam quando se usavam dosagens no sangue total (dependentes do nível do hematócrito e da contagem de leucócitos).

O diagnóstico de diabetes se dá quando, em mais de uma ocasião, a glicemia plasmática de jejum ultrapassa 140 mg/dl. Quando a glicemia de jejum for menor que 140mg/dl, pode-se fazer um teste de tolerância à glicose oral.

A hemoglobina glicosilada (hemoglobina A1C) é elevada em diabéticos com hiperglicemia. É produzida pela ligação não enzimática da glicose a aminoácidos da hemoglobina. Como a vida média da hemácia é de até 120 dias, a hemoglobina A1c reflete o controle glicêmico das 8 a 12 semanas precedentes. Embora não seja rotineiramente usada em screenings, a hemoglobina glicosilada tem boa especificidade (91%). O produto de outras glicosilações também pode se utilizado no acompanhamento de pacientes diabéticos, por exemplo, fructosamina sérica, que reflete o estado glicêmico de até duas semanas.

Medidas da glicose sanguínea capilar, feitas pelo próprio paciente são extremamente úteis, particularmente no diabético tipo I submetido a regime de controle intensivo.


TRATAMENTO

Diabetes é uma doença crônica que requer educação do paciente e da família e cuidados médicos para evitar a doença aguda e as complicações crônicas. O objetivo do tratamento é restaurar o desarranjo metabólico para prevenir ou impedir a progressão da doença microvascular (DUNCAN et al.,1996).


REGIMES DE TRATAMENTO, segundo BENNETT & PLUM (1997):

1) Dieta

Mais da metade dos pacientes diabéticos falham em seguir a dieta que, bem orientada, é o elemento fundamental do tratamento.

A dieta deve ser orientada individualmente. Em obesos com hiperglicemia leve, o principal objetivo da dieta é a redução de peso por restrição calórica.

A dieta com refeições planejadas, fracionada, é essencial no tratamento de diabéticos não obesos, principalmente os dependentes de insulina. Deve conter no máximo 35% de gordura, com menos de 300mg por dia de colesterol. Carboidratos representam 50% a 60% do total calórico, porém os açúcares simples devem ser evitados (admite-se o consumo de pequenas quantias de açúcar, no máximo 30gramas, no contexto de uma refeição mista, em substituição a outro componente da refeição). Alimentos ricos em fibras devem ser incluídos, assim como os edulcorantes artificiais (sacarina, ciclamato, sorbitol, frutose, aspartame, acessulfame K e /ou estévia).

2) Atividade Física

Sem dúvida, a prática de exercícios leva a uma necessidade menor de insulina pelo diabético (por aumento da sensibilidade periférica à insulina), a uma melhora dos níveis de lipoproteínas (por diminuição de LDL – colesterol e elevação do HDL – colesterol) e a efeitos positivos no âmbito psicossocial (melhora de auto estima e confiança).

O médico deve estar atento para fazer as orientações necessárias, modificando o regime dietético e/ou a quantidade de insulina administrada, conforme a intensidade do exercício. Em geral, isso é feito reduzindo-se a insulina administrada (em média em 20%) e /ou adicionado 20 a 30 gramas de carboidratos imediatamente antes da prática do esporte.

Além disso, o aumento da atividade física é eficaz na prevenção de diabetes mellitus tipo II.

3) Hipoglicemiantes orais

Os agentes hipoglicemiantes orais podem ser classificados em sulfoniluréias e biguanidas. Pequenas modificações na estrutura básica das sulfoniluréias produzem agentes com ação qualitativa semelhante, porém com potências bastante diferentes.

O mecanismo de ação das sulfoniluréias quando agudamente administradas, é através de efeito insulinotrópico. Não está, ainda esclarecido se, cronicamente, estejam presentes um ou mais aos seguintes efeitos extrapancreáticos: aumento da utilização periférica de glicose, supressão da produção hepática de glicose, aumento da delegação a receptores de insulina.

O mecanismo de ação das biguanidas não está esclarecido. Redução da gluconeogênese hepática, diminuição da absorção intestinal de glicose e aumento da captação de glicose pelo músculo esquelético são mecanismos de ação propostos. Enquanto a fenformina foi retirada do mercado americano, em 1997, devido à associação com casos fatais de acidose lática, a metformina foi recentemente aprovada pelo FDA.

No Brasil, os hipoglicemiantes orais disponíveis são: clorpropamida, glibenclamida (gliburida), gliclazida e glipizida (sulfoniluréias) e fenformina e metformina (biguanidas).

Os efeitos adversos das sulfoniluréias são incomuns, sendo hipoglicemia, reações cutâneas e fenômenos vasomotores os mais freqüentes, principalmente com a clorpropamida (3% a 6%).

4) Insulinas

Está indicado o uso de insulina nos diabéticos tipo I, assim como nos diabéticos tipo II que não respondem ao tratamento dietético e aos hipoglicemiantes orais.

Com o passar do tempo, à medida que se desenvolveram preparações de insulina altamente purificada, problemas como alergia, resistência imune e lipodistrofia têm se tornado cada vez mais raros. A preocupação atual é mimetizar os padrões fisiológicos de secreção de insulina através de injeções subcutâneas de insulina regular e/ ou de ação mais longa, com auxílio de monitorização dos níveis de glicose capilar em casa, exercícios e modificações na dieta. O tratamento intensivo com insulina retarda o aparecimento e o desenvolvimento de complicações em pacientes com diabetes tipo I.

As preparações de insulina, atualmente, podem ser de origem bovina ou suína. A insulina mista é uma mistura de insulina bovina (mais antigênica) e suína (menos antigênica). Existe ainda a insulina humana biossintética (produzida por E. coli ou levedura através de técnicas de engenharia genética) e a semi-sintética (conversão enzimática de insulina suína em humana).

Quanto ao grau de purificação, todas as preparações contêm menos que 10 ppm (insulina purificada) e algumas, menos que 1 ppm (insulina monocomponente).

A totalidade das insulinas é disponível na concentração de 100 unidades por mL (U100). Nos Estados Unidos existem ainda insulinas U40 (para crianças e pacientes que usam poucas unidades) e U500 (para indivíduos com resistência à insulina e para uso em certas bombas de injeção automática).

Quanto ao tempo de ação, pode-se classificar as insulinas em ação rápida ou curta, ação intermediária e ação lenta ou longa.

Os esquemas de insulinoterapia mais utilizados são: dose única matinal; duas doses, matinal e vespertina; misturas de insulinas e múltiplas doses diárias.

O esquema de dose única matinal de insulina de ação intermediária pode ser utilizado em pacientes recém-diagnosticados e no primeiro ano de tratamento. É, em geral, ineficaz se a necessidade diária de insulina ultrapassar uma unidade por quilo de peso, levando a descontrole metabólico e/ou hipoglicemia.

O esquema de duas doses, matinal e vespertina, de insulina de ação intermediária, pode ser utilizado desde o diagnóstico ou quando houver aumento da necessidade de insulina: a dose vespertina (antes do jantar) é, em geral, de um terço à metade da dose matinal, a ocorrência de hipoglicemias noturnas é menor com este esquema do que com o esquema de dose única matinal.

Em qualquer esquema, podem-se utilizar misturas de insulinas (insulinas de ação rápida ou regular com insulina de ação intermediária ou NPH). As misturas de insulina permitem picos de ação pós-prandiais pela manhã e à noite, além de uma oferta basal de insulina de ação mais lenta. Hoje dispomos de misturas de insulina humana já prontas, produzidas pela maioria dos fabricantes.


PROGNÓSTICO

Dentre as complicações agudas, a descompensação cetoacidótica e o coma hiperosmolar não cetótico são cada vez menos freqüentes, o oposto ocorrendo com as hipoglicemias, que ocorrem cada vez mais à medida que se empregam esquemas insulínicos mais rigorosos.

As complicações crônicas dependem do dano circulatório de vasos menores (microangiopatia) ou maiores (macroangiopatia). A microangiopatia leva as lesões retinianas com neoformações vasculares; glomeruloesclerose com síndrome nefrótica e insuficiência renal; alterações bioquímicas da célula de Schwann e axonopatia com neuropatia somática e autonômica. A macroangiopatia leva a insuficiência coronariana e infarto miocárdico, insuficiência cerebrovascular e acidente vascular cerebrais e insuficiência vascular periférica com lesões isquêmicas em membros. Ocorrem ainda com maior freqüência: micoses, furunculoses, pielonefrite, complicações gestacionais.

Indubitavelmente, quanto melhor o controle, menor a incidência de complicações crônicas. Porém, sem dúvida, existem indivíduos mal controlados que não desenvolvem complicações, e indivíduos bem controlados que as desenvolvem rapidamente (interferência de fatores individuais); além disso, outros fatores podem modular o aparecimento de complicações (DUNCAN et al.,1996).


CONCLUSÕES

Centros de pesquisa no mundo inteiro se dedicam exaustivamente à procura de soluções alternativas ao uso de injeções múltiplas de insulina. Uma das possibilidades seria o uso de insulina por outras vias; chegou a ser promissora a possibilidade do uso intranasal, mas aparentemente a tentativa foi abandonada. Bombas automáticas que permitem uma oferta de insulina mais fisiológica estão tornando-se cada vez menores permitindo manter-se sistema de infusão implantáveis mais cômodos e com infusão de insulina diretamente no peritônio. Talvez o evoluir dos anos consiga fazer chegar até nós sensores de glicocemia acoplados a injeções adequadas de insulina (“pâncreas artificial”).

Uma série de centros médicos já está utilizando os transplantes de pâncreas e os implantes de ilhotas pancreáticas, com índices de funcionamento do transplante bastante animadores. Ressalte-se que os transplantes e implantes devem ser realizados concomitantemente ou após o transplante renal em pacientes com insuficiência renal, já que estes pacientes necessitarão usar imunossupressores (potencialmente mais perigosos que o uso da insulina).
Finalmente, abre-se a perspectiva cada vez mais provável de conseguirmos impedir a destruição das células beta, através de meios imunológicos (impedindo a agressão humoral e/ou celular a essas células) ou através de engenharia genética (modificando o gene ou os genes desencadeadores da moléstia). Recentemente, foi descoberta uma mutação na enzima glucoquinase da célula beta de famílias com maturity-onset diabetes of the young (Mody), uma forma de doença distinta da diabetes tipo II, devido ao início precoce a herança dominante, como também no gene glicogênio-sintetase de diabéticos não insulino-dependente com hipertensão e resistência à insulina.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENNETT, J.C. e PLUM, F. Cecil – Tratado de Medicina Interna.Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1997.
COTRAN, R.S,; KUMAR, V. e ROBBINS, S.L. Robbins – Patologia Estrutural e Funcional. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2000.
DUNCAN, B.B.;SCHMIDT, M.I. e GIUGLIANI, E.R.J. Medicina Ambulatorial – condutas clínicas em atenção primária. Porto Alegre: Artmed Editora S.A.,1996.
FISCHBACH, F. Exames laboratoriais e diagnósticos. Rio de Janeiro:Guanabara-Koogan,2002.
ISSELBACHER, K.J.; BRAUNWALD, E.; WILSON, J.D.; MARTIN, J.B.; FAUCE, A.S. e CASPER,D.L. Harrison – Medicina Interna, Mexico City: Mc Graw Hill – Interamericana, 1995.