"A vida é a arte do encontro

embora haja tanto desencontro pela vida"

(Vinicius de Moraes)

"Quando as flores acabam por murchar-se, e o perfume nada mais é do que uma antiga lembrança no coração dos homens, a primavera nem sempre é tão certa quanto pode parecer ser."

T. caminhava pela calçada de uma avenida serena da cidade cinzenta, ainda com seu andar jovial, seu rosto pouco sulcado de rugas, mas com a mente repleta de rusgas.

Pensava hoje o que havia sido de ontem e como seria o amanhã. Amava seus pais acima de tudo; acima, até mesmo, de seu sonho que - poucos sabiam - era ser mágico no circo instalado na cidade vizinha: a cidade colorida. Não, não poderia ser um mágico de circo, necessitava de raízes, de um trabalho honesto num escritório qualquer da cidade cinzenta, ter mulher e filhos e, quem sabe até, um cachorro que o iria esperar faminto e amável quando de seu retorno ao lar.Era o que seus pais almejavam, era o que sua razão dizia, era o que seu coração temia aceitar.

Mulher e filhos. Como poderia aceitar uma mulher? Meu Deus! T. não conseguia sequer pensar na dor de uma paixão que, talvez, não fosse correspondida ou, quiçá, eivasse-se de uma traição odienta, corrosiva, animalesca. As mulheres não são capazes de amar o mesmo homem a vida inteira, T. sabia disso. Quem sabe sua mágica pudesse prender um coração feminino ao seu com a mesma força com que se prendem leões em jaulas? Ops! As mulheres não são leões, assim como T. não era mágico, nem seria justo que fosse, seria?

Os filhos. Cristo! Os filhos poderiam não nascer perfeitos de corpo. Talvez o fossem de corpo mas não o fossem de mente. Talvez fossem perfeitos de corpo e de mente mas trouxessem consigo alguma maldade inata dentro de seus corações. Mesmo que não fossem maus, quem sabe fossem bons demais, o que ocasionaria uma humildade exacerbada neles, uma propensão a serem humilhados, pisoteados, solitários...

Mas só o trabalho dignifica o homem e, antes de um trabalho honesto e financeiramente viável, (Ai! Quero ser mágico de circo!) não poderia T. pensar em mulher e filhos. Teria que se ocupar dos afazeres de um homem digno, teria que estudar, conseguir um bom emprego junto à Prefeitura da cidade cinzenta – muito cobiçado pelas pessoas, e pelos genitores das pessoas, e pelos genitores dos genitores das pessoas – até que pudesse conhecer V.

Tudo bem que V. ainda não tinha um rosto, mas teria que ser uma mulher igualmente respeitável - virgem, de preferência - honesta e trabalhadeira (Seus pais sabem disso, T.!) e, caso V. adquirisse uma feição mas se mostrasse uma mulher completamente diferente de tal estereótipo, T. transformá-la-ia na mulher de seus sonhos, na mulher dos sonhos de todo o mundo, num simples tocar de sua vareta mágica – "droga! Eu não sou mágico". "Tudo bem" - T. pensava - "ainda encontrarei a V. dos sonhos de todos, mesmo sem ter minha vareta mágica, pois tudo a seu tempo se resolve!".

Supôs, assim, o encontro com a sua V. (e a de todos): apaixonaram-se. Pensaram em casamento tão logo se conheceram e iriam deveras se casar. Espere! havia o pedido formal a ser feito ao pai de V. Talvez V. fosse magnífica mas seu pai,... "Deus do céu! O homem é uma fera!". "V., porque ele não me aceita? Eu sou mágico sim, e com muito orgulho, ouviu!" Arre, T. não era tão decidido assim. Resolveu que realmente poderia ser um funcionário público e o pai de V. saberia reconhecer o seu valor, sim senhor!. Tomariam cerveja aos domingos, falariam sobre assuntos diversos da Administração enquanto suas esposas cuidariam da louça na cozinha (poderiam comer macarrão. Churrasco T. não sabia fazer; mas que besteira! Ele poderia fazer uma mágica e o churrasco apareceria fantasticamente e muito suculento, como não! Mas... T. não podia ser mágico e, além do mais, mágicos que se prezam não fazem aparecer churrascos, ou fazem?) Ah! mas a cerveja acabaria e T. teria que comprar mais algumas garrafas. Ocorre que o dinheiro estaria acabando pois T. adquirira um carro semi-novo e, embora fosse um funcionário respeitável e digno da Administração Pública da cidade cinzenta, as prestações haveriam de ser meio ásperas, coisas que acontecem, uma vez que todo cidadão de bem tem um carro semi-novo para passear com a mulher e os filhos (Ai! Filhos! Será que nascerão... esquece.).

"Então, falo a verdade ao pai de V. ou apenas insinuo que já bebemos demais e é preciso ir embora?". Quem sabe ele concorde e até pense que T. é um homem fabuloso, conhecedor de seus limites, já bebera demais, isso é certo... sem saber que o respeitável homem de família não tinha mais dinheiro para comprar míseras garrafas de cerveja no bar da esquina. Não tinha, nem mesmo, uma mísera conta no bar da esquina mas... "contas?! homens dignos não têm contas em botecos, ou têm?"

Bem, por hora T. resolveu esquecer V. (que nem rosto tem) e também o pai de V.,poisprecisava pensar em seu sonho um pouco (qual era mesmo? Ah, ser mágico! Não, Não, arranjar um emprego respeitável, mas isso era sonho?) Ok., de qualquer forma... e foi quando T. esbarrou em um homem que, sem se dar conta, veio em sua direção:

-Cuidado, rapaz! Pare de devanear e olhe para a frente!

-Desculpe.

"Mas que homem ríspido! a propósito, ele se parece com meu grande amigo G. Mas parece estar tão mais velho..."

Assim, T. continuou sua caminhada pela calçada da avenida da cidade cinzenta, uma avenida que parecia ser muito extensa, porém que foi transposta com uma velocidade tal que nem mesmo T. se deu conta de como andava depressa.

Enfim parou e deparou-se, já no final da mencionada avenida, com uma loja de souvenirs onde havia um pequeno espelho exposto em sua entrada. Olhou-se por mera curiosidade e viu refletida no espelho uma imagem senil, envelhecida ao extremo, o que o fez olhar para trás a fim de encontrar o suposto velho que estaria às suas costas. Não avistou ninguém e, ao novamente procurar o espelho, já com um indescritível medo lhe corroendo as entranhas, percebeu que o rosto no espelho era assombrosamente o seu. Olhou ao redor e a avenida parecia modificada, estranha ao seu olhar que por tantas vezes passara por ela sem enxergá-la com alguma atenção mínima que fosse. Foi-se embora para sua casa.

Ao chegar, adentrou-a de modo tenso, agitado, febril. Encontrou-a vazia. Chamou por seus pais mas não houve resposta. Procurou, num desses súbitos ataques de irreflexão, por uma mulher que pudesse estar esperando por ele em algum cômodo da residência, que se mostrava extremamente sombria, mas nada. Antes que alguma lágrima pudesse escorrer de seus olhos, avistou uma varinha de metal que reluzia sobre a mesinha da sala, perto da janela. Correu até ela e pensou: "Sou deveras um mágico, posso trazer quem eu desejar para esta casa". Bateu a varinha sobre o sofá da sala mas ninguém apareceu. Repetiu o gesto mas não houve êxito. Notou que a varinha de metal não era mágica, era tão somente um de seus brinquedos infantis que guardara até a velhice. Estava velho, pois.

Enquanto pensava em sua vida, passeando pela calçada da avenida, o tempo passara como nunca supusera pudesse passar. Por momentos chegou a ver como loucura a possibilidade de a vida transcorrer durante o intervalo de tempo que se usa para atravessar uma avenida num passeio quimérico.Mas não, não era loucura. Teve tempo demais para os seus medos que nada mais fez senão viver por eles, viver para suas dúvidas, suas suposições infantis. Num último apelo à sua imaginação insana acabou por decidir recolher-se ao seu quarto, dormir até o amanhecer do outro dia e, se tivesse forças, fazer o caminho reverso da avenida cruel, para que, talvez, pudesse retornar ao status com que começou a fazer a caminhada naquele dia fatídico. Adormeceu porém não acordou mais. Quiçá se tivesse retornado à avenida naquele mesmo instante, pudesse ter caminhado por pelo menos alguns metros no sentido inverso e lograsse conseguir retornar a alguns momentos perdidos, quem sabe! Fato é que esperou, como sempre, pelo dia seguinte.