O DESVIRTUAMENTO DAS MULTAS DE TRÂNSITO

AUMENTO DO CARÁTER MONETÁRIO EM DETRIMENTO DA FUNÇÃO PEDAGÓGICA.

INTRODUÇÃO

A constante problemática envolvendo a finalidade arrecadatória em detrimento da pedagógica é de suma importância para a sociedade, pois não obstante a previsão legislativa, constante do art. 1º, §2º, do CTB, referente ao dever de proteção que o Estado deve exercer no trânsito brasileiro, o que se verifica é que os órgãos públicos colocam toda a responsabilidade dessa proteção para os próprios cidadãos, fortalecendo a repressão por meio penalidades cada vez mais severas, como se isso bastasse para alcançar todos os objetivos pretendidos.

Assim, a Administração Pública age do modo mais simples e fácil, investindo pesadamente na fiscalização do cumprimento das normas de trânsito, com o argumento de atingir a finalidade da própria multa administrativa através da intimidação de eventuais infratores.

No entanto, em uma análise mais apurada se percebe que a motivação vai além disso, como quase todas as situações que envolvem grandes vultos financeiros, a necessidade da máquina estatal por cada vez mais arrecadações superam o dever legal de proteção e educação dos cidadãos no trânsito.

Para entender melhor esse impasse, é necessário abordar os conceitos de infração e sanção, a natureza jurídica das multas de trânsito, o poder de coação que a multa exerce, entre outros temas.

1. INFRAÇÃO E SANÇÃO

Em linhas básicas, a infração é o descumprimento de um comando legal e a sanção é a previsão de punição para o infrator com objetivo de coagi-lo a respeitar as normas jurídicas.

Os dois institutos estão essencialmente relacionados, pois a natureza jurídica da infração é reconhecida pela natureza da sanção correspondente e a natureza da sanção através da autoridade que a impõe. Nesse prisma, Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 863/864) esclarece:

Infração e sanção administrativa são temas indissoluvelmente ligados. A infração é prevista em uma parte da norma, e a sanção em outra parte dela.[…]

Infração administrativa é o descumprimento voluntário de uma norma administrativa para o qual se prevê uma sanção cuja imposição é decidida por uma autoridade no exercício da função administrativa – ainda que não necessariamente aplicada nesta esfera. […]

Reconhece-se a natureza administrativa de uma infração pela natureza da sanção que lhe corresponde, e se reconhece a natureza da sanção pela autoridade competente para impô-la. […]

Sanção administrativa é a providência gravosa prevista em caso de incursão de alguém em uma infração administrativa cuja imposição é da alçada da própria Administração. […]

Sendo muito variadas as relações de Direito Administrativo, são também muito variadas as modalidades de sanção. Assim, existem: a) advertência; b) sanções pecuniárias – isto é, multas; c) interdição de local ou estabelecimento; d) inabilitação temporária para certa atividade – como a suspensão da carteira habilitação de motorista;[...] (grifo nosso)

Dessa forma, a análise de qualquer infração deve se iniciar a partir da autoridade que impõe as sanções correlacionadas, identificando a natureza jurídica das mesmas, pois a classificação da infração seguirá a mesma essência natural da própria sanção. Aplicando os postulados às relações jurídicas advindas do trânsito, as multas são as sanções advindas das infrações contidas no Código de Trânsito Brasileiro.

Portanto, é essencial conhecer pormenorizadamente a natureza jurídica das infrações e sanções de trânsito, pois é daí que resulta o regime jurídico que lhes confere a própria feição e identidade, os quais regerão todas as relações e problemáticas abordadas no presente estudo. 

2. NATUREZA JURÍDICA DAS MULTAS DE TRÂNSITO

As infrações e sanções de trânsito apresentam nítida natureza administrativa e não tributária, pois derivam de relações de Direito Administrativo, sendo a própria Administração a autoridade responsável por impor a sanção.

Assim, multa de trânsito pode ser definida como uma sanção de natureza pecuniária imposta pelos órgãos públicos competentes aos proprietários e condutores que cometerem infrações estabelecidas nas normas específicas.

Ademais, a Lei nº 4.320/64, que estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, afirma, no artigo 39º, §§ 1º e 2º, que as multas de qualquer origem e natureza são créditos de natureza não tributária e devem ser inscritos na Dívida Ativa não Tributária, após apurada a sua liquidez e certeza:

Lei 4.320/64

Art. 39. Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.

§ 1º – Os créditos de que trata este artigo, exigíveis pelo transcurso do prazo para pagamento, serão inscritos, na forma da legislação própria, como Dívida Ativa, em registro próprio, após apurada a sua liquidez e certeza, e a respectiva receita será escriturada a esse título.

§ 2º – Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, alugueis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de sub-rogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais. (grifo nosso)

Ratificando o entendimento legal, Kiyoshy Harada (2005, p. 78) diz que a multa administrativa é sanção pecuniária aplicada pela Administração Pública aos administrados em caso de infração de ordem legal, e os recursos arrecadados compõem o quadro de receitas públicas, como segue:

A multa administrativa, também, compõe o quadro de receitas públicas. É sanção pecuniária aplicada pela Administração Pública aos administrados em geral, em caso de infração ou inobservância da ordem legal, aí compreendidas as disposições regulamentares e de organização dos serviços e bens públicos. Como todo ato punitivo, depende de prévia cominação em lei ou contrato, cabendo sua imposição, exclusivamente, à autoridade competente. A multa penal é aplicada privativamente pelo Judiciário. Não se confunde com a multa fiscal, que decorre do descumprimento da obrigação tributária e que compõe o elenco de receitas tributárias, por força do disposto no art. 133, §§ 1º e 2º, do CTN. A multa administrativa, segundo a Lei nº 4.320/64, classifica-se como “outras receitas correntes”, conforme prescrição do § 4º de seu art. 11.

Como consequência da natureza jurídica descrita, a finalidade da multa de trânsito é inibir o condutor ou proprietário de veículo à prática de determinadas condutas, e não arrecadar recursos financeiros

Em consonância com o exposto, Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 864/865) ensina que a finalidade das sanções relacionadas às infrações administrativas é desestimular a prática das condutas censuradas ou constranger ao cumprimento das obrigatórias, intimidando eventuais infratores:

Evidentemente, a razão pela qual a lei qualifica certos comportamentos como infrações administrativas, e prevê sanções para quem nelas incorra, é a desestimular a prática daquelas condutas censuradas ou constranger ao cumprimento das obrigatórias. Assim, o objeto da composição das figuras infracionais e da correlata penalização é intimidar eventuais infratores, para que não pratiquem os comportamentos proibidos ou para induzir os administrados a atuarem na conformidade da regra que lhes demanda comportamento positivo. Logo, quando uma sanção é prevista e depois aplicada, o que se pretende com isto é tanto despertar em quem a sofreu um estímulo para que não reincida, quanto cumprir uma função exemplar para a sociedade. (grifo nosso)

 

Todas as multas administrativas devem cumprir a função intimidadora e exemplar, mas existem as que se limitam a esta função, e outras que buscam também ressarcir a Administração de algum prejuízo causado (multas ressarcitórias) como também as que apresentam caráter cominatório, se renovando continuamente até a satisfação da pretensão, obrigando o administrado a uma atuação positiva (astreinte). Como bem explica Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 879):

Por serem a modalidade sancionadora mais comum, as multas merecem referência especial. Todas as sanções – e, portanto, também as multas – cumprem uma função intimidadora e exemplar; mas, entre elas, podem ser dircenidas (a) as que se limitam a cumprir esta finalidade; as que, (b) além disto, visam a ressarcir a Administração de algum prejuízo que a ação ou inação do administrado lhe causou – são multas ressarcitórias, reparatórias ou compensatórias -, bem como aqueloutras (c) de caráter cominatório, que, visando a compelir o administrado a uma atuação positiva, se renovam automática e continuadamente até a satisfação da pretensão administrativa. São o que no Direito Francês se denomina astreinte, e o seu mecanismo é o equivalente das imposições cominatórias feitas em juízo.

Assim, o aspecto educativo das normas de trânsito, o seu caráter de organização do espaço onde circulam as pessoas e a necessidade de conscientização destes indivíduos são fatores que devem balizar todas as relações jurídicas do trânsito as quais figuram a Administração Pública como parte, sob pena de violar o melhor atendimento da função social reguladora do Estado. A norma de trânsito deve ser tratada como uma norma de caráter organizacional, que não vise à punição e sim que estabeleça as regras orientadoras de um trânsito seguro. É o que prevê o Código de Trânsito Brasileiro, nos artigos 1º, 5º e 6º, os quais estabelecem as bases e diretrizes do Sistema Nacional de Trânsito:

Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código.

[...]

§ 2º O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.

§ 3º Os órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro.

[...]

Art. 5º O Sistema Nacional de Trânsito é o conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que tem por finalidade o exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades.

Art. 6º São objetivos básicos do Sistema Nacional de Trânsito:

I – estabelecer diretrizes da Política Nacional de Trânsito, com vistas à segurança, à fluidez, ao conforto, à defesa ambiental e à educação para o trânsito, e fiscalizar seu cumprimento;

II – fixar, mediante normas e procedimentos, a padronização de critérios técnicos, financeiros e administrativos para a execução das atividades de trânsito;

III – estabelecer a sistemática de fluxos permanentes de informações entre os seus diversos órgãos e entidades, a fim de facilitar o processo decisório e a integração do Sistema.

Com efeito, a aplicação da sanção administrativa de trânsito tem o objetivo de evitar a reincidência do cometimento da infração, apresentando uma finalidade precipuamente pedagógica. A sanção é parte fundamental da norma jurídica e pretende gerar a mudança de comportamento desejada na sua criação. Dessa forma, a arrecadação dos recursos deve ser apenas uma consequência derivada do alcance primário da penalidade.

Posto isso, tendo em vista que as multas de trânsito apresentam natureza de multas administrativas, as quais têm como finalidade inibir que os destinatários das normas cometam as infrações previstas, faz-se premente concluir que imputar essas penalidades visando a finalidade meramente arrecadatória ou o estabelecimento de caráter confiscatório, em detrimento da função pedagógica, resulta em grave desvirtuamento da essência natural das normas jurídicas de trânsito.

3. AUMENTO DO CARÁTER MONETÁRIO EM DETRIMENTO DA FUNÇÃO PEDAGÓGICA 

A constante problemática envolvendo a finalidade arrecadatória em detrimento da pedagógica é de suma importância para a sociedade, pois não obstante a previsão legislativa, constante do art. 1º, §2º supramencionado, referente ao dever de proteção que o Estado deve exercer no trânsito brasileiro, o que se verifica é que os órgãos públicos colocam toda a responsabilidade dessa proteção para os próprios cidadãos, fortalecendo a repressão por meio penalidades cada vez mais severas, como se isso bastasse para alcançar todos os objetivos pretendidos.

Assim, a Administração Pública age do modo mais simples e fácil, investindo pesadamente na fiscalização do cumprimento das normas de trânsito, com o argumento de atingir a finalidade da própria multa administrativa através da intimidação de eventuais infratores.

No entanto, em uma análise mais apurada se percebe que a motivação vai além disso, como quase todas as situações que envolvem grandes vultos financeiros, a necessidade da máquina estatal por cada vez mais arrecadações superam o dever legal de proteção e educação dos cidadãos no trânsito.

Realmente, não se justifica imputar a responsabilidade por todas as situações que resultam em infração de trânsito, e respectiva multa, exclusivamente ao condutor. É dever dos órgãos/entidades de trânsito proporcionar vias com boas estruturas e bem sinalizadas (conforme art. 6º do CTB supracitado), proporcionando a fluidez, segurança e educação necessárias ao bom tráfego. Além disso, deve utilizar, dentre outros, os recursos arrecadados com as multas para a consecução desse mister, é que nos ensina o Código de Trânsito Brasileiro no seu art. 320:

Art. 320. A receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito será aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito.

Parágrafo único. O percentual de cinco por cento do valor das multas de trânsito arrecadadas será depositado, mensalmente, na conta de fundo de âmbito nacional destinado à segurança e educação de trânsito.

Entretanto, é de conhecimento público e notório que trânsito nas grandes cidades brasileiras é caótico e pouco se verifica, por parte dos órgãos/entidades disciplinadores e fiscalizadores do tráfego, medidas eficazes, sequer, na mitigação do problema.

Na verdade, o que está vigorando atualmente é uma verdadeira "indústria de multas", pois o caráter arrecadatório da penalidade administrativa está sendo supervalorizado em detrimento do educativo. Assim, a aplicação das multas de trânsito está se tornando apenas mais uma maneira de aumentar a arrecadação do Estado sem qualquer preocupação em diminuir a violência no trânsito.

Existem diversos fatores que demonstram que os esforços estatais estão quase inteiramente direcionados em efetuar uma forte arrecadação de recursos através das penalidades pecuniárias no trânsito, quase sempre em detrimento da função pedagógica: 1) a regulamentação de valores fixos de multas para uma mesma infração, sem consideração da situação socioeconômica do infrator; 2) as arrecadações vultuosas que não são devidamente revertidos na finalidade que o CTB determina (art. 320 supratranscrito); 3) a obrigação da quitação das multas para renovar o licenciamento anual veicular; 4) como os fortes investimentos em fiscalização eletrônica sem os devidos estudos prévios; 5) o posicionamento dos agentes de trânsito em locais estratégicos e mal sinalizados para captar o condutor em irregularidade; 6) os baixos investimentos estatais em engenharia de trânsito, educação no trânsito e segurança.

3.1 A REGULAMENTAÇÃO DE VALORES FIXOS PARA AS MULTAS, SEM CONSIDERAR A SITUAÇÃO SOCIOECONÔMICA DO INFRATOR

O CTB nos arts. 161 a 255, referente ao o capítulo XV – Das Infrações, determina as infrações de trânsito classificando-as em leves, médias, graves e gravíssimas. Já no art. 258, consagra que as penalidades pecuniárias serão calculadas com base na classificação de gravidade das multas e, quando se tratar de multa agravada, o valor será multiplicado por um fator estabelecido no próprio código. Portanto, os valores das multas serão variáveis conforme a infração, mas nunca em razão do infrator, senão vejamos:

Art. 258. As infrações punidas com multa classificam-se, de acordo com sua gravidade, em quatro categorias:

I – infração de natureza gravíssima, punida com multa de valor correspondente a 180 (cento e oitenta) UFIR;

II – infração de natureza grave, punida com multa de valor correspondente a 120 (cento e vinte) UFIR;

III – infração de natureza média, punida com multa de valor correspondente a 80 (oitenta) UFIR;

IV – infração de natureza leve, punida com multa de valor correspondente a 50 (cinquenta) UFIR.

§ 1º Os valores das multas serão corrigidos no primeiro dia útil de cada mês pela variação da UFIR ou outro índice legal de correção dos débitos fiscais.

§ 2º Quando se tratar de multa agravada, o fator multiplicador ou índice adicional específico é o previsto neste Código.

Tomando como base a natureza jurídica administrativa da multa e sua finalidade pedagógica de inibir os condutores a cometerem infrações, as quais foram explicadas em tópicos anteriores, surge um problema como consequência lógica: sendo a multa um valor pecuniário fixo, a sanção terá poder de coação com força diferente para cada cidadão, gerando, em alguns casos, efeitos desprezíveis e, em outros, coação exacerbada e fora da razoabilidade exigida para a atuação estatal.

 

Para melhor elucidar o desvirtuamento da natureza jurídica das multas de trânsito, como também de sua precípua finalidade, já explicados anteriormente, será tomado como exemplo a infração prevista no art. 246:

Art. 246. Deixar de sinalizar qualquer obstáculo à livre circulação, à segurança de veículo e pedestres, tanto no leito da via terrestre como na calçada, ou obstaculizar a via indevidamente:

Infração – gravíssima;

Penalidade – multa, agravada em até cinco vezes, a critério da autoridade de trânsito, conforme o risco à segurança.

Parágrafo único. A penalidade será aplicada à pessoa física ou jurídica responsável pela obstrução, devendo a autoridade com circunscrição sobre a via providenciar a sinalização de emergência, às expensas do responsável, ou, se possível, promover a desobstrução.

O valor da multa por infração de natureza gravíssima sem agravamento, é de R$ 191,54, ocorre que essa sanção poderá ser agravada em até cinco vezes por discricionariedade da autoridade de trânsito, podendo alcançar o valor de R$ 857,70. Para um condutor que apresenta renda mensal média de R$ 50.000,00, tal multa não atingirá seus objetivos, ou seja, a sanção não exercerá a coação necessária para inibi-lo de cometer a infração.

Esse condutor poderá deixar de cometer infrações por outros motivos de ordem pessoal, mas não por causa da multa administrativa, pois a sua função de intimidação e coação é insignificante para esse administrado. A multa deve exercer sua função por si própria, pois o Estado e a sociedade não podem confiar em fatores de ordem subjetiva, que estão alheios ao Direito, para manter a segurança do trânsito.

Em linhas gerais, cumpre delimitar o Princípio da Proporcionalidade e suas subdivisões: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação ocorre quando o meio escolhido conduzir, de alguma forma, ao objetivo pretendido. A necessidade desse meio é aferida quando não existir outro menos gravoso aos demais valores que devem ser defendidos. Por último, na proporcionalidade em sentido estrito faz-se a ponderação dos benefícios e prejuízos obtidos com o ato selecionado, caso os primeiros superem os últimos, o meio é proporcional. Como leciona Hugo de Brito Machado Segundo, em seu artigo Multas Tributárias, Proporcionalidade e Confisco (2012, on line): 

Sempre que a Constituição, por meio de normas com estrutura de princípio, determina a promoção de um objetivo (ou de um “estado ideal de coisas”), entende-se que ela está a determinar a adoção de meios que sejam adequados, necessários e proporcionais em sentido estrito a essa promoção. O meio será adequado quando, de fato e efetivamente, conduzir ao objetivo perseguido. Será necessário quando, dentre os meios existentes e adequados, não existir outro que seja menos gravoso à promoção dos demais princípios igualmente prestigiados pela Constituição. Finalmente, será proporcional em sentido estrito quando, além de adequado e necessário, o emprego do meio em questão causar aos outros princípios, igualmente prestigiados constitucionalmente, impactos mínimos, justificáveis em face do maior benefício obtido com a sua adoção (os bônus justificam os ônus). É nesse último momento, da proporcionalidade em sentido estrito, que se realiza verdadeiramente a ponderação, aferindo-se se os prejuízos advindos da adoção do meio escolhido se justificam à luz dos bene- fícios por ele trazidos, ou por outras palavras, dando-se primazia à solução que implicar o menor sacrifício possível aos princípios envolvidos.

Dessa forma, o poder de coação exercido pela mesma multa, no valor de R$ 857,70, contra um condutor que apresenta renda mensal de R$ 1.000,00, viola a proporcionalidade em sentido estrito, pois os prejuízos que derivam do confisco do patrimônio do infrator supera os benefícios pedagógicos que a infração buscava alcançar. Assim, ocorrendo o absurdo jurídico de uma simples multa administrativa de trânsito provocar pena responsável pelo comprometimento do próprio sustento do infrator e de sua família, assumindo caráter confiscatório.

Pelo ordenamento jurídico atual, o próprio Princípio da Proporcionalidade é desrespeitado, tendo em vista que as sanções devem guardar uma relação de proporcionalidade com a gravidade da infração, obrigando ao condutor do exemplo recorrer ao judiciário para que a multa administrativa não exerça o inadmissível caráter confiscatório. É o que ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 872/873):

De qualquer modo, flagrada a desproporcionalidade, a sanção é inválida. No caso de sanções pecuniárias, a falta de razoabilidade pode conduzir ao caráter confiscatório da multa, o que é, de per si, juridicamente inadmissível, como se sabe.

No caso hipotético, a multa no valor de R$ 857,70 para o condutor com renda mensal de R$ 1000,00 é inválida, pois apresenta flagrante poder confiscatório, ultrapassando os limites pedagógicos e de intimidação extraídos da própria natureza da multa administrativa. Vale ressaltar, ainda, que os exemplos não foram extremos, existindo multas e rendas mais discrepantes do que as que foram apresentadas.

Portanto, para não cair em ilegalidades por ausência de proporcionalidade, como também para não violar o Princípio da Isonomia, é necessário que as multas de trânsito obedeçam ao princípio da individualização da pena. Caso contrário, os administrados mais abastados estarão mais livres do poder coativo das multas e, consequentemente, esse instituto jurídico terá sua finalidade mitigada nesses casos.

Não é mera coincidência que a Constituição de 1988, em art. 5º, inciso XLVI, consagrou expressamente o princípio da individualização da pena, destacando sua aplicação nas multas, com o objetivo que a sanção penal ou administrativa seja aplicada com proporcionalidade e cumpra sua precípua finalidade, protegendo esse instituto da utilização motivada por outros interesses. Como se pode extrair:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos; (grifo nosso) 

O princípio da individualização da pena é princípio geral de direito punitivo, tendo aplicação não só no campo penal mas também em qualquer momento em que pretenda o Poder Público sancionar o indivíduo, impondo-lhe reprimenda por alguma infração, sendo proibido ao Poder Público estabelecer em suas leis a solidariedade passiva na responsabilização pelas sanções que aplicar aos indivíduos. Como explica Régis Fernandes de Oliveira (2005, p. 96):

É princípio do direito brasileiro a individualização da pena (art. 5º, XLVI, da C. F.). Não se pode afirmar que tal dispositivo apenas se aplica ao criminoso. Isso porque a Constituição não necessita descer a detalhes, nem disciplinar casos concretos. Dá limites ao legislador, impondo-lhe restrições. A interpretação restrita de tal dispositivo poderia levar à conclusão de que apenas está outorgando garantia ao réu de processo-crime, mas não pode ser esta a interpretação jurídica. É que a individualização da pena alcança toda e qualquer infração. É decorrência da interpretação lógica do todo sistemático do direito.

Dessa forma, é imperioso que as multas administrativas sejam individualizadas para cada infrator, na medida do possível, com o objetivo de alcançar a finalidade do instituto da multa e respeitar, ainda, a sua própria natureza jurídica.

3.2 A SANÇÃO ATRAVÉS DO CÔMPUTO DOS PONTOS NO REGISTRO DO SISTEMA DA CARTEITA NACIONAL DE HABILITAÇÃO DOS INFRATORES

É bem verdade que, associado às penalidades pecuniárias, existe a sanção da pontuação para cada infração, resultando na soma de pontos que sistema dos órgãos de trânsito registrará na Carteira Nacional de Habilitação (CNH) do condutor. Essa penalidade, descaracterizada de sanção econômica, mitiga a disparidade relatada e estabelece uma importante isonomia entre os condutores, sendo fiel com a natureza jurídica e finalidade das multas de trânsito, pois as consequências pelos pontos assumidos atingirão a todos da mesma forma. Como determina o art. 259 do CTB abaixo transcrito:

Art. 259. A cada infração cometida são computados os seguintes números de pontos:

I – gravíssima – sete pontos;

II – grave – cinco pontos;

III – média – quatro pontos;

IV – leve – três pontos.

Ocorre que, a intimidação causada pelo acúmulo de pontos é bastante mitigada por dois fatos: a) a grande maioria das multas aplicadas atualmente, devido ao incremento do avanço da tecnologia, ocorrem de modo impessoal, através de equipamentos eletrônicos, sejam utilizados por agentes (como pistolas que medem a velocidade dos veículos à distância), como também de modo totalmente automático, pelas lombadas eletrônicas, sem possibilidade de identificação do condutor-infrator; b) a sanção da contagem da pontuação pelo cometimento da infração de trânsito só é válida por 12 meses, sendo apagado a pontuação do sistema após esse período.

Nos casos em que as multas são aplicadas de modo impessoal, que é quase sempre, os órgãos de trânsito computam a sanção dos pontos em nome do proprietário do veículo, mas é possível que ele compareça ao órgão de trânsito e indique o condutor-infrator e, com isso, transfira os pontos para outro motorista. Dessa forma, como o Estado não tem como saber quem cometeu a infração, os condutores sempre podem repassar os pontos entre si, evitando que algum condutor atinja os 20 pontos e tenha suspenso o seu direito de dirigir, mitigando a capacidade punitiva desse tipo de sanção.

Além disso, a sanção da pontuação só tem validade pelo período exíguo de 12 meses, tendo como principal problema do acúmulo de pontos a penalidade de suspensão do direito de dirigir, como preceitua o CTB nos art. 261, §1º:

Art. 261. A penalidade de suspensão do direito de dirigir será aplicada, nos casos previstos neste Código, pelo prazo mínimo de um mês até o máximo de um ano e, no caso de reincidência no período de doze meses, pelo prazo mínimo de seis meses até o máximo de dois anos, segundo critérios estabelecidos pelo CONTRAN.

§ 1º Além dos casos previstos em outros artigos deste Código e excetuados aqueles especificados no art. 263, a suspensão do direito de dirigir será aplicada quando o infrator atingir, no período de 12 (doze) meses, a contagem de 20 (vinte) pontos, conforme pontuação indicada no art. 259.

Outro exemplo, associando à sistemática das penalidades através do registro dos pontos e a impessoalidade na autuação das multas, vem da situação do condutor colocar o veículo em nome de pessoa jurídica ou mesmo em nome de pessoa que não possua habilitação, pois, nesses casos, as pontuações advindas de multas aplicadas de modo impessoal, não encontram proprietários com CNH para somar pontos, restando apenas o registro da penalidade pecuniária ao proprietário do veículo, que terá que quitar as multas para transferir a propriedade do veículo ou mesmo regularizar o licenciamento anual veicular.

Nesses casos, às pessoas jurídicas que não informam o condutor responsável pela infração de trânsito, é emitida apenas mais uma penalidade pecuniária (art. 257, § 8º). Com relação às pessoas que não possuem habilitação, não há previsão de nenhum tipo de penalidade, sanção ou restrição, portanto, colocar o veículo em nome de alguém não habilitado, dá ao condutor a liberdade de cometer quantas infrações quiser, sem se preocupar com eventuais penalidades de suspensão direta do direito de dirigir ou o atingimento dos vinte pontos na CNH. Isto porque, como já foi dito, a maioria das multas são aplicadas de modo impessoal, sendo a autuação direcionada pela placa do veículo, sobrando como única preocupação as penalidades pecuniárias. Como confirma Márcio Manoel Maidame, em seu artigo O Código de Trânsito Brasileiro à Luz dos Princípios do Direito Sancionador (2009, on line):

Mas, pior que isso tudo, é o fato abominável que permite aqueles dotados de mais recursos obter condições de evitar quaisquer desses aborrecimentos, o que se traduz na mais vil das desigualdades que podem ocorrer no seio de um Estado cujo objetivo é erradicar a pobreza e reduzir a desigualdade (CF, art. 3º).

Aquele que colocar o veículo em nome de pessoa jurídica, ou colocá-lo em nome de pessoa que não possua habilitação, está livre para cometer quantas infrações quiser, somente pagando pelas penalidades pecuniárias. É a consagração do odioso "infrinjo, mas pago" – afronta acintosa ao Estado Democrático, mas vigente em nossa lei de trânsito.

Às pessoas jurídicas que não informam o condutor responsável pela infração de trânsito, é emitida apenas mais uma penalidade pecuniária (art. 257, § 8º). Às pessoas que não possuem habilitação, não há previsão de nenhum tipo de penalidade, sanção ou restrição, sendo então possível a ilação de que, colocado o veículo em nome de alguém não habilitado, o motorista obtém um salvo conduto que o permite cometer quantas infrações quiser, sem se preocupar com eventuais penalidades de suspensão direta do direito de dirigir, ou preocupar-se em atingir vinte pontos.

Isto porque a maiorias das infrações hoje em dia são lançadas por equipamentos eletrônicos, que se guiam pela placa do veículo. Com essas multas, no tocante à suspensão do direito de dirigir, aquele que colocar o veículo em nome de pessoa inabilitada não precisa se preocupar, bem como aquele cujo veículo está em nome de pessoa jurídica. Este indivíduo deve preocupar-se apenas com as multas emitidas por agente de trânsito, que lhe colha a assinatura no momento da aplicação da infração.

CONCLUSÃO

Portanto, mesmo a sanção das pontuações pelas infrações, que seria uma esperança de balizamento para as multas de trânsito, fazendo as mesmas exercerem seu papel de multas administrativas, executando a devida intimidação de forma equânime em todos os condutores, ainda padece desses problemas que mitigam o seu devido efeito. Tal fato vem reforçar o que está sendo exposto durante todo esse estudo: o sistema de trânsito supervaloriza o caráter arrecadatório em detrimento do pedagógico, usurpando a própria natureza jurídica das multas de trânsito e, consequentemente, violando a isonomia ao favorecer os dotados de maior poder econômico.