O desenvolvimento da cidadania no Brasil

Em junho de 2013 o Brasil viveu um momento histórico na sua democracia, onde mais de um milhão pessoas foram às ruas em todo o país para exercerem o direito de cidadania e pela ampliação desse direito. Na noite do dia 20 de junho de 2013, principalmente nas capitais, o que se via eram avenidas lotadas e praças tomadas por cidadãos com bandeiras e caras pintadas de verde e amarelo. A maior parte representava a classe trabalhadora. Os manifestantes protestavam por melhorias na saúde, educação e segurança, pelo combate à corrupção, pela abusiva utilização do dinheiro público em obras para a Copa da FIFA mas, principalmente, pelo aumento das tarifas do transporte público e a melhora na qualidade desse serviço. Foi esse, inclusive, o motivo inicial que levou esses manifestantes às ruas, liderados pelo movimento social MPL (Movimento Passe Livre). Esse manifesto enfatizou a importância e a necessidade de se viver um regime democrático, porém, um fato muito importante dessa manifestação, talvez não evidente para algumas pessoas, é que se tratou também de um movimento do proletariado contra a burguesia, isto é, um movimento contra o capitalismo tipicamente monopolista e caos urbano que ele vem provocando.

Dado esse fato, será abordado nesse ensaio o desenvolvimento da cidadania, que se deu através de muita luta, e sua relação com o capitalismo moderno.

Antes de mais nada é interessante ressaltar que as lutas de classes, mais precisamente burguesia versus proletariado, são muito antigas, já que é histórica a desigualdade entre burgueses e proletários. Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848, já faziam uma análise dessas lutas, dando origem à obra “O Manifesto do Partido Comunista”, onde os autores, que nada mais são que os fundadores do comunismo e do socialismo, defendiam a queda da burguesia e a soberania do proletariado, mediante dissolução da sociedade burguesa e fundação de uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada. Esse livro é um chamado aos operários de todo o mundo para uma união de forças na luta contra o capitalismo. Foi redigido pelos autores a pedido da Liga dos Justos, que posteriormente veio a se chamar Liga dos Comunistas, e deveria servir de cartilha para esse grupo. Tornou-se, como se sabe, a propaganda política mais bem sucedida de todos os tempos. Porém, na época de sua edição, o Manifesto não teve tanta influência no contexto político. Quando a revolução francesa teve início e se alastrou para outros países, a obra de Marx e Engels ainda era relativamente desconhecida.

O manifesto faz duras críticas ao sistema capitalista e à forma como a sociedade se estruturou através dele. Para os autores, a proletariado é capaz de reverter sua precária situação, com muita luta e união. O resultado dessas lutas foi, mais adiante, a garantia de alguns de direitos que hoje conhecemos como cidadania.

A cidadania, ou seja, a universalização dos direitos, é uma das transformações do processo de modernização das sociedades nacionais. O sociólogo britânico Thomas H. Marshall, em sua obra “Cidadania, Classe Social e Status”, analisou o desenvolvimento da cidadania na Europa, tomando a Inglaterra como objeto de estudo, onde elucidou o vínculo entre a modernização capitalista e a cidadania.

O modelo de cidadania proposto por Marshall no Capítulo 3 da sua obra, apesar de se enquadrar perfeitamente apenas no caso inglês, já que se trata de um estudo empírico sobre o desenvolvimento da cidadania na Inglaterra, é muito importante e serve como referência para os estudos sobre o desenvolvimento da cidadania em outros países.

Em sua obra, Marshall faz uma análise e descreve como a cidadania se desenvolveu na Inglaterra, procurando apresentar argumentos para responder algumas questões colocadas por ele no início do texto, das quais podemos destacar: se pode haver limites além dos quais a tendência moderna em prol da igualdade social não pode chegar ou provavelmente não ultrapassará e se há uma espécie de igualdade humana básica, associada com a participação efetiva na comunidade, que é consistente com uma superestrutura de desigualdade econômica.

Na primeira questão, é importante destacar que o autor não estava se referindo à custo econômico, como propôs o economista Alfred Marshall, citado como referência pelo autor, mas nos limites inerentes aos princípios que inspiram essa tendência. Segundo T. H. Marshall, o conceito de cidadania envolve três elementos, a saber: os direitos civil, político e social. O desenvolvimento da cidadania na Inglaterra se deu com a fusão e separação desses elementos. A fusão foi geográfica e a separação funcional. Na fusão a cidadania passou de instituição local à nacional e a separação refere-se à separação dos três elementos, de modo que se tornaram, nas próprias palavras do autor, estranhos entre si. Deu início, portanto, um novo processo de unificação desses direitos.

Na Europa, os direitos civis foram os primeiros a se formarem, cujo processo se deu basicamente com a adição de novos direitos a um status já existente e que pertencia a todos os membros adultos da comunidade (homens). Quando os direitos políticos começaram a surgir, os direitos civis já eram uma conquista do homem. A formação dos direitos políticos se iniciou com a adoção do sufrágio universal. Os direitos políticos se entrelaçavam com os direitos sociais que, por sua vez, começavam a surgir durante o século XIX com o desenvolvimento da educação primária pública. Para Marshall, entretanto, não basta que os direitos sejam legalmente declarados. Para que eles se concretizem na prática, dependem da emergência de quadros institucionais específicos.

Segundo o autor, a sociedade aceita as desigualdades existentes entre as classes e, não apenas isso, a considera necessária, uma vez que oferece o incentivo ao esforço e determina a distribuição do poder. Mas havia uma condição para essa aceitação, qual seja a igualdade de cidadania deveria ser reconhecida. Contudo, a cidadania não foi impactante sob a redução da desigualdade social no final do século XIX, porém, ajudou a guiar o processo para o caminho que conduzia diretamente às políticas igualitárias do século XX.

Comparando o desenvolvimento da cidadania brasileira com a britânica, a primeira anomalia a ser levada em consideração é que, no Brasil, a concessão dos direitos se deu em ordem inversa. Primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e redução dos direitos civis, na era Vargas, seguidos pelos direitos políticos, concedidos durante a ditadura militar. A segunda anomalia se refere a defasagem existente entre os direitos legalmente declarados e os direitos efetivamente exercidos.

Ocorre que no Brasil, o nível de desigualdade socioeconômica entre as classes mais e menos favorecidas é muito maior que na Inglaterra. Podemos mensurar essa diferença através do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) onde, embora o Brasil tenha melhorado com relação aos anos atrás, ainda continua muito atrás da Inglaterra, mesmo com a crise que ronda a Europa.

O modelo inglês de desenvolvimento da cidadania, em alguns pontos, pode servir para analisar a cidadania brasileira. Por exemplo, quando o autor diz que há consistência entre igualdade de participação (cidadania) e desigualdade econômica na Inglaterra, isso também pode ser aplicado no Brasil. O que vemos no Brasil é semelhante ao que Marshall analisou sobre a Inglaterra. Embora a preocupação com a pobreza foi incluída recentemente na pauta das classes dominantes, essas fazem questão que uma certa dose dessa desigualdade exista, já que sem ela não seria possível medir o sucesso e o fracasso do indivíduo. Em contrapartida, as classes menos favorecidas aceitam essa desigualdade, desde que a igualdade de condições (ou direitos sociais) lhes sejam concedidas.

O que Marshall não considerou em sua obra foi a importância das lutas sociais no processo de concretização dos direitos que regem a cidadania, que foram uma realidade na Europa. Essa é uma crítica muito comum ao modelo de cidadania marshalliano, que é deficiente no sentido de que Marshall não formula com clareza o papel específico das classes trabalhadoras no processo de formação e evolução da cidadania.

Importante que fique claro, portanto, que desde o início da construção da cidadania na Europa, as classes dominantes e a burocracia estatal em transição para o capitalismo, procuravam barrar o desenvolvimento da cidadania, por temerem a criação de direitos em prol dos interesses da maioria social em detrimento dos seus próprios interesses.

Fica evidente, portanto, o histórico conflito entre burgueses e proletários e o medo que a burguesia sempre teve em relação ao socialismo e, por que não dizer, do comunismo. Marx e Engels já mencionam esse temor no Manifesto do Partido Comunista. Segundo os autores, o comunismo era um modelo de política que veio para assombrar a classe dominante europeia, e a forte oposição a ele só acontece pois se trata de um modelo político com força relevante no mundo. Até hoje o comunismo assombra a burguesia, que teme que um governo de extrema-esquerda assuma o poder, colocando em risco o sistema capitalista, mesmo sendo essa uma hipótese, ao meu ver, quase infundada, já que o sistema partidário brasileiro é tipicamente clientelista e as ideologias políticas podem variar na mesma proporção que varia o poder de cada partido. Afinal, é fácil ser um partido comunista quando se está na oposição, difícil é derrotar o sistema capitalista monopolista, fortemente amparado, quando se passa a ser um partido da situação. É por isso que a tendência é que os partidos com mais pretensões de votos permaneçam muito próximos ao centro, ou, diria eu, “em cima do muro”. Não acho ruim, entretanto, que os partidos tendam a ficar no centro, uma vez que o socialismo também está muito próximo a ele, um pouco mais a esquerda.

Destarte, voltando ao conflito de interesses, o resultado disso é que em países capitalistas, como no Brasil, as classes dominantes atacam os direitos sociais em defesa ao capitalismo. Vemos isso claramente na objeção às políticas públicas de ações afirmativas que envolvem reservas de vagas para grupos sociais menos favorecidos, seja no ingresso à universidade pública, seja no mercado de trabalho, que os privilegiam com base em critérios de classe social ou raça em detrimento à meritocracia.

São as lutas populares, numa sociedade capitalista, que instauram uma pressão sobre as classes dominantes e a burocracia estatal, a favor da instauração de direitos políticos e direitos sociais.

Boa parte dessas lutas advêm dos movimentos sociais, característicos da doutrina política de esquerda, ou centro-esquerda, que é favorável a ampliação da igualdade de condições. Como há mais de 12 anos o Brasil vendo sendo governado por um partido cuja ideologia é de esquerda (mas que hoje encontra-se muito próximo ao centro), o que vemos é que são fortes as políticas públicas em prol do combate à desigualdade socioeconômica e promoção dos direitos sociais. Mas ainda é grande o déficit histórico em compatibilizar modernização capitalista e dignidade de condição humana. Mas como Marshall afirmou na conclusão de sua obra, não buscamos uma igualdade absoluta, talvez por entender que a luta contra o fim do capitalismo é uma luta muito dura e, fatidicamente, perdida, já que a capacidade de pressão da maioria social é muito inferior à capacidade de pressão da classe capitalista, dada a crônica desigualdade entre ambos no que diz respeito à posse de recursos políticos como dinheiro, meios de comunicação, instrução superior, etc.

Eis que há limites para o movimento em favor da igualdade que sempre serão defendidos pelo sistema capitalista, respondendo então a outra questão colocada por Marshall. Em outras palavras, uma cidadania plena e ilimitada encontra-se muito além do horizonte da sociedade capitalista e das suas instituições políticas.

Da mesma forma, o comunismo, na sua forma pura, não sendo do interesse da classe dominante, nunca vigorará. Mas o socialismo, mesmo sendo ele um socialismo “burguês”, isto é, que aceita o Estado e convive com o capitalismo, é o caminho para que a igualdade de condições possa ser efetivamente transformada em políticas públicas de combate à desigualdade. Se o capitalismo é um mal necessário, é justo que, pelo menos, possamos viver em um país democrático, onde a participação política seja uma realidade.

Mas a luta pelo fim da desigualdade não deve nunca ter fim, a menos que haja vitória. Parafraseando Marx e Engels, que as classes dominantes tremam à ideia de uma revolução comunista! Os proletários nada têm a perder nela a não ser suas correntes, ao contrário, tem um mundo a ganhar.

Referências:

MARSHALL, T. H. “Cidadania e classe social”. In: Marshall, T. H., Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar. 1967.

MARX, Karl Marx e ENGELS, Frederich, O Manifesto do Partido Comunista. Editora Vozes, 1999.