Eu parecia uma foca amestrada. Trepado no quarto andar da escadinha precária, segurava o globo de vidro na mão esquerda, a lâmpada queimada na direita e tinha na boca a lâmpada nova ainda na embalagem. Pensava em como faria para desembalar o bulbo luminoso usando apenas meus trinta e poucos dentes quando o telefone tocou. Não deveria, mas desci para atender. Impossível ignorar o alarme sonoro repetitivo e insistente. Então eu escutei a voz de Agnes. "Bom dia, gostaria de falar com o Sr. Rodrigo". "O próprio", retruquei. "Sr. Rodrigo, meu nome é Agnes e falo em nome do Banco tal para comunicar que o senhor foi selecionado para receber sem custo adicional nosso cartão Unique total flex special saphire gold com um limite pré-aprovado de tantos reais. Vamos atualizar seu cadastro?". Foi então que aconteceu minha grande experiência numinosa, um verdadeiro êxtase religioso.
Paradoxalmente, enquanto escutava a voz de Agnes, fui transpassado por uma onda de amor e de bondade. Eu amava todo mundo. Eu amava o mundo, eu amava a vida, Eu amava Agnes. Eu amava até o Banco tal. E seria através do amor que eu mostraria a todos o quão irritante é a abordagem do marketing telefônico. Descalcei meus chinelos para sentir o tapete felpudo sob meus pés e sentei no pufe. Senti-me tomado pelo espírito de Gandhi, Martin Luther King e outros tantos pregadores da não-violência e então contei para Agnes a "Parábola da galinha amarelinha".
"Agnes, minha criança, ontem foi um dia muito estranho. Logo às cinco da manhã o padeiro me ligou. Senhor Rodrigo, aqui é o Fulano da padaria tal. Gostaria de informar que o senhor tem cinco pãezinhos pré-aprovados aqui. O senhor poderia dar uma passadinha aqui para pegá-los? Às nove da manhã, atendo o telefone novamente. Senhor Rodrigo, aqui é do açougue tal, gostaria de informar que o senhor tem um quilo e meio de patinho moído pré-aprovado. Dê uma passadinha aqui para pegá-lo, ok? Meio dia e novamente o telefone. Senhor Rodrigo, aqui é da loja de calçados tal, gostaria de informar que o senhor tem um par de botas de couro de avestruz pré-aprovado aqui conosco. A que horas o senhor vem buscar? Minha doce Agnes, recebi outros tantos telefones desse naipe ao longo do dia e, como se não pudesse ficar mais estranho, às dez da noite me ligou a Galinha Amarelinha. Senhor Rodrigo, aqui é a Galinha Amarelinha e eu trabalho na granja Watanabe. Gostaria de informar que tenho um ovo na cloaca já pré-aprovado para o senhor. Por favor, a que horas o senhor vem buscá-lo para que eu possa providenciar a postura? Como você bem pode imaginar, Agnes minha flor de lótus, estava cansado da insistência telefônica e disse à ave que aquilo era impossível, pois galinhas não falam. A pobre Galinha Amarelinha me disse que o Senhor Watanabe estava muito bravo pois no ano corrente o lucro da granja havia crescido apenas trinta por cento em relação ao ano anterior e que se elas (as penosas) não impulsionassem as vendas, virariam caldo Knorr. Relativizei dizendo que eu entendia sua situação, que a vida está dura, que todos temos contas a pagar e que precisamos fazer dinheiro. Mas então contei todo o meu dia para a Galinha e lhe perguntei se, apesar da necessidade de ganhar a vida, ela gostaria de viver num mundo onde as pessoas vivessem ao telefone sendo informadas de todos os produtos pré-aprovados".
Alias, Agnes, meu pequeno gafanhoto, você gostaria de viver num mundo assim?
"Tu...tu...tu...tu...tu...tu"