O crime de estupro e suas consequências sobre a vítima* 

Flavia Nicolau Nogueira**

RESUMO 

O presente artigo tem por objetivo relatar as consequências do crime de estupro sobre a vítima. É um dos crimes contra a liberdade sexual, no qual se dará ênfase à criminologia feminista e a dupla vitimação sofrida pela mulher, considerando o ato criminoso em si e o preconceito no meio social, ressaltando alguns passos do processo penal pelo qual passa a mulher violada.

PALAVRAS-CHAVE

Estupro. Criminologia Feminista. Dupla Vitimação da mulher.

Introdução

 

O estupro é um dos crimes mais praticados desde a Antiguidade. E mesmo atualmente, na era da globalização, a mulher continua a ser violada, discriminada e inferiorizada perante a sociedade. Em uma visão crítica destacaremos sobre a Criminologia Feminista e a Dupla vitimação da Mulher, dando ênfase ao Sistema Penal Brasileiro e às dificuldades do Processo Penal em questão.

2  Breve relato histórico

Desde a Antiguidade o estupro já era considerado crime, sendo citado na legislação mosaica e severamente reprimido pelos povos antigos com variadas punições que dependeriam da forma com que o crime houvesse sido praticado. Vejamos:

Na legislação mosaica, se um homem mantivesse conjunção carnal com uma donzela virgem e noiva de outrem que encontrasse na cidade, eram ambos lapidados.[1] Mas se o homem encontrasse essa donzela nos campos e com ela praticasse o mesmo ato, usando de violência física, somente aquele era apedrejado. Se a violência física fosse empregada para manter a relação sexual com uma donzela virgem, o homem ficava obrigado a casar-se com ela, sem jamais poder repudiá-la e, ainda, a efetuar o pagamento de 50 siclos de prata ao seu pai.”[2]

No Código de Hamurabi encontramos:

“...definia o estupro no artigo 130, estabelecendo que se alguém viola a mulher que ainda não conheceu homem e vive na casa paterna e tem contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto e a mulher irá livre”[3]

As Ordenações Filipinas previam no Livro V, Título XXIII, o seguinte:

“...o estupro voluntário da mulher virgem, que acarretava para o autor a obrigação de se casar com a donzela e, na impossibilidade do casamento, o dever de constituir um dote para a vítima. Caso o autor não dispusesse de bens, era açoitado e degredado, salvo se fosse fidalgo ou pessoa de posição social, quando então recebia tão somente a pena de degredo.”[4]

 

Encontramos no Código Criminal do Império de 1830 a seguinte e preconceituosa definição, observemos:

“ O legislador definiu o crime de estupro propriamente dito no artigo 222, cominando-lhe pena de prisão de três a doze anos, mais a constituição de um dote em favor da ofendida.[5] Se a ofendida fosse prostituta, porém, a pena prevista era de apenas um mês a dois anos de prisão.”[6]

 

Por fim, veremos o que determina o Código Penal de 1890, que inovou no artigo 269 a intitulação de estupro para cópula violenta, com as penas no artigo 268, com o mesmo preconceito contra a mulher já observados no Código anterior.[7]

2.1 O Estupro no Código Penal Vigente

Ainda de acordo com Luiz Regis Prado o termo stuprum, no Direito Romano, representava, em sentido lato, qualquer ato impudico praticado com homem ou mulher, englobando até mesmo o adultério e a pederastia. Em sentido estrito, alcançava apenas o coito com mulher virgem ou não casada, mas honesta.

No Código Penal Brasileiro encontramos o crime de estupro consubstanciado no art.213 no Título VI – Dos Crimes contra os Costumes; Capítulo I: Dos Crimes contra a Liberdade Sexual – “Estupro: Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Pena – Reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.”[8]

 

Antes de qualquer afirmação acreditamos ser necessário uma observação sobre a discriminação já citada no relato histórico, e que também, persiste até os dia atuais. Notamos que desde a Antiguidade havia diferentes penalidades que variavam não de acordo com o crime praticado – estupro – mas de acordo com a estereotipação da mulher violada e da posição social do estuprador. Sendo que, para mulheres virgens, as penas eram mais altas do que para as prostitutas, como se estas não tivessem a opção de ter relações com o homem que elas escolhessem, pois fica claro que a prostituta era tida como objeto, com menor valor do que as mulheres virgens.

O crime de estupro viola um dos princípios da nossa Constituição contido no art.1º, tendo como um de seus fundamentos no § III: “a dignidade da pessoa humana”, assim como no art. 5º da mesma Carta §10: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

 A violação da mulher fere diretamente estes artigos, relembrando que desde a antiguidade muitas vezes uma das penas contra o estuprador era o pagamento de dotes ou mesmo uma quantia em dinheiro, assim como ocorre atualmente com o pagamento de indenização, como se a honra e a dignidade pudessem ser ressarcidas com valor monetário, abrimos aqui um parêntese para a seguinte questão – quanto vale uma honra?

3 Criminologia Feminista

É importante lembrar que ainda em muitos locais vivemos em um período Patriarcal, no qual à mulher é reservado o espaço doméstico, ficando destinada a criação de filhos e à administração do lar, ocupando o espaço privado, o mesmo ainda ocorre com a seletividade da mulher com relação à lógica da honestidade.

A mulher honesta é citada desde a Antiguidade e distinguida da prostituta, portanto, ao ser vitimada o sistema penal verá qual o status da mulher – honesta ou prostituta.

Segundo Vera Regina Pereira de Andrade:

“O sistema penal não pode, pois, ser um referencial de coesão e unidade para as mulheres porque atua, ao contrário, como um fator de dispersão e uma estratégia seletiva na medida em que as divide, recriando as desigualdades e preconceitos sociais. E não pode ser um aliado no fortalecimento da unidade familiar e sucessória segundo o modelo da família patriarcal, monogâmica, heterossexual, destinada à procriação legítima, etc.” [9]

O Movimento Feminista teve papel fundamental nas conquistas das mulheres ao longo dos anos, entretanto, como nos diz Vera Andrade existe neste movimento um paradoxo em buscar a igualdade ou a diferença com o gênero masculino.

Vale observar que durante todos esses anos a mulher teve várias conquistas como: Centros de assistência para mulheres maltratadas e Delegacias de Mulheres, que encorajaram as mulheres violadas a fazerem suas denúncias, inclusive as que permaneciam ocultas no âmbito privado.

 

3.1  Dupla Vitimação da Mulher

Geralmente a mulher que sofre um crime de estupro passa por uma dupla vitimação:  pelo crime do qual foi vítima e por ser julgada pelo próprio Sistema Penal. Tal julgamento ocorre pelo estereótipo da mulher considerada pelo sistema “honesta” ou “desonesta”, levando-se em consideração a reputação e a moral que esta tem na sociedade. Ressaltando que se esta for considerada desonesta é duplamente violada, pois passa a ser julgada como se, nas palavras de Vera Andrade, tivesse “consentido, gostado, provocado, forjado o estupro, sentido prazer ou estuprado o pretenso estuprador”.[10]  Havendo desta forma uma inversão de papéis que passa a desencorajar a mulher violada a procurar o Sistema Penal na busca de seus direitos.

Abrimos aqui outro parêntese para ressaltar os atos de estupro praticados por familiares, os quais geralmente são acobertados pela própria família, pois a mãe teme que o marido perca o emprego e opta pelo silêncio familiar.

De acordo com dados de Joana Domingues Vargas, no IBCCRIM cerca de 60 % dos B.O.s são arquivados, sendo que também altos índices de vítimas não apresentam denúncia, buscando a solução no silêncio, porque muitas vezes a mulher sente-se envergonhada também perante a família e a sociedade, pois irá tornar-se uma mulher rotulada.

Os casos de estupro têm um processo penal dificultoso, pois tem-se apenas a versão da vítima e raramente do agressor, havendo carência de testemunhas e mesmo de provas, sendo que muitas vezes após a mulher ser estuprada ela toma banho, com o objetivo psicológico de se limpar daquele ato, perdendo uma das provas relevantes, “Em relação ao significado do banho, por exemplo, pode se dizer que, se para o senso comum o banho após uma relação sexual representa uma forma de higienização, para a vítima esse significado pode assumir um conteúdo mais dramático, pois refere-se ao ato de retirar a sujeira, a vergonha, e possivelmente, a desordem emocional. Já o sentido conferido pela Polícia é o de apagar as provas ou os vestígios da materialidade do crime [...] todo esse  processo trazem dificuldades para comprovar a materialidade do crime.[11]

 

Outra situação que convém ser analisada é a do crime de estupro praticado no casamento, segundo Nucci:

“...jamais poderá servir de pretexto para o Judiciário fechar as portas à mulher violentada pelo marido, sob o vetusto argumento de ter havido exercício regular do direito. Há penalistas que sustentam a possibilidade de a mulher não consentir na relação sexual apenas no caso de ter justo motivo. Vamos além: ela pode recusar-se sempre que quiser. Se o marido não suportar tal situação, o caminho é a separação judicial, mas jamais o estupro”[12]

Vale lembrar que o crime de estupro praticado pelo marido possui imensa dificuldade na produção de provas, não há testemunhas, há constrangimento e torna-se insuficiente a palavra da vítima contra a do réu.

Conclusão

De acordo com todas as citações e afirmações discorridas, concluímos que o preconceito contra a mulher não permite que esta venha a ter sua liberdade sexual garantida de forma adequada. Um dos motivos se deve ao processo penal muito dificultoso e, por que não dizer, ineficiente.

A partir do momento em que a mulher vai realizar a denúncia já passa a ser rotulada, sem levar em consideração seu estado psicológico e as conseqüências que ficarão por toda sua vida, sendo que algumas jamais conseguirão voltar a ter uma vida normal.

O próprio Sistema Penal discrimina a vítima desde o início, avaliando seu estereótipo, e como nos disse Vera Andrade, muitas vezes julgam a mulher com se esta fosse culpada pelo crime sofrido, baseados em sua roupa, onde e com quem estava, enfim, como se ela tivesse pedido para ser estuprada. Tudo isso faz com que um grande número de vítimas permaneça no sigilo da agressão sofrida.

A mulher ainda é vista como um objeto do homem, persistindo o sistema patriarcal. Muitas permanecem em silêncio, temendo a família, temendo o preconceito da sociedade que irá rotulá-la como uma mulher que foi vítima de estupro.

 Um grande índice de violência continua oculta no próprio lar, quando a mulher é estuprada por seu marido, esta sim, passa um constrangimento maior ainda, por ter que afrontar a própria família, parentes, amigos, enfim, a sociedade, porém com relação a este crime as mulheres obtiveram um grande avanço do Sistema Penal, pois antigamente a relação sexual entre marido e mulher era tida como uma obrigação do matrimônio.

Entretanto, com os movimentos feministas, as lutas pela igualdade, e a constante busca de sua valorização e direitos, as mulheres vem conquistando seu espaço na sociedade.

Convém citar que por meio das lutas já travadas as mulheres alcançaram muitas conquistas, como o direito ao trabalho (embora muitas vezes receba um salário inferior ao do homem, mesmo desempenhando as mesmas funções), ao estudo, uma maior liberdade sexual, enfim, embora ainda  tendo muito a conquistar já houve um grande avanço e conscientização por parte da sociedade.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima – Códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

BRASIL. Constituição Federal, Código Penal, Código de Processo Penal. 6º ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 5º ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. , 8º ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 3: Parte Especial. Ed. 3, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

VARGAS, Joana Domingues. Crimes Sexuais e Sistema de Justiça. São Paulo: IBCCRIM, 2000.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte Geral. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.



* Artigo científico apresentado à disciplina de Criminologia do 2º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB) ministrada pela professora Carolina Pecegueiro.

** Aluna do 2º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[1] A pena de lapidação consistia no apedrejamento do condenado até a morte.

[2] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol 3: Parte Especial. Ed. 3, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 253.

[3] Ibid, p. 253.

[4] Ibid, p. 254.

[5] Ter copula carnal por meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.

[6] PRADO, Luiz Regis, op. cit., p. 254.

[7] Artigo 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena – de prisão cellular por um a seis anos. § 1º Se a estuprada for mulher pública ou prostituta: Pena – prisão cellular por seis meses a dois anos.

[8] GOMES, Luiz Flávio.Constituição Federal, Código Penal, Código de Processo Penal. 6º ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 350.

[9] ANDRADE, Vera Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima – Códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 104.

[10]  Ibid, p. 100.

[11] VARGAS, Joana Domingues. Crimes Sexuais e Sistema de Justiça. São Paulo: IBCCRIM, 2000, p.64

[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 8º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.862.