O conto brasileiro à luz das categorias centrais do pensamento bakhtiniano

 

                         Mateus Anísio de Lima[1]

 

RESUMO

          Este artigo tem como objetivo fazer uma análise do conto “As voltas do filho pródigo” do romance O risco do bordado (1970), de Autran Dourado, sob os vieses do pensamento bakhtiniano como: a romancização, o dialogismo e o plurilinguismo.  Nesta perspectiva, foram feita análises comparativas entre o conto supracitado e o texto “Epos e Romances” de Mikhail Bakhtin.  Também foram feitas outras leituras afins. No entanto, percebe-se elemento no conto ora em questão que remete ao ideário teórico elaborado por Bakhtin. A escolha desse conto deve-se não apenas ao fato dele revelar um campo fértil para a aplicação da teoria Bakhtiniana, más também por se configurar com um exemplo típico da prosa literária brasileira contemporânea, cuja tônica tem sido a memória, a adoração de um caráter histórico, paródico, humorismo, trágico e polifônico, casando assim, com alguns pressupostos teóricos postulados pelo linguista russo Mikhail Bakhtin.

 

Palavras-chave: categorias bakhtinianas – conto brasileiro – romancização –  dialogismo –  plurilinguismo.

 

1. INTRODUÇÃO:

A literatura sempre apresentou alguma necessidade vital e incessante de inovação, uma inexorável demanda de criatividade que é determinada pela natureza dialógica da arte literária. Como toda obra, pressupõem que ela seja produzida a partir da criação de um sujeito que lê e é idealizado por outro que escreve. O legado disso é a criação de outros seres possíveis que completam a própria obra. Nisso, pode-se afirmar que o elemento criativo da literatura tem sua gênese na alteridade.

          Notadamente, a literatura mesmo em época em que se submeteu aos moldes rígidos das poéticas clássicas de Aristóteles e Horácio, as obras fundamentaram sua existência em função de um “outro” que buscava prazer e renovação estética. Segundo Aguiar e Silva (1983.p.524), afirmam que:

A possível rigidez existente no conjunto de regras do classicismo é atenuada, na obra dos grandes criadores, pela introdução ao fundamental imperativo de agradar ao leitor e ao público: “A principal regra”, escreve Racine no prefácio de Berenice, “consiste em agradar e convencer: todas as outras não são feitas se não para chegar para chegar a esta primeira”. Se nos escritores medíocres a observância nas regras se transformou num seco dogmatismo, os grandes artistas do classicismo, senhores de um apurado gosto souberam seguir aquele preceito que, [...] “indica com regra não respeitar algumas vezes as regras”.

 

           Percebe-se aqui, que a partir dessas possibilidades é possível afirmar que o gosto literário pertence ao público e com isso, as perspectivas de agradar o outro só tem aumentado. A cada dia a produção literária vem se metamorfoseando. Todavia com advento do romance, surge no cenário literário uma nova e complexa dimensão. O romance por sua vez, apresenta uma natureza dialógica bem próxima das práticas de linguagem cotidiana. Para o teórico Mikhail Bakhtin, enquanto o épico, a tragédia, a poesia lírica de herança latina (éclogas, idílios elegias, etc.) se apresenta como gêneros consagrados e definidos há séculos, o romance hodiernamente permanece inacabado:

 

O romance é o único gênero em evolução, por isso reflete mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente à evolução da própria realidade. Somente o que evolui pode compreender a evolução. O romance tonou-se o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna precisamente porque, melhor que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo, ele é, por isso, o único gênero nascido naquele mundo e com tudo semelhante a ele[2].

 

          Nota-se que o romance, por ser fruto da inovação da estética literária carrega com sigo como estigma a precariedade de gênero. Talvez pelo fato de tiver em si a natureza essencialmente evolutiva. No entanto, o romance assimila, elimina ou reinterpreta outros gêneros literários, que se tornaram mais livres e soltos. Nesse sentido, os gêneros antigos sofrem uma auto parodização ao se cruzarem dentro do romance com elemento do riso popular com a ironia e o humor. O extraordinário, porém, é a ação de um tempo presente não acabado sobre os gêneros clássicos, por conta do legado da alteridade adquirida nos tempos modernos. A esse complexo processo – aqui, apenas cogitado – Bakhtin denomina de “romancização”.

          Neste contexto, procura-se compreender em que medidas as noções de dialogismos e intertextualidade podem ser visto como pontos fundamentais na explicação da natureza do discurso do romance, segundo o proposto por Bakhtin. E em contrapartida, torna-se importante saber até que ponto tem sido fecunda a reflexão teórica desse russo quando aplicada ao exame do discurso elaborado pelo romance brasileiro. Portanto, o conto – espécie de romance curto – “As voltas do filho pródigo”, de Autran Dourado permite que sejam evidenciadas as ideias contidas por Bakhtin a respeito de alguns pontos do discurso do romance.

 

2. O conto brasileiro contemporâneo

Em O conto brasileiro contemporâneo, Alfredo Bosi atua na seleção, organização e na feitura de notas bibliográficas em prol das tendências contemporâneas de nossa literatura, especificada por tal gênero. E mais, o organizador antepõe à sua lista de nomes e contos que compõem essas tendências, um breve ensaio intitulado “Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo”, no qual realiza um balanço sobre tais tendências, justificando-as com suas escolhas.

          O conto atual possui um caráter plástico, se comparado a outros gêneros narrativos, mesmo sendo curto, condensa e potencia no seu espaço todas as possibilidades da ficção. Segundo Alfredo Bosi (1985) afirma:

 

“O conto cumpre a seu modo o destino da ficção contemporânea. Posto entre as exigências da narração realista, os apelos da fantasia e sedução do jogo verbal, ele tem assumido formas de surpreendente variedade. Ora é quase-documento folclórico, ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase drama do cotidiano burguês, ora o quase poema do imaginário às soltas, ora em fim, grafia brilhante e preciosa voltada às festas da linguagem”

 

          Percebe-se que o conto na sua plasticidade permeia toda pluralidade do romance, embora se constituindo apenas como “quase isto” ou “quase aquilo”, no entanto, o importante é que o conto consegue abraçar a temática toda do romance.

          Neste contexto, o conto põem em jogo todos os princípios que regem a escrita moderna em busca do texto sintético e do convívio de tons, gêneros e significados. É o que tem afirmado Bosi (1985) e acrescenta que “o conto tem exercido, ainda e sempre, o papel de lugar privilegiado em que se dizem situações exemplares vividas pelo homem contemporâneo”.

“As voltas do filho pródigo” é o título do que pode ser tratado como um quarto episódio, capítulo ou bloco do romance O risco do bordado, de Autran Dourado, publicado em 1970. Ele faz parte de uma cadeia narrativa maior em que diferentes histórias se articulam entre si e as personagens de uma estão ligadas às outras. São histórias que narram as mais marcantes experiências da infância do menino João e participam de seu aprendizado e amadurecimento. Neste contexto, a obra dialoga com os costumes e as mazelas da sociedade, onde fatos de intenso impacto familiar como o que envolve seu tio Zózimo, que na narrativa coloca o menino em contato com o fenômeno da loucura têm evidenciado pessoas que portam esse tipo de patologia sendo segregadas, discriminadas e esquecidas na sociedade.

 

3. As categorias centrais do pensamento bakhtiniano

O dialogismo não se desenvolve apenas socialmente, mas igualmente na esfera temporal, na dinâmica da vida e da morte. A convivência entre as pessoas e a progressão no tempo se alia na unicidade consistente de uma multiplicidade paradoxal, a qual se manifesta por meio de variadas linguagens. No entanto, pródigo em significações, o título do conto remete tanto às voltas da personagem pelos espaços externos, quanto às idas e vindas do louco à casa paterna e, por analogia, à relação de ingratidão do filho do episódio bíblico com o julgamento de Vovô Tomé sobre Zózimo. Pode referir-se, ainda, aos surtos periódicos, às recidivas dos acessos de loucura, assim como à prodigalidade da personagem, com suas histórias enchendo de alegria e graça o casarão e o lugar natal. A narrativa trata da alternância entre a espera pelo retorno e as chegadas e partidas do tio louco até sua partida final, que é a própria morte e o encerramento trágico de sua odisseia no interior do romance e na vida do narrador.

Na Bíblia, há várias passagens que fazem referência ao julgamento final, Paulo na carta aos Romanos analisa o sistema de vida dos judeus e percebe que nada adianta professar a fé com palavras e ideias, porque Deus, ao julgar, leva em conta aquilo que o homem pratica, as suas ações concretas, sem fazer diferença entre as pessoas. Nesses termos, Dourado (1999.p.211), também dialoga:

E voltando a si, ficou sabendo de tudo. E tudo aquilo que durante tanto tempo esconderam e ele pegava alguns fiapos no ar e com esses fiapos tentava construir a sua história, a sua verdade, de repente tudo lhe foi dado como ele menino imaginava o dia do Juízo Final, quando todos seriam chamados e todos os pecadores, mesmo os que agente esquece, surgiriam, e todos, vivos e mortos, uns diante dos outros, despudoradamente, veriam a verdade terrível de cada um, e as coisas então fazendo sentidos na claridade estridente da nova manhã.

 

É sob tal ótica que se desenvolve o pensamento de Bakhtin acerca do dialogismo, o qual alude ao permanente diálogo travado entre os diversos discursos que circulam na sociedade, devendo, por isso, ser visualizado e reconhecido como elemento responsável pela instauração da natureza interdiscursiva da linguagem. Enquanto o dialogismo se refere às conversações que estruturam uma dada linguagem, a polifonia tem como principal propriedade a diversidade de vozes controversas no interior de um texto. Conforme a tese do linguista russo Mikhail Bakhtin, este conceito se caracteriza pela existência de outras obras na organização interna de um discurso, as quais certamente lhe concederam antecipadamente boas doses de ascendência e ideias iluminadas.

O protagonista não é o louco, mas um narrador falando de si mesmo e contando sua relação e a de seus familiares com a loucura do tio, que é percebida pelo menino como um enigma e segredo de família, os quais ele precisa investigar e decifrar para elevar-se ao status de adulto. O conhecimento e o sofrimento no convívio com a loucura do parente são condições necessárias para que ele forme uma consciência dos fatos e de seu papel e função dentro do grupo familiar e social. Nesta perspectiva, a abordagem desse tópico remete-nos a um ponto essencial da obra bakhtiniana: a relação autor-herói. Quando Bakhtin analisa a narrativa de Dostoiévski, pois, através desse exame, torna-se possível a visualização de uma nova posição artística: um cenário no qual a voz autoral e a voz do herói são colocadas em um mesmo plano.

 

A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características, mas tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis. (BAKHTIN, 1981, p. 03)

 

Neste contexto, é possível vislumbrar algo extraordinário que embora no romance o personagem não deva ser “heroico”, nem no sentido épico, nem no sentido trágico da palavra. Em “As voltas do filho pródigo” o narrador personagem ora fala por si só, ora dá voz ao autor que às vezes se sente na pele de seus personagens. João torna-se um herói – dentro do princípio da alteridade e romancização – que carrega em si uma carga de positividade em dados momentos e em outros vive imbuídos de dúvidas e medos.

 

4. Considerações Finais

Em alguma medida, este artigo realizou um esforço de compreender a análise do conto “As voltas do filho pródigo” do escritor Autran Dourado a partir do Círculo de Bakhtin e sua visão sobre as categorias centrais que envolvem a natureza do discurso do romance, tentando melhor entender as relações casadas do conto brasileiro contemporâneo com alguns fundamentos teóricos bakhtinianos. Entre outros a romancização compreendida como a transformação dos gêneros clássicos como a tragédia e o idílio e outros, como também os gêneros não literários: a gramática, os códigos de leis e catecismos.

 De modo geral todos os gêneros estabelecidos historicamente sofreram em algum momento, autoparodização por conta da penetração de elementos cômicos. O dialogismo, o qual se refere às conversações que estruturam uma dada linguagem e o plurilinguismo que se constitui com os diferentes estratos internos da língua materna.

Portanto, os estudos e as reflexões a cerca das noções de dialogismo são plausíveis e fundamentais para a explicação da natureza do discurso do romance, principalmente quando são fundamentadas nos pressuportes teóricos de Bakhtin, linguista bem renomado no meio acadêmico. Haja vista, que as teorias bakhtinianas a cada dia vêm sendo mais discutidas e aplicadas nos centros acadêmicos aqui no Brasil, com isso, o romance brasileiro tem se revigorado e se ‘firmado perante a sociedade. Como é o caso do conto “As voltas do filho pródigo” de Autran Dourado que ao ser analisado sob a ótica das ideias do russo Mikhail Bakhtin, evidências de ideologias comuns são constatadas e colocadas à disposição para novas investigações.

 

5. Referências

AGUIAR e SILVA, Vitor Manoel de. Teoria da literatura: Coimbra, 1983.

 

BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance (sobre a metodologia do estudo do romance). In:_____. Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance). 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1993. p. 397-427.

 

_________. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

 

BOSI, A. (Org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1985.

 

CARNEIRO, Cleverson Ribas. Os tambores silenciosos: voz popular e alegria revolucionária. Dissertação de mestrado. Curitiba: UFPR, 2002.

 

DOURADO, Autran. O risco do bordado. 9a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.



[1]Pós-graduando em Língua portuguesa e Literatura brasileira pela UESPI; Professor concursado da rede municipal de ensino de Floresta do Piauí – PI.

[2] BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance ( Sobre a metodologia do estudo do romance). In: __________. Questões de Literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1993.p.400.