O conceito de fetichismo da mercadoria cultural na teoria marxista do valor

Resumo 

Este artigo desvela sobre o conceito de fetichismo da mercadoria cultural na teoria marxista do valor. O conceito de “fetichismo da mercadoria” foi criado por Karl Marx (1818- 1883) na obra-prima intitulada O Capital (1867), significando o caráter que as mercadorias possuem, dentro do sistema capitalista, de esconder as relações sociais de exploração do trabalho da classe dominante sobre a classe dominada.

Introdução 

Na teoria do valor de Marx, as relações sociais entre dominados e dominantes encontram-se a obtenção do lucro por parte de quem detém os meios de produção sempre em desfavor que contribuem com sua força de trabalho. Isso se faz devido às características que as mercadorias possuem, ou seja, além do valor de uso, como existe em qualquer produto, existe também o valor de troca.

O valor de uso é somente a utilidade ou propriedade material que um produto possui para satisfazer as necessidades humanas básicas para sua sobrevivência, isto é, o objeto externo da mercadoria. Já o valor de troca é uma relação quantitativa de troca de valores de usos diferentes que abstrai esses valores. Abstração ocasiona uma camuflagem no modo operacional das relações de produção, pois, se vê menos a complexidade do que a simplificação do processo de produção e de consumo das mercadorias.

A esse caráter de predominância do valor de troca, pela qual se opera a exploração do trabalho alienado e desse modo a obtenção do lucro por parte do capitalista, sobre o valor de uso e, conseqüentemente, a ocultação do mediato pelo imediato, Marx chama isso de fetichismo.

Na tentativa de explicar a economia mercantil capitalista, Karl Marx adota uma abordagem bastante distinta da utilizada pela economia liberal clássica. Sobre economia política clássica MARX (2001) cita o seguinte:

Entendo por economia política clássica toda a economia que, a partir de Willlam Petty, procura penetrar no conjunto real e intimo das relações de produção na sociedade burguesa, por oposição à economia vulgar, que se contenta com as aparências, rumina sem cessar, por necessidade própria e para vulgarização dos fenômenos mais notórios, os materiais já elaborados pelos seus predecessores, limitando-se a erigir pedantemente em sistema e a proclamar como verdades eternas as ilusões com que os burgueses gostam de povoar o seu mundo, para eles o melhor dos mundos possíveis (MARX, 2010, p. 51).

 Enquanto a economia política inglesa parte da realidade mercantil como um dado, e passa a explicar seu funcionamento com base na lei da oferta e da procura, Marx se lança na busca de algo que possa explicar o porquê do surgimento e da consolidação do mercado como forma predominante de provisão e distribuição de riquezas.

A teoria do fetichismo pode ser tomada como um elemento central na diferenciação dos enfoques marxista e liberal clássico, pois sua aceitação ou rejeição é algo definido no âmbito do método da ciência econômica. Com efeito, o valor das mercadorias parece ser um dado objetivo, quando na verdade, segundo Marx, este valor tem por base o trabalho humano nela objetivado.

Um ponto essencial na teoria fetichista, na perspectiva da economia política marxista, é o de Marx não ter mostrado apenas que as relações humanas eram encobertas por relações entre coisas, mas, também, que na economia mercantil as relações sociais de produção assumem a forma de coisas e não se expressam a não ser através de coisas.

O fetichismo da mercadoria

Atualmente assiste-se na sociedade contemporânea um intenso processo de mercantilização da cultura. Nas últimas décadas, incrementou-se o consumo cultural de massa, o que, por um lado, permitiu o acesso mais igualitário aos equipamentos culturais por parte de diferentes grupos sociais, mais por outro lado banalizou as manifestações culturais através do consumismo desenfreado.

A ideologia, em Marx, é a própria forma de encobrimento das relações sociais reais. Ela permeia todos os âmbitos da sociedade, criando toda uma retórica, todo um discurso para entorpecer o pensamento. Para Marx, a ideologia capitalista ofusca a relação do trabalhador com o trabalho, existente na troca de mercadorias, solidificando sua alienação quanto às reais relações humanas no mercado.

Tendo em vista a força da alienação, muitas pessoas passam a ver as mercadorias com vidas próprias, envoltas em um caráter quase místico. Os valores passam a fazer parte de uma suposta propriedade natural das coisas. Isso é o que Karl Marx chamou de caráter fetichista da mercadoria. A correlação íntima entre alguns dos conceitos presentes no marxismo, como a mais-valia[1], a alienação e a ideologia, é fundamental para uma melhor compreensão do fetichismo da mercadoria.

No primeiro capitulo de O Capital, Marx investiga a mercadoria, que chama de forma celular do capital. A partir dela desenvolve os conceitos de valor de uso e valor de troca, trabalho concreto e trabalho abstrato, chegando, assim, a uma nova teoria do valor. Investiga também as formas do valor e encontra o dinheiro como equivalente universal de troca de mercadorias. Desvela o fetiche, processo pelo qual a mercadoria ganha vida e passa a dominar as relações sociais. No momento seguinte, o processo de troca é analisado, do qual surge apenas uma relação comercial, onde um vendedor se relaciona com um comprador de mercadorias. O operário e o burguês não aparecem como tal, mas apenas o proprietário da mercadoria e o proprietário do dinheiro. Nessa esfera abstrata, as classes sociais estão mistificadas, ocultadas na forma de indivíduos iguais, livres e proprietários, realizando uma “justa” troca de equivalentes.

MARX assim explica o processo através do qual o fetiche da mercadoria se coloca:

Os objetos úteis só se tornam em geral mercadorias porque são produtos de trabalhos privados, executados independentemente uns dos outros. O conjunto destes trabalhos privados constitui o trabalho social [global]. Dado que os produtores só entram em contato social pela troca dos seus produtos, é só no quadro desta troca que se afirma também o caráter [especificamente] social dos seus trabalhos privados. Ou melhor, os trabalhos privados manifestam-se na realidade como frações do trabalho social global apenas através das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por intermédio destes, entre os produtores. Daí resulta que para estes últimos, as relações [sociais] dos seus trabalhos privados aparecem tal como são, ou seja, não como relações imediatamente sociais entre pessoas nos seus próprios trabalhos, mas antes como [relações materiais entre pessoas e] relações sociais entre coisas (MARX, 2010, p. 36-37).

 

Com efeito, o valor das mercadorias parece ser um dado objetivo, quando na verdade, segundo Marx, este valor tem por base o trabalho humano nela objetivado. Por isso, RUBIN apud VELOSO (2006) afirma que a teoria do fetichismo:

[...] consiste em Marx ter visto relações humanas por trás das relações entre as coisas, revelando a ilusão da consciência humana que se origina da economia mercantil e atribui às coisas características que têm sua origem nas relações sociais entre as pessoas no processo de produção (VELOSO, 2006, p. 441).

 

Para esse autor, a teoria do fetichismo é algo que deve ser entendido muito mais do que um mero apêndice à teoria do valor. O fetichismo, portanto, apresenta-se também de forma muito real, paradoxalmente, numa realidade muito concreta ante o misticismo que envolve a conceituação da face fetichista da mercadoria.

Nesse sentido, sociedade adere ao fetichismo a partir do momento em que se resigna perante o estabelecido, que se distância de sua organização e produção. Ela passa a se relacionar tão somente por meio de coisas que carregam em si essencialmente trabalho. Ainda que o pensamento se subverta e passe a ver a mercadoria pelo real trabalho que nela está inserido, o indivíduo permanecerá se relacionando por meio da mercadoria, ressuscitando o fetiche. Não se trata, pois, de mera questão de consciência individual, a questão passa pelas características do modo de produção burguês.

Marx descobriu que o sentido de alienação tem sua origem na vida econômica, porquanto o operário, ao vender sua força de trabalho, não toma parte do produto de si, que, ao ir além de si, passa a pertencer, estranhamente, ao mundo objetivado do lucro, do qual é excluído. Por sua vez, essa exclusão impõe ao próprio operário o desconhecimento das forças que operam no modo de produção capitalista que, promovendo um não-reconhecimento de si, produz uma não-consciência da realidade sob a qual está inserido. Essa não-consciência do operário é o resultado de mecanismos poderosos que ensejam sua alienação diante da realidade, com isso separando, propositalmente, o produtor de sua produção.

Define-se esse particular pela categoria do fetichismo, onde o produtor, nesse caso, o trabalhador, toma o produto como uma realidade autônoma e tirânica, dominando a própria subjetividade que permeia as relações sociais. O fetichismo em última instância se define como a coisificação do homem e a humanização da mercadoria, esta retira as qualidades daquele e desumaniza a própria condição do trabalhador.

 

Conclusão

O presente artigo procurou percorrer um caminho que levasse à compreensão da conexão entre o fetichismo da mercadoria e as vigentes relações de produção do capitalismo. Procuramos transitar entre conceitos que Marx manuseou de forma brilhante em sua análise da degradação humana promovida pelo modo de produção capitalista. Conceitos fundamentais e totalmente pertinentes ao apresentado fetichismo da mercadoria. Todos eles, tanto a alienação, a ideologia, a mais-valia e o caráter fetichista da mercadoria, correlacionam-se intimamente e, talvez, tenham de mais comum as contradições internas que representam uma possibilidade de mudança.

Qualquer que seja o estado de alienação em que vive um determinado indivíduo, sempre será em razão de não perceber que o trabalho, como valor máximo do homem, desvincula-se da massa da riqueza social existente, com isso, não só o empobrecendo do ponto de vista material, mas, sobretudo o espiritual, desumanizando sua qualidade de ser. Resta assinalar, que essa coisificação que o homem sofre no mundo contemporâneo tem sua gênese na crueza do capitalismo. Marx acerta quando assinala que o homem transfere para as mercadorias as qualidades existentes em si, e nesse caso o fetichismo é mais um aspecto das formas ideológicas de representação da realidade.

Referência bibliográfica:

ANTUNES, Jadir. Da possibilidade à realidade: o desenvolvimento dialético das crises em O Capital de Marx. Campinas: Unicamp/IFCH (Tese de Doutoramento em Filosofia), 2005.

MARX, Karl. O Capital. 1867. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapital-1/vol1cap01.htm. Acessado em 18/03/2013.

VELOSO, MARIZA. Revista eletrônica da UCG. Acessada em 18/03/2013. Goiânia, v. 4, n.1, p. 437-454, jan./jun. 2006. http://www.seer.ucg.br/index.php/habitus/article/viewPDFInterstitial/.../301. 



[1]  Mais-valia é o nome dado por Karl Marx à diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao trabalhador, que seria a base do lucro no sistema capitalista.