"Diga não a guerra!". "Revolte-se". "Fixe-ologia". "Pixar é errado, mas errar é humano". "Não ao PAC!". "Erva para todos". "A guerra é o terrorismo dos ricos". "O capitalismo roubou minha virgindade". "Fora ONU e tropas imperialistas do Iraque".

"Pixar" um muro é um ato violento e desesperado, ao mesmo tempo poético, de intitular e registrar a existência. Um tipo de imaginação criadora é uma hipótese interessante. Observando a simbologia dos desenhos e frases na cidade do Natal, Rio Grande do Norte, é algo irrealizável por parte de quem escreve, logicamente. As frases acima citadas são exemplos disso.

Não há dúvidas: o filósofo anônimo está participando da discussão deste artigo. Inúmeros transeuntes não se darão conta do que lêem (aliás, não nos importamos com detalhes como este nas ruas) num olhar enviesado, desatento. Mas certamente, o incômodo e o prazer na transgressão pela "depredação ao patrimônio público ou privado" – pela ótica criminal – será a grande recompensa.

Cedo ou tarde, alguém deverá ler. Oficialmente, não consideramos essas pessoas como artistas – o que parece-me um juízo bastante pessoal – , mas a lógica da imaginação corresponde as modalidades (ou tipos de percepção) vistos pela linha filosófica de uma mensagem.

Imaginação irrealizadora, que torna ausente o presente e nos coloca vivendo numa outra realidade que é só nossa, como no sonho, do devaneio e no brinquedo. Essa imaginação tem forte teor mágico (CHAUI, 2004:146).

Neste caso, a autoria anônima possui forte teor representativo. "Deixei minha frase, minha marca", ao passo que não será possível esboçá-la à luz do dia. Mas a identidade do "crime" possui um teor fantástico? Essas pessoas estão sedentas por visibilidade. O incômodo social atinge outro nível: o do diálogo. "Expresso a todos, inclusive as autoridades".

Observando a série de artigos organizados e publicados por Souza e Pesavento (1997) acerca de problemáticas urbanas e espaços de representação físicos em metrópoles brasileiras, perceberemos a singularidade anacrônica em desfrutar e dividir territórios urbanos (ocupar o ocupado).

A paisagem é reflexo da relação circunstancial entre o ser humano e a natureza. Resulta da ordenação do entorno a partir de uma imagem idealizada. Simultânea estrutura da sociedade e objeto de intervenção, a paisagem projetada e construída por elaborações filosóficas e culturais que resultam da observação objetiva do ambiente quanto da experiência individual ou coletiva em relação a ele.

As elaborações científicas citadas atendem a um critério que possui na origem, a divisão da espacialidade do poder, reflexo da criação institucional, conforme veremos em Foucault (1993). O pixar se opõe a equivalência dignificante da matéria oficial: a linguagem no concreto. Parece que souberam chamar a atenção. São unânimes quanto ao uso dos muros de estabelecimentos públicos.

Os textos se encontram com relativa freqüência em bairros mais ou menos próximos. Na Zona Sul (Capim Macio e Ponta Negra) em portas de lojas, lajes e viadutos. Na região de Cidade Alta, perceberemos a Avenida Rio Branco, uma das principais da cidade, com desenhos que sugerem uma estética similar, demarcatória. Hermes da Fonseca, Airton Senna e Salgado Filho atravessando os bairros de Lagoa Nova e Candelária com seu conjunto de frases de efeito. A arte como estética ou estética da denúncia?

A arte marginal, até certo ponto, caracteriza seu praticante como tal. Sou fora-da-lei, mas penso, vivo e critico como todo mundo. Instituições acadêmicas tratam variadamente desse tema, podemos mencionar os trabalhos de Alexandre Manoel Ferreira e Lucas Frettin da Universidade de São Paulo (USP), na cadeira de Antropologia Visual, com pesquisa etnográfica sobre a capital paulista. Frettin chegou a produzir um vídeo-documentário intitulado "A Letra e o Muro", tratando da organização urbana dos pixadores. Embora a realidade dos traços paulistanos diferem do natalense, a influência possui origens comuns: os guetos nova-iorquinos, sobretudo no Bronx, bairro tradicionalmente formado pela imigração de latino-americanos pobres, majoritariamente da Jamaica e Costa Rica.

Apoiada na cultura do Hip-Hop, a prática urbana dos desenhos em paredes chega ao Brasil em meados dos anos 80, desenvolvendo as bases da cultura de rua: o DJ (Disc-Jockey), MC (Master of Cerimonies), os B. Boys (dançarinos de Break) e o Graffiti (arte visual e plástica) como a idéia de um movimento que terá referenciais dos Estados Unidos, mas terá sua roupagem na América Latina. As estratégias são as mesmas: resistência ao racismo, pobreza e violência. O graffiti tornou-se pintura oficial, geralmente feita com latas de spray, sendo muros, repartições, prédios e metrôs seu alvo principal. No entanto, o graffiti se alinha à forma de uma arte, diferentemente do "pixo", que não atende a normas particulares do movimento Hip-Hop.

Na cidade do Natal, seus contornos assumiram a confluência de mais elementos visuais. Carvão, giz, tinta sintética, entre outras. Os diferentes limites territoriais também. As mensagens, em sua maioria, possuem um caráter anarco-comunista. Através de pesquisas independentes, descobri subdivisões variadas: grupos de arte que defendem a seu modo tal mecanismo de expressão, até facções do tráfico de drogas na cidade. Há quem pense que meros riscos nebulosos não tenham significado, mas os traços são bem singulares.

"Tem playboy, graffiteiro pobre, os que pixam só por pixar, os traficantes e tal". Palavras de C.H, um praticante do pixo que se utiliza do horário noturno para fazer o que denomina um trabalho. "Olha mano, aqui é terra de ninguém, a gente sabe, mas a vida é assim mesmo. Todo mundo quer ter oportunidade, os ricos não tão nem aí, então a gente corre atrás da nossa vez".

De Marglio di Paula a Jean Bolin, de Machiavelli a Espinosa, de Tyndade a Loyseau, de Bartolo di Perugia e Seyssel, a divisão social, porta como divisão política, retoma a distinção romana entre Populus e Plebs, isto é, entre o Povo como instância jurídico-política ligisladora, soberana e legitimadora dos governos, e a Plebe como dispersão de indivíduos desprovidos de cidadania, multidão anônima que espreita o poder e reivindica direitos tácitos (CHAUI, 1994:15).

Até que ponto um Estado de Direito pode sustentar sua corroboração com a exclusão social. O importante enquanto reflexão desse tema é a abordagem que fazemos das manifestações culturais que almejam uma oportunidade. Se de fato, nunca estamos totalmente aprisionados pelas variadas formas de poder simbólico, então comecemos a pensar a visibilidade daquelas (es) que necessitam existir, dando verdadeiro espaço à sua existência e não, simplesmente, sua luta por trás de uma parede de concreto. Somos mais que isto.

Referências

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2004.

_____________. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.

FERRAZ, Célia. & PESAVENTO, Sandra Jatahy. Imagens urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano (Org.). Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.