Alcemar Oliveira

Desde seu surgimento, o cinema reflete o momento social em que é produzido. As primeiras produções já traziam notas de exaltação ou de descontentamento com o status quo, veladas ou não, traduzindo a percepção do realizador que, tal qual o maestro com sua batuta, conduz a realização da obra utilizando sua sensibilidade e ideologia.

A sociedade, complexa que é, fornece a matéria prima para o cineasta, e este, por sua vez, transforma o fato social numa obra cinematográfica. E, na ampla concepção de fato relevantemente social, há de se incluir, o político e o histórico, entre outros. A história caminha lado a lado com o cinema, e este a acompanha como forma reveladora das convulsões políticas de uma nação. O contexto político é apresentado no cinema obedecendo ou não o governo vigente: atuando como propaganda política, como a produção de Leni Riefenstahl para o regime nazista e a de Carlos Borcosque, que se submetia à orientação peronista da década de 1950 na Argentina. Na mão inversa do cinema como agente propagandístico do regime, está um cinema "marginal", aquele produzido sem suporte do Estado, ou de pessoas a ele ligadas, ou que compartilhem dos mesmos interesses, ideológicos ou não.

Assim como o conflito está para a política internacional, a insatisfação política que se manifesta na sociedade está para o cinema dito "marginal". E o cinema antes marginalizado se torna um "cinema político", em antagonismo à propaganda estatal, mais preocupado em propagar as mazelas oficiais.

O século XX, o século do cinema, foi também um período de movimentações políticas extremamente autoritárias e que fizeram dos cineastas agentes encarregados de retratar e publicar internacionalmente o exercício do Estado de exceção. E, vale dizer, sempre indo de encontro com os agentes censores, perigavam ser presos, torturados ou exilados.

A experiência autoritária vivida serve de húmus para a produção cinematográfica, que se torna mais profícua a cada situação de descontentamento social. Como o proibido é sempre mais interessante, alguns cineastas se especializam em retratar o regime cerceador de liberdades individuais e sociais.

Surgem verdadeiros especialistas em driblar a situação censora vigente, denunciando, criticando e até caricaturizando os donos do regime e suas atuações. Nesse diapasão, temos Andrzej Wajda que, em sua obra "O Homem de Mármore" de 1975, usa tratores no lugar de canhões militares para mostrar a atuação do governo diante de insurgentes em pleno regime comunista polonês; Luiz Puenzo, que coloca na protagonista de "A História Oficial" o encargo de representar toda a sociedade alienada politicamente da Argentina da década de 70; e Ricardo Larrain, realizador de "La Frontera", produção chilena de 1991, que achincalha a polícia do exército de Pinochet na figura de dois policiais idiotizados.

Argentina, Brasil e Chile foram assolados por regimes autoritários nas últimas décadas do século XX. E o regime ditatorial foi retratado durante e depois, nos processos de abertura, com maior ou menor intensidade, dependendo sempre da censura que continuava a vigir.

Assim, no Chile, cineastas como Ricardo Larrain e Pablo Perelman, criadores de "La Frontera" e "Imagen Latente", na Argentina, Luiz Puenzo e Héctor Olivera, que realizaram "A História Oficial" e "La Noche de los Lápices" e no Brasil, Roberto Farias, com "Pra frente Brasil" e Bruno Barreto com "O que é isso, companheiro ?", se transformaram em agentes da indústria cinematográfica contestadores do regime, ainda que no período de início de transição civil, e encarregados de eternizar na memória os tempos de exceção.

Vale dizer que tais produções contavam com nenhum suporte governamental, alguns realizados com recursos estrangeiros ou até mesmo pessoais, já que a transição nestes países revelava uma democracia ainda incipiente e desconfiada para financiar produções de cunho desafiador para aqueles que ainda marcavam presença no governo, direta ou indiretamente, seja nos partidos ou na burocracia estatal.

Nosso trabalho consiste em levantar as questões que envolvem os recursos disponibilizados para a realização de filmes no chamado período de redemocratização destes países. Para tanto, como manda a melhor metodologia, foi feito um levantamento de filmes realizados naqueles países, que obedecem ao padrão de produção contestadora e de denúncia, e que tiveram repercussão internacional.

Entretanto, a maior surpresa e decepção, foi a dificuldade e até mesmo impossibilidade de termos acesso ao material filmográfico, mais de vinte anos depois.

Em que pese a repercussão do trabalho do cineasta, sua proposta, o interesse histórico, ou até mesmo a relevância do público ansioso por conhecer a história de seu país, certo é que muitas películas sequer foram levadas ao VHS, e muito menos ao atual DVD.

"Cicatriz", produção do Chile com a URSS, por exemplo, é impossível de ser ver. Nem o diretor, localizado em Moscou, se dignou a responder sobre a possibilidade de se ter uma cópia de seu trabalho.

Interessante notar que depois de driblar interesses opostos ao governo, estes mesmos cineastas sequer se interessam em promover divulgação de seus filmes no período de democracia plena que se sucede nos três países citados. A ânsia de colocar na película o descontentamento com a situação politica se esvazia tão logo deixa de existir empecilho para sua divulgação.

As produções chilenas de maior destaque são "La Frontera", "Imagen Latente", "Amnesia" e "Gringuito". Nenhum deles, até onde se sabe, faz parte do acervo de locadoras ou lojas de revendas de filmes, nem mesmo no Chile. Não se tratam de produções efêmeras, definitivamente. São filmes premiados internacionalmente: "La Frontera" foi agraciado na Alemanha, Espanha, Brasil e Cuba; "Gringuito" venceu categorias nos festivais de Cartagena e de Havana; "Amnesia" foi contemplado com oito prémios, incluindo um Kikito de Ouro de melhor Filme, no Festival de Gramado de 1995.

Ter acesso a tais filmes, mesmo que uma cópia não autorizada, revelou-se uma árdua tarefa. O contato com os realizadores chilenos foi feito via representação diplomática no Rio de Janeiro, e, apesar da boa vontade da secretaria do Consulado, em contato com o Ministério das Relações Exteriores, o que conseguimos, depois de muita insistência, foi um DVD caseiro, impossível de se assistir. Vale dizer que, apesar de ter uma significante produção cinematográfica, uma vasta bibliografia sobre o cinema chileno, órgãos oficiais encarregados de divulgação da cultura e departamentos específicos nas universidades do país, a representação consular do Chile no Rio de Janeiro dispõe de poucos títulos, e todos conhecidos como "DVDs piratas". Cabe dizer que impressiona a falta de preocupação com o produto acabado à venda nas lojas chilenas, uma vez que não se distanciam daqueles vendidos por ambulantes no Rio de Janeiro.

O caso da Argentina é diferente. O cinema politico argentino é de tamanha relevância, aclamado pelos nacionais, reconhecido internacionalmente, além de ser o único na América do Sul premiado pela Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood com dois Oscars de melhor filme estrangeiro ("A História Oficial" e "O Segredos dos Teus Olhos"). Além da extensa lista de filmes que tratam do período ditatorial argentino, é impressionante a facilidade de ter acesso aos títulos, inclusive no Brasil.

Claro que a premiação no Oscar de "A Historia Oficial" impulsionou a produção filmográfica e sua distribuição. Mas o interesse do povo argentino pela sua história não se reflete só no cinema. O cinema argentino, dos tempos de transição e o atual, usa como pano de fundo não só a situação política do país, vivida na década de 1970, mas também a crise que destruiu a economia do país nos anos 90. Assim, o tema da recessão foi tratado em títulos como "O Abraço Partido" de Daniel Burman e "Do Outro Lado da Lei" de Pablo Trapero ; a ditadura militar, em "A História Oficial" de Luis Puenzo e, mais recentemente, um suspense passado no governo abarcado pela corrupção moral do mandato de Isabelita Perón ("O Segredo dos teus Olhos", de Juan Jose Campanella), e em filmes sem nenhuma pretensão de metaforizar o regime: "Crônica de Uma Fuga" de Adrián Caetano e "Garage Olimpo" de Marco Bechis.

"O Segredo" ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, e naquele país era possível assisti-lo nos cinemas ou comprá-lo nas bancas de jornal ? um caso inédito de lançamento simultâneo, impulsionado pela premiação recente.

Ainda assim, filmes que não tiveram a merecida divulgação quando de seu lançamento, ou mesmo depois do fim do autoritarismo da censura, voltaram ao mercado em edições comemorativas, com extras que incluem matéria sobre as filmagens, entrevistas com os autores, diretores e elenco. Ainda que só no mercado argentino. É o caso de "La Noche de los Lápices", produção de 1986 de Héctor Olivera, que jamais chegou ao Brasil, apesar de indicado ao prêmio principal do Festival Internacional de Cinema de Moscou no ano seguinte, e que ganhou uma edição comemorativa de vinte anos em DVD.

No Brasil a produção cinematográfica mais recente tem cunho diversificado e é camandada pela Globo Filmes. Ainda que pese ser um veículo de aceitação duvidosa, é inquestionável o apelo de denunciação em filmes como "Zuzu Angel" de Sérgio Rezende e "Batismo de Sangue" de Helvécio Ratton, como obras que retratam a exceção no período posterior a 1964.

Entretanto, a produção filmográfica dos anos 80 desapareceu. Nem mesmo aqueles com protagonistas conhecidos das novelas se dignam a voltar remasterizados e digitalizados para as prateleiras das lojas e locadoras. "Pra frente Brasil", um referencial do cinema político brasileiro só é encontrado em cópias VHS. Sem falar em outras produções que nunca chegaram à TV. É o caso de "Quilombo", produção franco-brasileira de 1984, dirigida por Carlos Diegues, indicada para a Palma de Ouro do Festival de Cannes, premiado no Festival de Cartegena, de alto custo para os padrões da época, que só foi vista nos cinemas. "O que é isso, companheiro?", baseado no romance homônimo de Fernando Gabeira jamais chegou a ser veiculado em DVD, apesar da indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. É mais fácil achá-lo nas prateleiras do Best Buy dos Estados Unidos do que no Brasil, que só dispõe do titulo em fitas de vídeo, em pouquissimas locadoras.

A confusão burocrática que cerca o acervo filmográfico no Brasil é flagrante. Vários órgãos já foram criados, extintos, renomeados, desviados para outras secretarias, o que torna quase impossível a localização de títulos e informações sobre as produções.

À guisa de conclusão, é de se notar que o tratamento dado ao acervo de filmes que tratam da memória do país é tratada de formas diversas nos três países citados. Em que se sustente a importância histórica de tais produções, a estima dos cineastas para fazer chegar ao espectador um retrato contundente do regime, com ou sem maquiagem, é fato que não há interesse dos realizadores, dos distribuidores, ou do governo para divulgar tão preciosa obra. O Chile caminha a passos curtos para criação e manutenção de um acervo que mostre a realidade do período pinochetista, e somente produções realizadas com grande aporte financeiro estrangeiro conseguem se arvorar no mercado externo (é o caso de "A batalha do Chile" de Patricio Guzman, de 1975, com suporte financeiro de produtores franceses). A Argentina, apoiada nas premiações internacionais de melhor filme estrangeiro, se destaca na divulgação de seu acervo, com alta receptividade pelo público, amparada nos julgamentos de torturadores que movimentam as discussões tal como faz o futebol daquele país. Como já dito, no Brasil, a balbúrdia dos setores encarregados dificulta o acesso às películas e às informações sobre as produções anteriores ao "boom" da Globo Filmes. E obras do peso de "Pra frente Brasil" ficam limitadas a VHS que tendem a desaparecer e ficarem esquecidos na memória ou com parca referência nos livros.