Entre os crimes patrimoniais, nenhum delito possui tanta visibilidade social quanto o roubo, seja pela sensação de insegurança causada, ou pela conjuntura catastrófica do país nos quesitos educação, saúde, segurança pública e cultura, fatores que facilitam a criminalidade e tornam este crime um problema muito aquém de uma questão meramente policial.[1]

O roubo de veículo cujo objeto central é a posterior comercialização dentro do território nacional, é formado a partir de uma conjunção de fases, cada qual com a sua característica peculiar, a citar:

1. A encomenda pelo receptador final

Ocorre aqui um primeiro contato, que nasce da encomenda de um veículo (ano, cor, modelo, etc.) por um comprador, também conhecido como receptador final. Geralmente este comprador não reside na mesma região onde será realizado o serviço, aliás, ele sequer realiza um deslocamento até este local, fazendo a encomenda quase sempre a partir de um estado diverso ao seu. Caso o destino final do veículo seja um dos muitos países limítrofes ao Brasil, será neste país o local de domicílio do receptador final. [2]

Na maioria das vezes o acerto da encomenda é realizado de maneira antecedente, onde a maior parte do valor deste acordo fica com o ao chefe da quadrilha, que divide o restante e repassa aos assaltantes (estes recebem a menor parte). O fato é que neste tipo de ação quase sempre ocorre à preferência pelo roubo em detrimento do furto, pois obviamente a primeira conduta não danifica o veículo, ao passo que na segunda há a possibilidade deste “prejuízo”. [3]

2. O receptador intermediário

A encomenda do veículo desejado é feita pelo receptador final por meio de um receptador intermediário, que igualmente na regra geral não reside no local onde será realizada a ação criminosa. A diferença entre estes receptadores está no fato de que o intermediário irá se dirigir a região onde será feito o trabalho, realizando a contratação do serviço via contato com um chefe de quadrilha. O mesmo receptador intermediário apresentará as armas, o dinheiro e as características da encomenda, ficando na cidade até o momento da consumação do crime. Após a concretização da ação, o receptador intermediário receberá das mãos da quadrilha o veículo, para então removê-lo até a sua região, onde ele irá escondê-lo, fazendo uma revisão antecedente antes do destino final. A grande maioria dos receptadores intermediários que agem no Rio Grande do Sul reside no Paraná ou no oeste de Santa Catarina, realizando, por mês, algumas viagens a Porto Alegre onde geralmente ficam hospedados entre 48 e 72 horas, na maioria dos casos em finais de semana, entre quintas e sábados. [4]

3. O chefe da quadrilha

Cada receptador intermediário possui uma lista (um catálogo) com nomes de sujeitos que podem ser contratados para executar determinado tipo de roubo. Aqui é novamente apresentada a figura do chefe de quadrilha, o agente responsável pela plena execução do crime, pois é ele quem coordena o bando que irá praticar a ação. [5]

O chefe fará a ligação direta com o bando (como é chamado no meio), geralmente composto por duas a quatro pessoas, com idades em torno de vinte anos. Importante mencionar a grande rotatividade de agentes escolhidos para a formação de bandos, pois deste modo haverá maiores complicações para fins investigatórios por parte da polícia. Em razão desta constante alternância, em cada nova ação, o chefe irá “fechar” com um bando distinto, sendo ele dissolvido na sequência. [6]

4.  A ação da quadrilha no roubo

Aqui ocorre a preparação para a ação delitiva, ocorrendo em média 72 horas antes do crime. É realizado então o planejamento da ação, com ampla discussão de detalhes, como por exemplo, rotas de fuga, horário escolhido, métodos de ataque, segurança, e outros acertos. Urge ressaltar que em muitos casos a própria quadrilha opta furtar um veículo para a ação final do roubo, quase sempre veículos leves, rápidos, potentes e discretos.

5. O momento da ação, passo a passo:

Abaixo, um exemplo do método de organização criminosa em um roubo bem sucedido. Os passos retratados são resultantes dos depoimentos de chefes de quadrilha presos.

  1. O chefe da quadrilha reúne o bando e discute a função de cada agente no momento do assalto;
  2. É realizado um ensaio pelo bando, inclusive com o método de abordagem da vítima;
  3. Um dia antes da ação, é iniciada a preparação final para o assalto;
  4. A quadrilha realiza o furto de dois carros velozes e pouco chamativos, a serem usados no crime;
  5. Os carros que foram furtados são ocultados no interior de um depósito ou garagem clandestina, onde as suas placas são alteradas;
  6. Na data marcada, o bando faz uma reunião (na maioria das vezes no final da tarde) para o acerto dos detalhes finais, assim como para a confirmação da encomenda;
  7. Após o acerto final, o bando consome drogas e álcool. Depois, saem rumo à execução pelas ruas;
  8. O roubo é realizado, e após isto, o veículo é entregue na mesma noite para o receptador intermediário. Os veículos furtados são abandonados.
  9. Na hipótese do veículo encomendado não ser encontrado, o serviço é adiado para outra data, desde que a encomenda seja novamente confirmada. [7]

6. Horários, métodos de abordagem e roubo de documentos

Na grande maioria dos carros, os roubos são efetuados quando o veículo se encontra estacionado em via pública. Os dias favoritos são quinta e sexta-feira, de preferência no horário das 18h às 24h. Outro fator impressionante é que, quase sempre os documentos e demais pertences da vítima também são roubados, sendo grande parte destes itens vendidos pelo bando para estelionatários, fomentando este outro mercado e estendendo as “teias” do crime organizado. [8]

7. A figura do “puxador”

Nesta etapa, o veículo roubado é entregue ao receptador intermediário, ou para outra pessoa responsável pela retirada do veículo do Estado onde foi realizada a ação criminosa. Caso este intermediário resida no Rio Grande do Sul, a mercadoria ficará escondida para uma ulterior remoção. Caso contrário (como é na imensa maioria dos casos), o veículo já sairá do Estado na mesma noite dos fatos, conduzido por um habilidoso motorista, figura conhecida no meio como “puxador”, que é contratado pelo receptador intermediário. [9]

8. A saída do veículo do local do crime

Nesta etapa, o veículo poderá ser levado para um destino intermediário ou diretamente para o seu destino final, como veremos abaixo cada uma das situações: [10]

9. O destino intermediário

No caso específico desta modalidade, o carro roubado poderá será levado para outra cidade dentro do mesmo Estado (no caso específico, o Rio Grande do Sul), geralmente em cidades distantes ou periféricas, dentro da própria Região Metropolitana de Porto Alegre. A partir de então, receptadores locais irão armazenar  o veículo, executando revisões e vistorias no mesmo, realizando testes da condição do automóvel. Feito estes ajustes, o veículo poderá ser novamente conduzido por um puxador rumo ao seu destino final, ou por qualquer outra pessoa, geralmente escolhida por não despertar suspeitas (há quadrilhas que usam casais com mais de quarenta anos, e até mesmo crianças e idosos neste momento). [11]

Sendo o carro objeto de venda futura dentro do próprio país e em condições perfeitas (como em feiras de automóveis ou revendas), os criminosos produzem toda uma prova técnica no sentido de adulterar todas as numerações possíveis, com a troca das placas, e dos chassis, assim como algumas alterações nas características básicas do veículo. Este trabalho é geralmente realizado em oficinas mecânicas ou depósitos ocultos. [12]

Já na hipótese do carro ter como destino qualquer outra ação delituosa, os criminosos não fazem nada, apenas ocultam o veículo por um determinado tempo e depois abandonam em qualquer local ermo e longe de testemunhas. [13]

10. O destino final

Nesta situação, o veículo roubado sai rumo ao destino final na mesma noite do roubo, especialmente na madrugada, conduzido pelas mesmas figuras supramencionadas (puxadores ou pessoas que não despertem qualquer tipo de suspeita). Motoristas presos relatam que em média levam 4 horas para retirar o veículo do Rio Grande do Sul, e 8 horas para tirá-lo do país, conforme o caso. [14]

Com frequência, há o transporte internacional ou interestadual dos veículos subraídos, pois os destinos finais são geralmente lugares distantes do local onde foi praticada a ação, sendo uma forma efetiva de dificultar o trabalho investigativo da polícia. O fato é que o aumento de pena preconizada na forma do artigo 157, parágrafo 2º, inciso IV do Código Penal não inibe e tão pouco intimida a ação de quadrilhas. Nesta seara, o uso dos chips como modo de rastrear veículos parece ser uma solução adequada a este problema endêmico, [15] consoante veremos a seguir.

10.1 – O serviço de batedores

Muitas vezes são utilizados batedores no transporte de veículos roubados, sendo este um meio de segurança para a fuga. De modo geral, os batedores usam carros legalizados e sem qualquer irregularidade documental, guiando alguns quilômetros na frente com o intuito de verificar eventuais barreiras policiais e efetuando uma constante comunicação com o puxador que conduz o carro roubado atrás, alertando sobre todas as condições da rodovia, para uma fuga segura. Ainda, importante mencionar que neste tipo de procedimento (uso de batedores), é comum a realização de um comboio, transportando uma série de veículos roubados de uma só vez. [16]

10.2 – As rotas de fuga

Os depoimentos de criminosos presos e de policiais levaram a identificação das principais rotas de fuga de carros roubados a partir da cidade de Porto Alegre, a contar: [17]

  • Porto Alegre – Carazinho – Iraí – Maravilha (SC) – Foz do Iguaçu (PR) – Paraguai;
  • Porto Alegre – Passo Fundo – Erechim – Santa Catarina e Paraná (localidades não determinadas) – Epitácio Pessoa (SP) – Corumbá (MS) – Bolívia;
  • Porto Alegre – Pelotas – Santa Vitória do Palmar – Chuí – Uruguai;
  • Porto Alegre – Passo Fundo – Santa Ângelo – Santa Rosa – Porto Xavier – Argentina – Paraguai – Bolívia
  • Porto Alegre – Torres – SC e PR (via BR-101) – Centro e Norte do Brasil
  • Porto Alegre – Caxias do Sul – Vacaria – SC e PR (via BR-116) – Centro e Norte do Brasi

11. A entrega do veículo ao receptador final

Na última fase deste ciclo do roubo de carros, de maneira genérica o receptador final irá realizar a legalização do veículo para uma nova venda no mercado. Na maioria das vezes, assim como ocorre na maior parte do Brasil, o destino final dos carros roubados em solo gaúcho são a Bolívia e o Paraguai, utilizando principalmente como via de entrada as cidades de Puerto Iguazú e Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto Quijaro (Bolívia).[18]


[1] FERREIRA FILHO, Juvenal Marques. Investigação de crimes contra o patrimônio. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3120, 16 jan. 2012. Disponível em: <http://www.jus.com.br/revista/texto/20867>. Acesso em: 6 out. 2012.

[2] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.11.

[3] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.12.

[4] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.12.

[5] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.12.

[6] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.12.

[7] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.13.

[8] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.14.

[9] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.14.

[10] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.14.

[11] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.14.

[12] ESTADO DE SÃO PAULO, Assembléia Legislativa. Relatório Final da CPI do Crime Organizado. São Paulo. Publicado em 12 de março de 1999. – páginas: 14/19 Disponível em http://www.al.sp.gov.br/StaticFile/documentacao/cpi_crime_organizado_relatorio_final.htm Acesso em 11 out. 2012.

[13] ESTADO DE SÃO PAULO, Assembléia Legislativa. Relatório Final da CPI do Crime Organizado. São Paulo. Publicado em 12 de março de 1999. – páginas: 14/19 Disponível em http://www.al.sp.gov.br/StaticFile/documentacao/cpi_crime_organizado_relatorio_final.htm Acesso em 11 out. 2012.

[14] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.14.

 

[16] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.14.

[15] FERREIRA FILHO, Juvenal Marques. Investigação de crimes contra o patrimônio. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3120, 16 jan. 2012. Disponível em: <http://www.jus.com.br/revista/texto/20867>. Acesso em: 6 out. 2012.

[17] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.15.

[18] GUIMARÃES, Luiz Antônio Brenner. Furto e roubo de veículos: Um diagnóstico. Porto Alegre, associação para pesquisas policiais, 1998. n. 34, p.16.