Courtine, J. -J. ? (1981) "O Chapéu de Clémentis". Trad. Brás. de Rodrigues, M.R. In Os múltiplos territórios da Análise de Discurso. F. Indursky e M. C. Leandro Ferreira (orgs). Porto Alegre, Ed. Sagra Luzzatto, 1999.


O Chapéu de Clémentis como memória social


Thiago B. Soares


Jean-Jacques Courtine foi integrante do grupo de pesquisa liderado por Michel Pêcheux, junto ao CNRS (Centre Nationale de Recherches Scientifiques), na França, e autor de títulos fundantes na Análise do Discurso, dentre os quais se destaca o número histórico da revista Langages, n° 62, dedicado integralmente à análise do discurso político, que representa parte essencial na sua tese de doutorado. Atualmente, exerce funções docentes na Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, USA. Courtine em sua análise do discurso político nos deixa uma capital contribuição para a memória discursiva com o texto "O Chapéu de Clémentis".
O texto "O Chapéu de Clémentis", é um trabalho que demonstra aspectos de importante relevância da memória discursiva, de forma a relacionar o fator memória ao seu apagamento (mais especificamente no discurso político).
A estória, aludida no título e usada por Courtine é a do chapéu que Clémentis tira para dar ao comunista Klement Gottwald, no discurso para a multidão, em uma sacada do palácio de Praga. Fato que a propaganda da época reproduz, fortemente, em fotografias, em cartazes e entre outros meios de propagação de informação. Quatro anos mais tarde Clémentis é morto por acusação de traição, e ocorrido faz com que ele "desapareça" da sacada junto a Gottwald na imagens.
O apagamento de Clémentis é considerado por Courtine um processo de anulação histórica. A discussão se dá tendo em vista o processo de apagamento histórico com o distúrbio da ordem do discurso por esse processo, tendo em vista não o caráter formal e sim o possível conjunto de significações que a memória discursiva carrega.
Courtine ressalta que em AD não se visa à língua em sua forma escrita, mas o seu enunciável, como sendo as possíveis formas que um discurso pode assumir, ou seja, o enunciado. Entre outras questões é levantada esta: "O que é enunciar, manter um fio de um discurso, mas também repetir, lembrar, esquecer, para um sujeito enunciador tomado nas contradições históricas do campo político".
Atentamo-nos às questões levantadas, que estão intimamente ligadas à memória discursiva, de forma que sempre vamos repetir, lembrar e esquecer. Há essa grande necessidade de repetirmos o que foi dito, ou para ?manutenirmos?, melhor dizendo, repetir sem repetir com mesmas palavras, assim dando ao discurso continuidade, ou a algum pré-construido, existindo outras formas de usar o repetir (claro que em todos os casos o contexto é de capital importância). O repetir deve acompanhar o lembrar, porquanto nada adiantaria se a repetição não fosse lembrada e compartilhada pelo enunciador e por todos os recebedores (do discurso), formando assim uma base sustentável para o discurso. E esquecer como processo de interiorização do já dito, agora constituindo o interdiscurso. Como todo texto se constrói a partir de um já-dito, isto é, um texto retoma outro que ressoa em outro numa cadeia infinita, o sentido não está no texto, mas na relação que este mantém com quem o produz, com quem o lê, com outros textos (intertextualidade) e com outros discursos possíveis (interdiscursividade). Estas redes de sentido se caracterizam pela heterogeneidade.
Courtine aprofunda os estudos sobre a memória, concebida como uma categoria de memória que opera no interior de uma FD , em outras palavras, a noção de memória discursiva concerne à existência histórica do enunciado no âmago de práticas discursivas reguladas por aparelhos ideológicos. A memória discursiva pode ser compreendida como uma forma de repetição e, considerando-se que o discurso se articula a partir dos dois eixos, o horizontal e o vertical, também a memória se manifesta nestes dois níveis: no interdiscurso e no intradiscurso. Courtine chega a esta conclusão ao considerar as formulações de ?origem? que são repetidas nas diversas formas de manifestação do discurso citado (uma das formas possíveis através das quais o repetível se instaura). Esta repetição de 'memórias' pode se dar de duas maneiras, ambas decorrentes do trabalho da categoria de assujeitamento. Na primeira delas, a memória aparece como repetição de elementos em extensão, passíveis de serem reconhecidos quando consideramos um fragmento de discurso como determinado por um enunciado e aí tomando lugar. Neste caso o enunciado se repete, sem, no entanto, ser o mesmo, pois se realiza a partir de posições-sujeito e condições de produção diversas das que lhe deram 'origem'. Na segunda, há a repetição vertical, na qual se repete um não-sabido, não-reconhecido, deslocado e deslocando-se no enunciado: uma repetição quer é ao mesmo tempo ausente e presente na série de formulações.
Os fatores determinantes para que o que foi dia acima se dê, bem como para que memórias sejam silenciadas, são, principalmente, de ordem sócio-histórica. E compreendemos a política da mesma forma que Courtine apresenta em seu texto "O Chapéu de Clémentis": o sócio-histórico se produzindo na ordem do discurso, como manifestação das 'línguas de Estado', que dividem em pedaços a lembrança dos eventos históricos, preenchidos na memória coletiva de certos enunciados, dos quais elas organizam a recorrência, enquanto consagram a outros a anulação e a queda.

Então qual a relevância da língua (juntamente com a possível memória vinculada por ela) para uma sociedade? Parece que as possíveis respostas são incomensuráveis, mas devemos limitar-nos ao social em seu discurso mnemônico. Com um escopo aparentemente ?menor? as respostas mais latentes sobressaem. Uma poderia ser a de repassar informações pertinentes à ordem social, no entanto como se permaneceriam tais informações? Parafraseando Courtine, memória e esquecimento são indissociáveis em todas as produções discursivas sócio-históricas, assim sendo, mormente para a compreensão de fatos como o "Chapéu de Clémentis" que sempre deixaram seus resquícios em produções sócio-históricas.