O caso dos medicamentos anti-retrovirais: A polêmica do direito à saúde e suas conseqüências sócio-econômicas

Hibernon Marinho de Andrade Filho[1]

Sumário: 1 Introdução; 2 O Direito à saúde e o fenômeno da judicialização; 3 Anti-retrovirais e os possíveis impactos da judicialização; 4 Conclusão; Referências.

Resumo: O presente artigo analisa a nova política de acesso á saúde na ordem constitucional atual, onde se procura tornar efetiva os direitos e garantias do cidadão, por meio do recente fenômeno da judicialização, isto é, a crescente atuação do judiciário em questões predominantemente políticas. Foca-se em especial a política de distribuição dos medicamentos anti-retrovirais utilizados por aqueles que portam a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e o impacto para o orçamento pública na distribuição de tais medicamentos.

 

Palavras-chave: Acesso à saúde; Judicialização; Anti-retrovirais.

1 INTRODUÇÃO

A ordem constitucional de 1988 trouxe um anseio da sociedade brasileira em tornar as normas constitucionais efetivas e por conseqüência a verdadeira vivência por parte da população dos direitos e garantias nela postulados. O direito à saúde encontra-se positivado na referida carta em diversos artigos e em especial no art. 196, que preconiza: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação[2]. Pois bem, para melhor tornar tal preceito normativo em realidade é preciso a atuação dos três poderes em comunhão com a sociedade. Observa-se que em especial o Poder Judiciário vem se empenhando no sentido de realizá-lo.

O Poder Judiciário experimenta, pela primeira vez na história republicana e democrática brasileira, uma margem de liberdade e de atuação nunca antes vivenciada. O Supremo Tribunal Federal, verdadeiro guardião da Constituição e corte máxima, frequentemente é chamado a resolver e a dirimir conflitos dentro da atual ordem constitucional. O Judiciário atua nos mais diversos campos da sociedade, decidindo, às vezes de forma vinculante, decisões que advém das esferas sociais políticas. Este é o fenômeno da judicialização, mais especificamente judicialização da política, e no presente artigo judicialização da saúde, que será investigado no caso específico dos medicamentos anti-retrovirais.

2 O DIREITO À SAÚDE E O FENÔMENO DA JUDICIALIZAÇÃO

 

Não raro o Judiciário interfere na delicada questão do fornecimento de medicamentos à população. São comuns os julgados que de alguma maneira buscam mitigar o grave problema, que atinge cotidianamente milhares de brasileiros que procuram os serviços públicos de saúde. Nesse sentido explicita Barroso:

A intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações a Administração Publica para que forneça gratuitamente medicamentos em uma variedade de hipóteses, procura realizar a promessa constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde.[3]

Esse quadro de intervenção do Judiciário teve início na Constituição de 1988 e o fenômeno da judicialização torna-se cada vez mais comum, tirando das esferas do Executivo e do Legislativo a tarefa de efetivar a nova ordem constitucional e tal prática, sendo utilizada reiteradas vezes pelo Judiciário, traz óbvias conseqüências sociais e políticas. Conforme infere Barbosa:

Ocorre que, face ao princípio constitucional da tripartição dos poderes, compete aos Poderes Executivo e Legislativo determinar a alocação dos recursos oficiais para o cumprimento de programas e objetivos de governo anteriormente propostos aos cidadãos, uma vez que ambos poderes são fundamentados pela legitimidade popular. De fato, cabe ao Poder Público a formulação e a implementação de ações positivas no sentido de realizar seu programa de governo e, conseqüentemente, de conferir efetividade aos direitos e princípios constitucionais. Tem-se, portanto, que as denominadas “políticas públicas” constituem a forma típica de atuação do Executivo na consecução de seus objetivos.[4]

O judiciário assume um papel para o qual não foi originariamente concebido, assume um papel claramente militante e tenta tornar efetiva a política da saúde. É necessário também ponderar que a situação da saúde no Brasil encontra-se longe do ideal, conforme se pode observar nos vários casos que v~em a público de pessoas que necessitaram de atendimento médico-hospitalar e não o receberam, ou o receberam de maneira insuficiente. Logo, a população ainda não vivencia os ditames constitucionais referente a direitos e garantias, em especial as garantias relacionadas à saúde e ainda sofre com a ausência da realização das políticas públicas, conforme aduz Carlini:

O sistema público de saúde no Brasil não tem ainda a qualidade e a eficiência desejadas pela população. São inúmeros os casos reportados pela mídia, quase diariamente, noticiando mortes de crianças, adultos e idosos por falta de atendimento no modo ou no tempo adequados, quando não em ambos. (...)Além dos medicamentos caros, a população brasileira enfrenta ainda a dificuldade de acesso a novas tecnologias na área da saúde, normalmente muito restritas no serviço público embora fartamente encontradas nos serviços privados. Exames com uso de imagens, acesso a próteses e órteses de qualidade, tratamentos medicamentosos oferecidos apenas em hospitais e quase sempre com substâncias importadas, são possibilidades que não estão acessíveis aos usuários da rede pública de saúde, muito embora sejam frequentemente recomendados por médicos que atendem nessa mesma rede pública.[5]

O Judiciário interfere no intuito de minimizar o sofrimento daqueles que o procuram em busca de tratamento ou cura. É necessário, no entanto, tomar cuidados com excessos que podem afetar a vivência política da sociedade, bem como interferir na economia, produzindo verdadeiros “rombos” no orçamento público e acabando por esvaziar recursos de uma dada área para outra, que certamente também necessita de dinheiro público, a exemplo de empregar recursos aos portadores de AIDS/HIV em detrimento daqueles doentes de câncer, o que também não é desejado por aqueles responsáveis por organizar e implementar as políticas públicas de saúde.

3 ANTI-RETROVIRAIS E OS POSSÍVEIS IMPACTOS DA JUDICIALIZAÇÃO

Os medicamentos anti-retrovirais são aqueles destinados a combater a devastação causada pela Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), pandemia que teve início na década de 80 e que atualmente ainda aflige a população mundial. No Brasil tais medicamentos têm sua distribuição garantida pela lei 9.313/96 que prediz em seu Art. 1º: Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento[6]. Vê-se que os cidadãos que sofrem com tal doença possuem um tratamento privilegiado por lei e privilegiado nos tribunais, pois tal doença é incurável e sem tratamento leva rapidamente à morte. São comuns as decisões, a exemplo deste julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que enfatizam a distribuição gratuita de medicamentos anti-retrovirais, responsabilizando os diversos entes federativos para o seu fornecimento:

EMENTA

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. DIREITO FUNDAMENTAL PÚBLICO À SAÚDE. SOLIDARIEDADE DAS DIVERSAS ESFERAS DE GOVERNO.

1. Agravo de instrumento interposto contra decisão que deferiu o pedido de fornecimento integral do medicamento “maraviroc (celsentri), para tratamento do autor, por parte dos entes federados Estado do Ceará ,União e Município, sob pena de serem cominadas multas.

2. Em face de a saúde está disciplinada na Constituição Federal, como dever do Estado, não exclui os entes federativos de solidariamente atenderem nas demandas relativas à saúde pública, tanto sob o aspecto orçamentário-financeiro como administrativo.

3. Necessitando o autor da medicação pleiteada por ser portador de HIV e encontrar-se resistente a todas as classes anti-retrovirais, conforme atestado médico acostado aos autos, é de se manter o despacho exarado em todo o seu teor.

4. Agravo não provido.

Diante do exposto percebe-se que mesmo em sede de recurso, os pacientes conseguem ter seus direitos garantidos, em regime de solidariedade entre as esferas federais, estaduais e municipais. Quando tais questões relativas a medicamentos chegam ao Supremo Tribunal Federal o entendimento não é diferente: “Constatou-se, no entanto, que a jurisprudência do Supremo sobre este tema – composta por 11 acórdãos e 37 decisões monocráticas - é unânime em conceder os medicamentos pleiteados (na medida em que mantém as decisões de 2ª instância que decidiram neste sentido)”[7].  No entanto tais decisões geram desconcertantes impactos nas finanças públicas uma vez que os julgados do Judiciário não vêm atrelados a estudos de impactos econômicos, o que pode levar a uma onerosidade dos cofres públicos e seu consequente esgotamento:

A tendência de aumento da proporção do PIB e das despesas federais com saúde destinadas à aquisição de anti-retrovirais demonstra que a sustentabilidade da política de acesso aos medicamentos será garantida apenas se o país crescer a uma taxa anual de 6% ao longo dos próximos três anos, cenário que se mostra pouco provável. Ou então, se houver redirecionamento de parcelas do orçamento destinado a outras ações em saúde e de controle da Aids; e/ou, ainda, se houver vontade política no sentido de promover o fortalecimento da indústria nacional de genéricos com o propósito de lograr reduções nos preços dos medicamentos.[8]

Com o passar do tempo, caso o Judiciário continue resolvendo questões que não envolvam apenas saúde, mas o emprego de dinheiro público e onde este deva ser empregado, as finanças do Estado brasileiro podem não suportar tal demanda e deflagrar uma crise profunda no setor já debilitado da saúde pública. É interessante salientar que o Poder Público já questiona em resposta às ações sobre possíveis impactos econômicos que podem vir a prejudicar os cidadãos que necessitem dos serviços de saúde pública: São muitas as decisões que relevam questões processuais suscitadas pelo Poder Público, bem como argumentos relacionados à dotação orçamentária, licitação, prejuízo de caráter econômico para o erário público frente ao direito pleiteado pelo cidadão.[9]

4 CONCLUSÃO

O anseio do judiciário em tornar efetiva a Constituição (movimento de efetividade constitucional) é recente e traduz o desejo do referido poder em satisfazer as demandas em relação à saúde dos cidadãos brasileiros. No entanto é preciso observar que o fornecimento de medicamentos sem estudos orçamentários ou desatrelados dos mesmos pode comprometer os cofres públicos e agravar a já grave situação da saúde no Brasil. Magistrados e tribunais devem aplicar com parcimônia o poder de judicializar decisões que advém de cunho político ou de origem econômica.

É preciso que os poderes responsáveis pela administração de orçamentos públicos voltados pela saúde realmente cumpram os ditames constitucionais para que não seja necessária a ingerência do Judiciário. Por ora os remédios destinados aos portadores de AIDS/HIV continuam chegando às mãos daqueles que necessitam, mas é preciso o cuidado e tentar manter o equilíbrio entre judicialização e seu excesso.

Referências

 

BARROSO. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para atuação judicial. IN: PARKER, Richard (org., et all). Aprimorando o debate: respostas sociais frente à AIDS : anais do seminário Conquistas e desafios na assistência ao HIV/AIDS. Rio de Janeiro : ABIA, 2002.

BARBOSA, Mariana Gracioso. O Supremo Tribunal Federal e a política de fornecimento de medicamentos para tratamento AIDS/HIV. Revista Jurídica.

________, Mariana Gracioso. O Supremo Tribunal Federal e a política de fornecimento de medicamentos para tratamento AIDS/HIV. São Paulo: SBDP, 2005. 64 p. Monografia (Pós-graduação) do Programa de Escola de Formação. São Paulo: Sociedade Brasileira de Direito Público 2005.p.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 16. Mai. 2011.

______. Lei 9.313 de 13 de novembro de 1996. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores de HIV e doentes de AIDS. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9313.htm. Acesso em: 11.mai.2011.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. O Remédio via Justiça: Um estudo sobre o acesso a novos medicamentos e exames em HIV/aids no Brasil por meio de ações judiciais / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST e Aids. Brasília: Ministério da Saúde. 2005.

CARLINI, Angélica Luciá. A judicialização da saúde no Brasil e a participação política na construção de orçamentos. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3201.pdf. Acesso em: 12.mai.2011.

GRANJEIRO, Alexandre (ET all). Sustentabilidade da política de acesso a medicamentos anti-retrovirais no Brasil. Revista de Saúde Pública. N. 40(Supl):60-9, 2006.



[1] Aluno do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 16. Mai. 2011.

[3] BARROSO. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para atuação judicial. IN: PARKER, Richard (org., et all). Aprimorando o debate: respostas sociais frente à AIDS : anais do seminário Conquistas e desafios na assistência ao HIV/AIDS. Rio de Janeiro : ABIA, 2002. p. 2.

[4] BARBOSA, Mariana Gracioso. O Supremo Tribunal Federal e a política de fornecimento de medicamentos para tratamento AIDS/HIV. São Paulo: SBDP, 2005. 64 p. Monografia (Pós-graduação) do Programa de Escola de Formação. São Paulo: Sociedade Brasileira de Direito Público 2005.p. 3-4

[5] CARLINI, Angélica Luciá. A judicialização da saúde no Brasil e a participação política na construção de orçamentos. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3201.pdf. Acesso em: 12.mai.2011. p. 5

[6] BRASIL. Lei 9.313 de 13 de novembro de 1996. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores de HIV e doentes de AIDS. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9313.htm. Acesso em: 11.mai.2011.

[7] BARBOSA, Mariana Gracioso. O Supremo Tribunal Federal e a política de fornecimento de medicamentos para tratamento AIDS/HIV. Revista Jurídica. p. 5.

[8] GRANJEIRO, Alexandre (ET all). Sustentabilidade da política de acesso a medicamentos anti-retrovirais no Brasil. Revista de Saúde Pública. N. 40(Supl):60-9, 2006. p. 9

[9] BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. O Remédio via Justiça: Um estudo sobre o acesso a novos medicamentos e exames em HIV/aids no Brasil por meio de ações judiciais / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST e Aids. Brasília: Ministério da Saúde. 2005. p. 105