Estava ela muito bem acompanhada, amigos e afins, celebrando a união dos nubentes apaixonados após a cerimônia emocionada. Ocorrera em uma igreja tradicionalmente barroca, um patrimônio histórico da humanidade delicadamente decorada com copos-de-leite e carinhos-de-mãe, realçando a beleza branca da noiva feliz e cheia de sonhos. A pregação não se demorou. O Padre, inspirado, recitara uma poesia inocente aos noivos. Todos os convidados choraram. E agora, ali, naquele imenso salão, era o momento dos festejos comemorativos e de sorrisos gratuitos.

 

A banda. A banda. A banda tocava músicas dançantes e convidativas. A banda era repleta de alegria. Dançar? Não. Ainda não. Na verdade a sua verdadeira atenção estava em estada permanente na mesa de guloseimas. Jesus, Maria e José! Cada coisinha gostosinha! Que belezura tentadora! O diabo em pessoa. Ali, o próprio demônio tentava corromper a sua consciência em afronta a dieta que já estava no terceiro dia sem qualquer deslize. Terceiro dia... Para que começar tudo do zero, se ela já estava no terceiro dia? Lembrava do bilhetinho motivacional que deixou grudado no espelho: “Há 3 dias sem acidentes. Hoje você começa a parecer uma sereia.” Ela alimentava aquela plaquinha acrescentando os dias a medida em que se passavam, sempre que conseguia cumprir o seu penoso e magro cardápio. Uma fábrica sem acidentes era ela.

 

E o jantar limitou-se a 2 colheres de arroz branco, com salada. Não comeu das carnes, pois não havia grelhados. Beliscou 2 camarões ao catupiry, mesmo sabendo que era pecado. E vários copos de água e refrigerante light. Estava indo bem. Pensava ela: “O amanhã chega logo e já me vejo magra”. E a música não parava e alimentava os seus pensamentos de tortura pessoal.

 

Momento do bolo. Afinal, imagino eu e confesso ao leitor, por que será que ela não foi embora? Não. Não foi embora. Quis manter-se ali, entretida pela disputa entre a gula e a vaidade. Qual desses pecados seria o mais forte? Qual deles venceria aquela batalha sem fim? Ela estava firme e forte, certa de que a sua vaidade estava bem alimentada. Vieram os garçons e ela, de cara fechada e mal humorada, tentava disfarçar e recusava as fatias de bolo, doces e salgados que constante e repetidamente se apresentavam diante de seus olhos. “Miseráveis!”, xingava intimamente cada um daqueles pobres serviçais que apenas queriam agradar através do paladar. Afinal, era uma festa. Para ela, eles apenas queriam boicotar o seu sonho de se tornar magérrima e, por isso, invejada.

 

E, mantendo a classe, balançava negativamente a cabeça, já imaginando quantas calorias havia perdido nesse movimento. Os próprios amigos da mesa, que riam e se divertiam, para ela, estavam caçoando de seu amargo sofrimento. Tirou um chicleteinho sem açúcar da bolsa. Respirou aliviada e mascava como se estivesse mastigando a fome que lhe matava. “Fome dá e passa. O amanhã chega logo. O tempo passa rápido”. Pensava ela, enquanto enchia de munição o seu armamento anti-calórico que se montava em um lado do seu cérebro apontando para o lado oposto: o inimigo. “Já estou emagrecendo, já estou emagrecendo”, tentou alguma espécie de motivação nessa afirmativa.

 

Final da festa. A noiva joga o buquê. Ela não tem ânimo para tentar pegá-lo. Apenas se encaminha curva e com um vazio no estômago, saindo à francesa à procura de um taxi. Vai para casa, se culpando por ter beliscado os tais dos dois camarões. Aquela culpa vai tomando conta de todo o seu ser, de toda a sua alma. Aaaiii! Aqueles camarões puseram fim a minha dieta. Agora o amanhã demorará mais a chegar. Esses eram apenas alguns dos pensamentos que se amontoavam e começavam a formar um furacão indomável e devastador. Durante todo o trajeto o seu semblante foi cedendo e se rendendo ao seu humor tétrico. Estava morta de raiva. A gula era o seu calcanhar de Aquiles, ela concluiu, aceitando o fracasso.

 

Ao chegar em casa, gritou com o taxista. Falou que ele estava cobrando além do preço normal. O pobre homem, amedrontado, diminuiu o valor da corrida em 10%. Ela não aceitou a cortesia. Jogou a nota inteira no banco da frente e disparou um ríspido e soberbo: fique com o troco. Saiu em disparada e desesperada. A chave não entrava na porta. Tentou as outras do chaveiro. Não houve sucesso. Voltou à primeira. Finalmente, essa porcaria, francamente, que absurdo... Entra no apartamento. Bate a porta. Tira as sandálias que a estavam matando.  Dirige-se diretamente à cozinha. A dieta foi pelo ralo. Aqueles camarões desgraçados.

 

Pegou uma escada na dispensa. Subiu até o todo do armário. Pegou uma chave. Foi até o quarto. Abriu o baú... Chocolates, balas, confeites... Brinquedinhos divertidos trancados à chave. Um mundo maravilhoso! Primeiro um sonho de valsa. E o barulhinho do papel desenrolando... aaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiiii que sonho! Que valsa! E ela deliciou-se lentamente, com olhos bem fechados para não deixar de saborear qualquer doçura daquele sabor. Quando finalmente o bombom fazia parte do seu corpo por inteiro, abriu os olhos e, agora com uma voracidade psicótica, foi abrindo mais um bombom, e, já sem a contemplação lenta e detalhada de sabores anterior, a qual deu lugar a uma gulodice incontrolável, abriu mais um e mais um, e se lambuzou, e deliciou-se, e estava feliz pensando nos doces que perdera na festa, e no bem casado que deixou de trazer para casa... Mas não importava mais... Lambia os dedos. Agora ela estava feliz e, noite adentro, pôde ouvir o som de pássaros cantarolando e brincando, crianças sorrindo, anjos cantando... Ela mesma cantava algo como “pirulito que bate-bate”, enquanto lembrava-se da doçura de sua infância e das palavras de amor que sempre ouvia da sua mãe.

 

Findo aquele momento de doçura descontrolada, ela olhou desconfiada para a caixa secreta agora repleta de papeizinhos desenrolados. Ainda restavam alguns dos brinquedinhos mágicos, algo como a esperança que se manteve ao fundo da caixa de Pandora. Trancou-a, guardou no fundo do armário. Voltou à cozinha e, meio desengonçada, subiu a escadinha para esconder de si mesma aquela chave. Ao encontrar o local adequado, já ia descendo como que escondida dos ares do local, tropeçou e resvalou o pé, machucando o tornozelo, o que ocasionou uma dor aguda quase semelhante a que nascia naquele momento em sua consciência, que pesava como pesava a irritante balança, deixando, pela septuagésima quarta vez dieta antes de completar cinco dias.

 

Dirigiu-se mancando ao quarto. Já que estava naquele estado, já que a dieta havia ido por água abaixo, ela aproveitou para abrir a geladeira, que estava no caminho como uma pedra. Foi então que comeu uma fatia gelada de pizza sabor marguerita, uma fatia de presunto, mais uma de queijo, ingeriu todo o restante de biscoitos recheados recusados pelas crianças só para não estragar, mamou na lata de leite condensado inebriada em um prazer infinito até ouvir o barulhinho do oco da lata esgotada, por fim. Tudo com a porta de geladeira aberta, diante da qual se mantinha de pé, pois era só mais um beliscãozinho rápido.

 

Maldito casamento: estragou a minha dieta. Foi dormir com um leve sorriso que sobrepujava as dores do tornozelo e do dever não cumprido deixando mais uma vez para mais longe o alcance do seu principal objetivo. Amanhã seria um novo dia. Não tomaria café e o almoço seria limitado. Também não jantaria: só uma frutinha. Nada melhor de que um recomeço depois de um tropeço. Desmantelo só serve se for grande. Dormiu. Teve sonhos bons e maus. Acordaria, de ressaca, no dia seguinte, lembrando aos pouquinhos de cada uma de suas atitudes animalescas que tomara por um instinto primitivo que a consumira. Sentiria culpa. Mas era persistente. Um dia seria magra, por isso, invejada.