O Carteiro e O Poeta: À procura da Literatura

 

Rafael Menezes da Silva[1]

 

O debate sobre teorizar a literatura é antigo, e vem se arrastando durante os anos, sempre buscando a verdadeira face da literatura. Nunca saberíamos, muito menos pensaríamos nisso se não tivéssemos “criado” uma teoria da literatura, propriamente dita. A busca da identidade, das características, da proximidade com os leitores, tudo que compete estudarmos com relação à literatura e que não é pensada.

A Modernidade foi responsável pelo grande avanço da produção literária mundial, numa época em que o tradicional era valorizado e consequentemente seguido. A Semana de Arte Moderna foi a explosão da literatura, provocando em toda a sociedade um grande avanço. Essa nova geração de poetas e artistas será muito diferente da anterior, tamanha as mudanças provocadas nesse período.

...modernidade é mais ou menos beleza, (essa coisa inútil que esperamos ser valorizada pela civilização), limpeza (a sujeira de qualquer espécie parece-nos incompatível com a civilização) e ordem (é uma espécie de compulsão à repetição que, quando um regulamento foi definitivamente estabelecido, decide quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão).(...) (BAUMAN,  1998. pp.7 e 8)

Com as bases do modernismo lançadas e num ambiente muito bem solidificado, em que a produção literária tinha outra forma e estética, surge o Pós-Modernismo ou Supermodernismo, como coloca Georges Balandier, há muitos anos, descrevendo o que estamos vivendo hoje.         

Como podemos observar na citação acima, há uma divisão de opiniões no que diz respeito ao que estamos vivenciando, se uma evolução da Modernidade, ou estamos vivendo o que é fruto de uma ruptura e aquisição de uma nova forma de produzir arte literária. Bauman, ao citar as vanguardas, diz que elas trouxeram conseqüências pós-modernas e, ainda salienta que foram inevitáveis. Isso demonstra que assim como o homem caminha sempre para um processo evolutivo, e o que o cerca, o serve também. Podemos afirmar diante do que presenciamos que a Pós-Modernidade, ou Supermodernidade.

A multiplicidade de estilos e gêneros já não é uma projeção da seta do tempo sobre o espaço da coabitação. Os estilos não se dividem em progressista e retrógrado, de aspecto avançado e antiquado. As novas invenções artísticas não se destinam a afugentar as existentes e tomar-lhes o lugar, mas se juntar às outras, procurando algum espaço para se mover por elas próprias no palco artístico notoriamente superlotado. (BAUMAN, 1998. p. 127)

A pós-modernidade agrega ao que já temos como moderno a união de diversas artes, numa relação amigável e justaposta servindo uma a outra a fim de alcançar um mesmo objetivo, ser entendida. Une-se a arte gráfica, a música e a poesia. O resultado é totalmente inovador, causando assim como tudo que é novo e diferente, certa estranheza. Comprovando aos tradicionalistas que a arte tem multifaces.

Bauman, ao tratar dos precursores da pós-modernidade, denomina-os de estranhos, justamente pela reação da sociedade diante de uma inovação. Esses estranhos estão presentes em qualquer sociedade. Deles ele afirma que:

Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em três; se eles, portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita para a ação, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo que fazem atraente o fruto proibido; se, em outras palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira       que devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso geram a incerteza, que por sua  vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada sociedade produz esses estranhos. (BAUMAN, 1998. p. 27)

O Carteiro e O Poeta é uma obra que busca responder estes tipos de questionamentos, de uma maneira sutil e bem simples:

“O carteiro e o poeta” é uma obra sobre poesias, tanto aquelas escritas quanto as vivenciadas, em uma descarada homenagem à poética por vezes escondida no cotidiano, que lateja apenas aos olhares mais sensíveis. A linguagem é bastante característica, no melhor estilo dos escritores latino-americanos e, neste livro, notadamente intensa, com um humor sutil, muita ironia, bem como um erotismo marcante e saboroso. As metáforas são muito mais que meros detalhes neste mundo que mescla ficção e realidade, criado por Skármeta, alcançando a posição de protagonistas, peças fundamentais neste enredo – quem lê “O carteiro e o poeta” dá um novo significado às metáforas. (In: www.lerdeviaserproibido.com.br)

O que o livro busca responder, a pós-modernidade tenta, mas, infelizmente, não tem êxito. As produções artísticas e o acesso à elas tornou-se tão mais fácil com a modernidade, que hoje, pós-modernidade é tudo que é criado após o modernismo, desde lá não possuímos um outro movimento literário.

O livro de Esteban Antonio Skármeta Branicic[2] retrata a história de Mario Jiménez, que vive em uma ilha no Chile, composta de, sua maioria, pescadores. Pessoas que vivem em nível de miséria. Vive-se em pleno regime militar. Pinochet, o grande ditador chileno, equiparado com Médici, exila vários artistas que não são a favor da ditadura, dentre eles está Pablo Neruda, que, comunista, vai para o exílio na ilha em que mora Mario Jiménez, e a trama inicia-se a partir deste momento.          Mario Jiménez está à procura de emprego e encontra na rua um anúncio que diz: Precisa-se de carteiro com bicicleta. Logo, ele descobre que é para ser o carteiro de Pablo Neruda, o poeta. A partir desse momento, o carteiro, um dos únicos que sabia ler naquela ilha, encanta-se com o poeta, o qual é conhecido como “o poeta das mulheres”, por conta do seu vasto público leitor feminino. Esse encantamento ocorre pela vontade de Mario Jiménez em querer se aproximar das mulheres e conhecer mais sobre as palavras.

              A relação entre o carteiro e o poeta começa a se estreitar, quando Mario se apaixona por Beatriz Gonzales, moça bonita, sobrinha do dono da taverna. Mario começa a freqüentar a casa de Neruda não só para fazer o seu trabalho, entregar as correspondências, mas também para observar e conversar com o poeta. O carteiro pede ajuda ao poeta para conquistar o amor de Beatriz Gonzales, através das palavras.

              Mario Jiménez já escreve para Beatriz Gonzales poemas de Pablo Neruda, com a intenção de conquistá-la, mas ele queria mesmo era conquistar a moça do “sorriso que pareciam borboletas voando” com as suas palavras. Neruda começa a teorizar a palavra para Mario, mostrando-o através de exemplos simples, as metáforas. Para o carteiro, no começo tudo soa muito engraçado, mas logo começa a usufruir do conhecimento de Neruda, e o mesmo o faz encantar-se com o mundo da literatura.

              A poesia para Mario não serve apenas como um instrumento para conquistar o amor da sua amada, a arte traz para ele uma nova visão do mundo. O carteiro começa a observar os acontecimentos ao seu redor com outros olhos. Pois o seu companheiro Neruda, por ser comunista e poeta, faz o carteiro, também pensar e olhar que, a sua ilha sofre quase o mesmo regime em que o Chile passava, e o comunismo está retratado muito bem, com relação à poesia como arma de libertação, tanto na linguagem, quanto na mentalidade, a alusão é feita a partir daí, com palavras, conseguimos liberdade.       

“A teoria produz argumentos análogos a esse, quer mantendo que arranjos ou instituições sociais aparentemente naturais, e também os hábitos de pensamento de uma sociedade, são os produtos de relações econômicas subjacentes e lutas de poder correntes...” (Culler, 1999: 23)

              A literatura é responsável por trazer a realidade para o leitor. Raciocínio crítico, subjetividade e originalidade, são outras características trazidas pela mesma. Uma das propriedades da literatura é a universalidade, dando ao leitor possibilidades diversas de adaptação da sua linguagem.

              Sabendo-se então que a literatura é arte, e que através dos seus escritos podemos enxergar a sociedade humana, em sua história, pode-se teorizá-la como interdisciplinar, pois existe essa forma livre de análise (a)temporal.

              Percebemos essa característica no filme quando Mario é convidado por Neruda a observar a realidade ao seu redor, e descobrir que a poesia está em tudo que ele pode observar. O carteiro caminha pela costa da ilha, ouvindo o barulho do mar, observando os sons e detalhes da natureza ao seu redor. Concluindo que poesia está em tudo na vida.

              Analisando a característica de que a literatura é que ela possui teoria, e pensando em outro ponto em que a literatura é um tipo de arte, e a arte não possui limitação, poderíamos pensar que, a teoria da literatura serve, apenas, para transformar a literatura em uma ciência, mas não é essa a proposta da mesma.

“A teoria faz você desejar o domínio: você espera que a leitura teórica lhe dê os conceitos para organizar e entender os fenômenos que o preocupam. Mas a teoria torna o domínio impossível, não apenas porque há sempre mais para saber, mas mais especificamente e mais dolorosamente, porque a teoria é ela própria o questionamento dos resultados presumidos e dos pressupostos sobre os quais eles se baseiam.” (Culler, 1999:24)

              Não podemos e não conseguimos dominar a literatura, ela é por si só, subjetiva, sempre aprendemos algo mais sobre ela, portanto não podemos transformá-la em ciência. Ela é analítica e especulativa pelo fato de ela poder ter variadas interpretações. Cada leitor tem uma visão de mundo, um conhecimento de mundo, então cada um vai possuir uma visão crítica ou não de todo e qualquer gênero literário. Mesmo que Neruda, no filme, tentasse teorizar a literatura para Mario, ele não conseguiu fechar a ideia de Mario, ou seja, ele jamais entendeu de verdade o que vem a ser a literatura. Culler (1999) diz que “a teoria é reflexiva, é reflexão sobre reflexão, investigação das categorias que utilizamos ao fazer sentido das coisas, na literatura e em outras práticas discursivas.”

              Segundo Culler (1999) “a teoria é uma crítica do senso comum, de conceitos considerados como naturais.”. Percebemos muito bem isso no filme, em que, possuímos figuras estereotipadas, como a tia de Beatriz Gonzales, que só pensa em dinheiro, o político corrupto, o trabalhador, que é o Mario, e cada um desses possuem características aliadas ao senso comum, este que faz com que a literatura também ganhe força, em todos os âmbitos, pois ela vai ao contrário do que se pensa enquanto sociedade.

              O senso comum aparece também, quando a tia e o padre pensam que a poesia que Mario escreveu para Beatriz Gonzales era “safadeza”, hoje, a pessoas não pensam na literatura como algo subjetivo, e sim, objetivam a língua, transformando-a em ciência, que é o que os leitores mal informados fazem a leitura e pensam desta maneira, eles são intimidados pela literatura, pois como a linguagem é mais trabalhada, estes tipos de pessoas, não conseguem entender o que ela quer passar.

“Consequentemente, a teoria é intimidadora. Um dos traços mais desanimadores da teoria hoje é que ela é infinita. Não é algo que você poderia algum dia dominar, nem um grupo específico de textos que poderia aprender de modo a “saber teoria.”. (Culler, 1999: 23)

              Portanto, percebe-se a ligação extrema entre a literatura e a visão de mundo que é construída através dela, por quem a faz e por quem a lê. Mostrando a arte não só como objeto artístico a ser apreciado e comprado, e sim como ferramenta social. No livro, Mario, o carteiro, contempla-se da arte de uma maneira geral, o que o torna uma pessoa mais crítica, experiente e protagonista do seu tempo.

REFERÊNCIAS 

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 7. ed., rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BRANICIC, Esteban Antonio Skármeta. O Carteiro e O Poeta. São Paulo: Editora Record, 1985.

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: UFMG, 2009.

CULLER, J. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca Produções Culturais Ltda, 1999.

O CARTEIRO e O Poeta. Itália, 1994. 109 min.


 [1] Graduado em Letras-Português pela Universidade Tiradentes no ano 2009/2, pós-graduado em Literaturas brasileira e portuguesa pela Faculdade Pio X, professor de Língua Inglesa na Wizard,  de Língua Portuguesa, Literatura, Redação no Expocurso Curso e Colégio e no Colégio São Lucas.