O CAPINAR A RESPEITO DE UM FILÓSOFO


Carta de um morador de uma cidadezinha, para um filósofo.

Caro filósofo,


As pessoas andam dizendo por aí que o ‘senhor’ não tem tido uma boa conduta diante da sociedade, diz coisas estranhas demais! Seus apontamentos, suas críticas e reflexões são vistas como um afronta as tradições.
Você não devia ter dito aquelas coisas sobre a criação do mundo. O padre ficou sabendo. Esqueça das idéias de Kurt Baier e lembre-se do final da vida de Leão Tolstoy. A vida faz sentido sim!
Sua relação com os homens é demasiada esquisita. Por aqui, nós não nos damos o desprazer de conversarmos com pessoas pouco abastadas, ainda mais com um mendigo. Inclusive, você ficou ‘horas’, dando atenção a ele. O pessoal da rua não gostou.
Outro dia no bar ouvi você falar sobre Thomas Hobbes, ora, o homem não é tão mau assim! Você disse a um senhor que somos individualistas, egoístas e, que sem lei, somos piores que os animais irracionais. As pessoas ali presentes ficaram assustadas.
Disse que o imperativo categórico kantiano ajuda-nos a pensar melhor o homem em sociedade. Você não sabe nada sobre isso. Vive isolado, lendo livros e esquecendo-se de ler pessoas. Onde já se viu, dizer as crianças do bairro que cachorros e cavalos têm mais noção ética do que nós humanos? Ah! Os pais dos guris não apreciaram tal afirmação: ‘somos incomparáveis!’ disseram eles.
Muitos moradores andam procurando livros estranhos depois de sua chegada. Dizendo coisas sobre Nietzsche, Shopenhauer, Descartes, Sexto Empírico, até Dostoiévski! Onde já se viu? Isso não vai acabar bem…
Outro dia na praça, ouvi você dizendo a outra pessoa que era agnóstico. Nunca ouvi falar sobre esse nome. Falei ao padre da cidade e ele disse-me que na verdade você é um ateu.
Os ateus são perigosos disse ele, e até podem levar nossas almas para o inferno se continuarmos a nos comunicar com eles. Então, resolvi perguntar a ele se sua fé algum dia havia falhado, ele abaixou a cabeça e não me disse mais nada. Lembrei de você e rapidamente me ‘benzi’. Que o diabo o carregue! Que filosofia esta? Dizer aos vizinhos que o homem tem que aprender a fazer da ‘queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro’. Fernando Sabino? Nunca ouvi falar. Deve ser outro louco também.
Você deve tomar mais cuidado. As pessoas precisam ouvir mentiras. Nem todas as pessoas têm um bom espelho em casa. Esse danado vive nos iludindo. Filósofo tem espelho?
Iria apenas enviar pelo correio esta carta, mas, resolvi ler em sua frente. Eu queria saber sua resposta pessoalmente. Até agora não me interrompeu nem uma vez. Dizem que as pessoas cultas são assim, sabem ouvir.
Sou um homem educado em uma cidade pequena e nada sei de filosofia. Precisava fazer este ‘serviço’ a população. O que tens a dizer sobre sua defesa? Espero muito de sua resposta!
Filósofo: Prezado morador, enobrece-me saber que as pessoas têm procurado pensar coisas diferentes. Quanto ao espelho, esqueça-o.
Saí de sua presença decepcionado. O que seriam essas coisas diferentes? Como iria me pentear de agora em diante? Como meus filhos vestiriam suas roupas da moda? O que dizer aos moradores?
Fui andando cabisbaixo pela rua e sentei-me ao banco da praça. Havia um papel rasgado em cima do banco. Peguei-o e comecei a ler: aula de filosofia com ênfase em Vincent Van Gogh. “Para pessoas incomuns, são necessários remédios incomuns, e imagino que eles serão encontrados em lugares onde as pessoas comuns nem sequer pensariam em procurar”. (Bonger, Jo Van Gogh. Biografia de Vincent V. Gogh. Coleção L&PM Pocket, Vol. 347. Trad. William Lagos, Porto alegre, RS, 2004, p.93) nossa! Será que eu sou comum ou incomum?
E foi assim que somente depois de muito tempo consegui entender a profundidade daquela resposta que ele havia me dado. Ao menos eu tentei entender… quando disse aos ‘sábios’ moradores o que ele havia me dito, nunca mais falaram comigo… “Nosce te ipsum” (lê-te a ti mesmo), disse a eles, se forem capazes!
Afinal, como já dizia Sir, William Shakespeare; realmente, demora-se muito tempo para nos tornarmos a pessoa que gostaríamos de ser. Isto, quando conseguimos. É bom aprendermos o mais rápido possível tal lição. Eu ainda estou aprendendo. O filósofo? Nunca mais o vi, nunca mais o esqueci.