1 Introdução

            O objetivo deste trabalho é conhecer a importância que membros de uma mesma família de diferentes gerações delegam ao brincar no seu processo de formação ao mesmo tempo em que provoca a reflexão acerca do tema aprender e brincar. Há contradição entre os conceitos? O brincar esteve presente em seus processos educacionais? Ele possibilitou de maneira eficaz a aprendizagem? Que tipo de aprendizagem ela possibilitou? Estas são algumas questões que levaram à presente pesquisa.

            O motivo de realizá-la foi, por sua vez, baseado na exigência cada vez maior pela necessidade de se desenvolver um sujeito com características diferentes das que se pretendia no formato atual, inalterado em sua essência desde a sua criação. O sujeito que se pretende deve ser mais flexível, autônomo e com grande capacidade inovadora. A criatividade é a grande moda de nossa sociedade. Como está se dando a formação dos sujeitos desta sociedade? A educação formal tem acompanhado as demais mudanças sociais? São questões que foram levantadas tanto na revisão bibliográfica, quanto nas falas dos sujeitos entrevistados.

            A educação e o brincar serão os conceitos abordados e ambos representam ações humanas. E como todo objeto de estudo das ciências humanas, é impossível desvincular sua compreensão de outra compreensão primordial, ao de tipo humano e de como ele se constitui enquanto tal. Este homem do qual se fala é fruto unicamente de herança genética ou ele possui condicionantes externos que se não existirem não lhe será possível alcançar a totalidade do humano?

            Na concepção adotada neste texto, não existe uma essência eterna e universal do homem. Ele é construído ao longo de sua vida a partir de sua intervenção no meio e da relação com os outros homens. Constrói sua existência a partir de ações sobre a realidade com o objetivo de satisfazer suas necessidades. A ação e as próprias necessidades possuem certa característica fundamental, são sociais e produzidas historicamente em sociedade. Assim, suas necessidades básicas não são apenas biológicas, ao surgirem, são imediatamente socializadas. Numa relação dialética na qual a transformação da natureza desencadeia a transformação do próprio homem.

 2 Aprendizagem e Desenvolvimento humano

             Estes dois conceitos serão trabalhados conjuntamente, uma vez que se o segundo não ocorre sem o primeiro, principalmente quando se fala da construção de um ser biológico com grandes probabilidades de se tornar “gente” para, enfim, se tornar, de fato, “gente”. As condições do desenvolver-se remetem ao aprender ser humano em meio a outros humanos, em determinada época e local, logo, cultura e sociedade.

            O desenvolvimento humano, em si, se refere ao desenvolvimento mental (construção contínua, se caracterizando pelo aparecimento gradativo de estruturas mentais) e ao crescimento orgânico. Uma pessoa pode ser considerada plenamente desenvolvida quando estas estruturas mentais e esse organismo caracterizarem um estado de equilíbrio superior quanto aos aspectos da inteligência, vida afetiva e relações sociais.

            O reconhecimento de que este humano passa por um período de maturação, de desenvolvimento traz uma importante consideração: a pessoa, não importando em que idade ou “nível” de maturação esteja, é completa (não um projeto de humano), apresentando características próprias da sua idade. Ela assimila progressivamente o meio ambiente, enquanto vive no mundo e com o outro, o que implica uma acomodação das estruturas mentais pré-existentes a cada novo dado que recebe do mundo exterior. As ações são transformadas, constituindo um plano interno de funcionamento. No plano das interações, o sujeito faz sua uma ação que inicialmente possui um significado partilhado.

2.1 Aprendizagem

O homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a natureza com sua atividade e seus instrumentos. [...] A mudança individual tem sua raiz nas condições sociais de vida. Assim, não é a consciência do homem que determina as formas de vida, mas é a vida que se tem que determina a consciência.

            Reconhecido que a aprendizagem se dá de maneira diferentes em organismos com maturidades orgânicas diferentes e que esse constituir-se, aprendendo, depende tanto de um aparato orgânico adequado, bem como de adequado estímulo ambiental, uma interação adequada com o outro, podemos nos direcionar para os conceitos centrais deste trabalho. A aprendizagem, a partir da compreensão das teorias cognitivas, ressaltando o dito anteriormente, é um processo de relação do sujeito com o mundo externo com consequências no plano da organização interna do conhecimento (organização cognitiva).

            É um elemento que provém de uma comunicação com o mundo e se acumula sob a forma de uma riqueza de conteúdos cognitivos em um processo de organização de informações e integração do material apreendido pela estrutura cognitiva. A partir deste processo, o indivíduo adquire, um número crescente de novas ações como forma de inserção em seu meio – ele aprende.

            Esta aprendizagem possui certas características principais. Ela se da na relação entre as ideias (conceitos), numa abstração das experiências vividas. Os processos cerebrais centrais, tais como atenção e memória, são integradores do comportamento, aumentando a possibilidade de que este se mantenha com o passar do tempo. O modo de apresentação do problema permite uma estrutura perceptual que possibilita o insight – a compreensão interna das relações essenciais do caso em questão (ou seja, a experiência anterior não garante a solução do problema).

 

 Esqueci a palavra que pretendia dizer e meu pensamento, privado de sua substância volta ao reino das sombras[1].

            Segundo, David Ausubel, a cognição é o processo através do qual o mundo de significados tem origem (pontos básicos de ancoragem), significados dinâmicos que possibilitam a atribuição de outros significados (primeiros significados). Preocupa-se, portanto, com o processo de compreensão, transformação, armazenamento e utilização de informações, no plano da cognição.

            E cita dois “tipos” de aprendizagem: a mecânica e a significativa. A primeira se dá quando se aprende novas informações com pouca ou nenhuma associação com conceitos já existentes – como os “decorebas”, ou o caso dos “analfabetos funcionais” (que aprendem as letras, mas não as associa a qualquer informação anterior). Já a segunda, é o que alguns profissionais da educação chamariam de verdadeira aprendizagem, nesta o conteúdo aprendido se relaciona com conceitos relevantes, claros e disponíveis na estrutura cognitiva, sendo, assim, assimilado por ela.

            No filme La Educación prohibida, uma educadora comentou que a escola deveria ser uma fonte de experimentação, na qual a pessoa fosse testando a realidade. Esta afirmação remete ao que se denomina “pontos de ancoragem”. São pontos de conhecimento formados pela incorporação, à estrutura cognitiva, de elementos importantes para a aquisição de novos conhecimentos e, ao organizá-los, progressivamente criando generalizações formam os conceitos. Assim, a própria experimentação da realidade, elementos que se adquire na vivência no mundo, se armazenam continuamente e servirão como matéria prima, ou gatilho para uma nova aprendizagem significativa.

2.2 Brincar       

            Antes de iniciar uma breve e superficial reflexão acerca do brincar, afinal o brincar definitivamente envolve uma variedade de dimensões, de que apenas estudos profundos dariam conta de sua compreensão (ao menos até que outra compreensão se faça no contínuo processo de produção de conhecimento), cabe ressaltar uma questão. Não se pretende instrumentalizar ou “tecnicisar” o brincar.

            O brincar, como Maturana (2004, p. 229-233) ressalta, envolve certa inocência, ausência de metas e objetivos. Ele depende de interação no presente e despretensiosa, ou seja, ao brincar interessa apenas o brincar. A aprendizagem, como diz Tim Brown [2], é apenas (principalmente) um efeito colateral. Uma experimentação do mundo e da realidade que se daria apenas quando realizada nela (experimentação) e para ela e sua consequência natural e não intencional é a aprendizagem e o desenvolvimento. É desta compreensão inicial que partir-se-á para a compreensão singela do brincar para a discussão dos dados posteriormente.

            Aucouturier (2005), afirmou em sua conferência que “a criança brinca para compreender o mundo, brinca para se compreender no mundo na interação com os outros”. E por seu caráter de experimentação está estreitamente relacionado com a aprendizagem. Brincando a criança “vive o prazer de agir simultaneamente com o prazer de projetar-se no mundo em uma dinâmica interna que promove a evolução e a maturação psicomotora e psicológica da criança.”.

            Brincar, portanto, envolveria uma integralidade do eu (corpo, mente, espírito) em interação com o outro (compreendendo esse outro como tudo aquilo que não é o eu). Uma interação inocente de experimentação do mundo, situada no aqui e agora, ou seja, sensível para o presente.

 2.3 Educação Lúdica

             A educação é orientada por metas, ao contrário do brincar. Tem intenção de desenvolver competências e habilidades que permitam uma adequação à vida em sociedade, a capacidade de interagir no mundo de maneira produtiva. Não é uma ação inocente como o brincar, nesta dimensão poderíamos dizer que são contrárias. No entanto, é importante refletir sobre este formato educacional ser fruto de uma construção social que data de outro século, logo, de uma sociedade que possuía uma intencionalidade diferente da sociedade atual. O que pode ser perceptível nas produções teóricas produzidas, por exemplo, por Paulo Freire, por Augusto Boal e por Luckesi.

            São autores que pretendem uma modificação na essência do processo educacional. É a mesma intenção dos autores que se dedicam a teorizar sobre o lúdico na educação. Como desenvolver indivíduos em integralidade, em sua totalidade, com plenitude são alguns dos questionamentos. E uma conclusão comum é que o prazer e o lúdico, comum no brincar, seriam características que possibilitariam esse desenvolvimento do humano pleno.

            O que marcaria o diferencial de uma Educação Lúdica seria um deslocamento da posição central no processo de ensino-aprendizagem das técnicas e instrumentos (de lógica linear e simples) para interação aluno/professor no aqui e agora (permitindo-se o emergente e o não-linear). Esse deslocamento permite que a autoria do processo seja de todos os sujeitos envolvidos, aluno e professor implicados de maneira plena e criativa no acontecimento presente do ensinar-aprender.

            É importante salientar que não se pretende tomar educação por brincadeira. São diferentes pela existência ou não de intencionalidade. O que se pretende é que as práticas do educador não sejam aprisionadas, principalmente pelos aspectos rígidos das técnicas e instrumentos (que resulta, geralmente, em aprendizagem mecânica – como no caso dos analfabetos funcionais que não são capazes de realizar associações do aprendido com situações reais). Que os instrumentos e técnicas sirvam, ao contrário, ao emergente do acontecer no aqui e agora do processo educacional. Isso abriria as portas da educação para o espontâneo, para a implicação dos sujeitos que passam a se encontrar plenamente e criativamente, logo prazerosamente. Isto sim possibilitará uma aprendizagem significativa por parte dos sujeitos envolvidos.                      

3 Metodologia e Análise dos dados

3.1 Metodologia

             Para obter os dados necessários foram realizadas entrevistas semiestruturadas. O roteiro contava, inicialmente, com duas perguntas abertas: “Se aprende brincando?” e “O que você aprendeu brincando”. Após a realização de três entrevistas, foi percebida uma necessidade de compreender a que brincar se referiam os sujeitos, desta maneira fez-se necessária o acréscimo de uma terceira questão: “O que é brincar”, que passou a iniciar as entrevistas.

            Os sujeitos entrevistados foram quatro pessoas de uma mesma família: o pai e a mãe, um filho e uma sobrinha. O pai (56 anos) e a mãe (56 anos) são pessoas que cresceram e passaram pelo processo educacional formal entre 1960 e 1980, em cidades do interior e o filho (32 anos) e a sobrinha (26 anos) cresceram e foram educados entre 1980 e 2000 em grandes cidades.

 3.2 Análise e discussão dos dados

             A compreensão do brincar foi associada com suavidade (“é levar a vida com suavidade”), com a diversão, movimento e prazer com ou sem a interação direta com outra pessoa (“se divertir de forma dinâmica, interagindo com outras pessoas” e “É se divertir, fazer algo, se mexer (corpo e cabeça), algo prazeroso”) e uma das respostas afirmou que o brincar era “fazer de conta com coisa séria”, um ensaio para a vida adulta.  Nas respostas, apenas a mãe apresentou a compreensão do brincar como contrário à seriedade. Já os mais novos e o pai associaram o brincar com diversão e prazer, sem dissociá-lo de seriedade.

            Todos os entrevistados afirmaram que o brincar proporciona aprendizagem, apresentando diferenças apenas no teor desta aprendizagem. O pai e a mãe, no entanto, associaram este aprender com habilidades específicas. O primeiro, com habilidades de se relacionar com outras pessoas (aprender os limites da relação com o outro) e a segunda, com o início do aprender, como expôs, um ensaio para a vida adulta.

            Já o filho respondeu da seguinte maneira: “é o que me faltou na minha formação educacional, por isso tive tanta dificuldade de aprender. É o melhor método de aprendizagem. Não consigo ver a possibilidade de aprender sem se divertir... Senão é tortura. Eu me sentia aprisionado, em cárcere. Ninguém tinha a metodologia certa e a paciência para me ensinar.”. O dado mais interessante apresentado vai de encontro com o discutido anteriormente, acerca do enrijecimento na técnica e nos instrumentos. Quando se ocorre, no formato “PF (prato feito)”, as diferenças não podem ser trabalhadas, ou o educando (e educador) se adéquam ou vão vivenciar o sofrimento desta fala. Sujeitos aprisionados num processo em que não se sentem agentes, não se sentem incluídos.

            O contrário acontece quando o lúdico está envolvido na educação. A sobrinha afirma que quando se aprende brincando não se esquece, o que na teoria estudada se denomina aprendizagem significativa. O que não foi mencionado quase nunca na educação formal recebida pelos sujeitos da pesquisa e, quando mencionado, é situação isolada e momentânea. E a menção foi direcionada pelo teor da entrevista, na qual a entrevistadora questionou sobre o que tinha aprendido na escola.

            Este fato se confirma na resposta à terceira pergunta, tendo apenas a sobrinha se referindo a uma situação de sala de aula, a única de que se lembrou. O pai e a mãe se referiram ao aprender brincando no viver em geral como o perceber limites nas relações com os outros ou nas atividades práticas do dia a dia (cozinhar, arrumar a casa, cuidar de criança, brincar, amar a natureza) o que pode estar associado à vida no interior onde se “brincava ao ar livre”. O filho afirmou ter aprendido poesia brincando e que a poesia, por sua vez, o alfabetizou (não a escola), salientando que a poesia não era atrelada a obrigação, sendo realizada por ser realizada, porque tinha interesse e o entretinha. Aproxima-se bastante da a compreensão do brincar apresentada por Maturana, a não intencionalidade e inocência do ato.        

 4Considerações finais         

            O brincar se apresentou sempre como prazer e como fornecedor de conhecimentos importante para a vida e como propiciador de aprendizagem significativa. No entanto, o ensino formal não se apropriou deste brincar em sua metodologia, o que proporciona em muitos casos o sofrimento dos sujeitos envolvidos. Esse lúdico, que propiciaria uma vivência de integralidade e plenitude, foi encontrado essencialmente, na vida. As nossas escolas precisam libertar os sujeitos, deixá-los se tornarem os atores principais do processo de ensino-aprendizagem, a fim de formar sujeitos plenos e não (de)formá-los.

 


[1] Osip Mandelshtam, citado no livro Vygotsky; Aprendizado e desenvolvimento – Um processo sócio-histórico.

[2] Palestra indicada por Adriana Friedmman.