O BRASIL E O PAÍS DO FUTURO

Uma Análise da Educação Básica na Formação do Império Brasileiro (1808-1831)

Fábio Fernando Ferreira Silva[1]

Resumo: O presente estudo tem como objetivo caracterizar os aspectos positivos e negativos, da educação básica durante a formação do império brasileiro, enfatizando a política adotada quanto à sua aplicação e viabilidade.

Palavras - chave: política, educação básica, organização imperial.

Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômica, político e cultural. (...) ela está, pois, submetida a imposições, ligadas a privilégios, enraizada em uma particularidade (CERTEAU, 2006: 66).

As primeiras medidas tomadas para implantação de um império na America portuguesa começaram em 1808, com a chegada da Família Real nas terras brasileiras. Devido aos problemas políticos em que Portugal se encontrava, d. João vê-se obrigado a retornar ao seu país de origem. Deixando aqui seu filho como príncipe regente. No ano de 1823, no intento de legitimar a sua autoridade perante a sociedade, o imperador d. Pedro I, em um ato considerado despótico, dissolve a assembléia constituinte, e no ano seguinte outorga a primeira constituição.

A educação compõe um dos elementos primordiais para a estruturação de uma sociedade. Partindo desse pressuposto, e, visto que a partir do século XIX afloram os debates sobre o conceito de nacionalidade, no qual o Brasil não esteve alheio. Entendemos que seja de fundamental relevância compreender o processo de estruturação da educação no estado brasileiro, já que esta permite ao cidadão interar-se sobre o mundo e sobre si.

Sendo assim, procuraremos a partir da análise do artigo 179 da constituição de 1824, no que toca à educação, questionar quanto à aplicação e viabilidade do projeto de educação básica, assegurado pela constituição como direito universal para todos os cidadãos brasileiros. E atentar quanto ao posicionamento das camadas da sociedade vigente.

Na carta outorgada o artigo 179 reza que: "A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela constituição do império. (...)", o parágrafo 32, do supracitado, que faz referencia à educação, explicita: "a instrução primaria é gratuita a todos os cidadãos".

Para construção deste estudo utilizaremos principalmente do parágrafo 32 da constituição de 1824, para assim analisarmos como se processaram essas garantias de educação para todos, em um país escravista, estamental e patriarcal. Destarte, o presente estudo intenta caracterizar as fragilidades da educação básica durante o processo de organização do império do Brasil, enfatizando a política adotada quanto a sua aplicação e viabilidade.

Em um primeiro olhar, parece que as fontes aqui analisadas, são poucas e tímidas. Entretanto, o pesquisador não deve deixar-se seduzir apenas pelas fontes palpáveis e consideradas inéditas, pois, elas podem não existir. No que se refere ao uso de tais fontes, Maria Lúcia de Arruda Aranha é enfática ao dizer: "o que confere valor ao trabalho do historiador não é a qualidade das fontes que ele conseguiu descobrir, mas a qualidade de perguntas que ele lhes faz" (ARANHA, 200: 28).

Desde os primeiros momentos da chegada dos portugueses na colônia, a tarefa educacional ficou a cargo dos jesuítas, que implantaram uma educação de cunho religioso. Impulsionados por esse sentimento de propagação da fé cristã, acabaram por introduzir além da moral, costumes e religiosidade européia, métodos pedagógicos que acabaram tendo funcionamento absoluto nos primeiros séculos da colonização.

A atuação jesuítica no Brasil contribuiu para educação no período. Construíram escolas de ler, contar e escrever, priorizando a escola de formação superior. Contudo, esta teve um caráter ambíguo, pois, educava e instruía os filhos da elite colonial ao passo que catequizava o nativo. Como observou Maria Lúcia de Arruda Aranha:

A educação interessava a poucos elementos da classe dirigente e, ainda assim, como ornamento e erudição. Era literária, abstrata, afastada dos interesses materiais, utilitários e até estranho, por tentar trazer o espírito europeu urbano para um ambiente agreste e rural. (ARANHA, 2006: 165).

Com a transmigração da família real portuguesa para o Brasil, a sociedade brasileira gozou de certa autonomia. Com a vinda de d. João, o Brasil passou por modificações consideráveis: a abertura dos portos e a revogação do alvará que proibia a instalação de manufaturas significaram, de certa forma, a ruptura do pacto colonial.

Com essas medidas, a Coroa elevou a colônia à sede do império. E mesmo depois de outorgada a constituição, no que se refere política para educação, até então a responsabilidade pela instrução dos filhos, que deveria ser garantida pelo estado, na pratica ocorreu de outra forma, "a coroa, em determinadas ocasiões, chegou mesmo a delegar aos pais a responsabilidade pelo pagamento dos mestres. Isto mostra como a educação, tornada pública pela lei, esteve em grande parte privatizada" (VILLATA, 1997: 349).

A lei outorgada não faz distinção em relação às camadas a serem atendidas. Porém, as próprias autoridades, que eram incumbidas de fazer valer este direito embargavam o ensino para população pobre, que correspondia à grande maioria da população existente no país. O império brasileiro de então é habitado por varias etnias, o que dificultou a implantação de educação para todos. É importante que pensemos que para a sociedade da época, os africanos, maioria da população, não eram vistos como seres humanos. Neste sentido, pensar a construção de uma nação tendo como ponto de partida a educação, significou deixar de lado os maiores habitantes do país.

Dentro desta problemática, educação e escola viram-se limitadas por outros motivos. A escola era garantida para as camadas do setor privilegiado da sociedade imperial. E ainda assim existia uma contradição entre o estado e as famílias de elite. O estado garantia a instrução, ao passo que a família deveria oferecer a educação, entendida aqui como princípios morais.Neste sentido, de acordo com Ana Maria Mauad:

A especificidade da infância era motivo para polêmicas e controvérsias cuja temática central era a oposição entre educação e instrução. As escolas ofereciam um ensino enciclopédico, desde os sete anos de idade, enaltecendo os alunos que, bem cedo, conseguiam passar por sabatinas e argüições das mais difíceis (...), no entanto, a escola só poderia cumprir o seu papel se a educação doméstica cumprisse sua finalidade: o estabelecimento dos princípios morais. (MAUAD, 2006: 150).

Obviamente que esta prerrogativa se estabelecia aos setores privilegiados da sociedade vigente. Desse modo, a educação ganhou um caráter reprodutivista, voltada para perpetuação de uma ordem patriarcal e estamental. Porém, não é nosso objetivo caracterizar a educação familiar, mas, tratar da atuação do estado quanto à aplicação da educação básica, entendida aqui como instrução.

Mesmo estando presente na lei, a educação ficou longe de estabelecer uma conexão entre as populações que aqui viviam.

Em existências tão precárias, contando com espaço tão diminuto de ação, ignorantes do mundo, os indivíduos não podiam alimentar expectativas em relação à escola, quanto mais que esta, prisioneira de uma visão retórica e eloqüente de saber representava a negação da cultura e da experiência de vida da maioria das gentes, levando à repressão cultural e à exclusão social (VILLATA, 1997: 352).

A carta constitucional tratou da questão do ensino somente no parágrafo 32, o qual se limitou a estabelecer a gratuidade da instrução primaria de todos os cidadãos. Todavia, nela não estavam incluídas as medidas para criação de escolas. As camadas empobrecidas que seriam os maiores beneficiados, por não terem condições de lutar por esse direito, deixavam passar despercebido. Ou, segundo Caio Prado Junior:

Os homens livres que seriam os maiores beneficiados pela instrução pública ou não tinham consciência da sua importância ou quando tinham, não estavam em condições de lutar por ela. Faltava-lhes ainda a força orgânica e a base organizacional para exigir a sua efetivação, pois estavam alijados do processo de organização da sociedade brasileira (PRADO JUNIOR 1999: 67).

Assim, não era de se estranhar que a organização do ensino no Brasil fosse tratada com descaso. É verdade que depois da chegada da família real no Brasil, o governo imperial teceu novos caminhos para atuação da educação. Porém, objetivando formar pessoal especializado para obrigações de que necessitava. Agora o governo investiu na formação técnica e superior para suprir a defasagem em que se encontrava a nova sede do governo imperial.

Durante o governo de d. João VI foram grandes os investimentos na formação militar, academia marinha, medicina, escultura e arquitetura. Por outro lado, a instrução básica não mereceu os mesmos cuidados da administração. A educação dos povos livres e desclassificados ficou relegada a um segundo plano.

Talvez não fosse tarefa fácil garantir educação básica para todos em um território tão vasto como o do Brasil. Contudo, essa garantia estava presente na constituição do país. A carta outorgada em 1824 garantindo instrução primária gratuita, não foi capaz de sanar a defasagem do ensino, como também não o foi às medidas adotadas em um período anterior pelo Marquês de pombal. De acordo com Villata:

Com as reformas pombalinas, agravou ainda mais a situação educacional, na medida em que quase não havia aulas régias. As disciplinas não eram oferecidas em todas as vilas e cidades. Neste sentido, as aulas de primeiras letras se fez no âmbito do privado. O que correspondia a uma parcela muito pequena da população (VILLATA, 1997: 355).

Com o desmantelamento da ordem jesuítica pelo marquês de pombal, a educação passou por momentos de crise, o que acabou provocando todo um retrocesso no já defasado sistema educacional imperial. Essa disparidade só foi vencida por alguns membros da elite dirigente da colônia. Entre as populações pobres persistia o analfabetismo, e as condições precárias de vida.

Quando a questão educacional foi colocada na constituição, o príncipe regente estava passando por uma situação de inconformismo popular, principalmente nas províncias do norte. Todavia, não era do seu real interesse, colocar todos os cidadãos em pé de igualdade intelectual e, acima de tudo, garantir para toda a população pobre os mesmos direitos dos filhos da elite imperial. Ou, com essa medida procurou amenizar a insatisfação popular na qual estava passando. E esses homens sabiam muito bem o faziam, neste sentido, Emilia Viotti da Costa reitera de forma concernente esta situação:

A primeira tarefa dos homens que aqui assumiram o poder depois da independência foi substituir as instituições coloniais por outras mais adequadas a uma nação independente. Não se tratava de homens inexperientes que enfrentavam pela primeira vez problemas relacionados com política e administração. Eram, em sua maioria, homens de mais de cinqüenta anos, com carreiras notáveis de servidores públicos, que haviam desempenhado vários cargos a serviço da Coroa portuguesa durante o período colonial, por isso, estavam bem preparados para levar a cabo sua missão (COSTA, 1999: 131).

A carta foi outorgada em de 1824 e, só há referências quanto à construção de escolas de primeiras letras, assegurado pela lei, em 1827, o que não foi cumprido. A carta estava cheia de contradições, como atesta Francisco Iglesias: "a constituição era um passo importante para regular a sociedade, mas não o suficiente, pois vários aspectos lhe escapavam" (IGLESIAS, 1993: 141). Nessa perspectiva, Emilia Viotti da Costa destaca uma delas:

A carta outorgada pelo imperador em 1824 não mencionava sequer a existência de escravos no país. Não obstante, o artigo 179 definir a liberdade e a igualdade como direitos inalienáveis dos homens, centenas de negros e mulatos permaneceram escravos (COSTA, 1999: 137).

O quadro geral da instrução publica no período imperial, enriquecidos com a criação de cursos superiores incentivados principalmente por d. João VI, não se alterou significativamente depois de outorgada a constituição de 1824. Quanto aos estudos primários e médios, algumas escolas de primeiras letras foram criadas. Todavia, as aulas continuaram avulsas no velho estilo das aulas régias.

O governo central estava sufocado pelos encargos decorrentes de uma centralização excessiva e, o imperador não era muito bem quisto por alguns membros da própria elite política imperial. Isso contribuiu muito para que o defensor perpétuo do Brasil não zelasse pela instrução publica. Quando algum membro da população pobre conseguia um modo de se instruir, isso se fazia longe da escola.Como observou Luiz Carlos Villata:

Entre as camadas humildes, por outro lado, difundiu-se o aprender-fazendo. Extras muros da escola, na luta pela sobrevivência, adquiriam-se os rudimentos necessários par garantir a subsistência e para reproduzir os papeis que lhes eram reservados na sociedade (VILLATA, 1997:333).

Com tudo isso, a situação da educação básica ficou ainda mais comprometida depois do ato adicional de 1834, que delegava às províncias a prerrogativa de legislar sobre a educação primária. E isto comprometeu em definitivo o futuro da educação básica, pois possibilitou que o governo central se afastasse da responsabilidade de assegurar educação elementar para todos. Entretanto, nesse período quando promulgada a constituição de 1834 a educação ganha um novo olhar das autoridades competentes. Atendendo um número maior de famílias e regiões.

Assim a ausência de um centro de unidade e ação, indispensável, diante das características de formação cultural e política do país, acabaria por comprometer a política imperial de educação. A descentralização da educação só serviu para aumentar a disparidade entre as elites imperiais e as camadas populares, econômica e socialmente.

Os meninos da elite rural e urbana tinham a garantia desse "status" proporcionado pela educação. Assim bem observado por Ana Maria Mauad: "os filhos da elite rural e urbana foram advogados destacados, médicos distinguidos, engenheiros desbravadores do império ou ainda políticos republicanos" (MAUAD, 2006:155).

No tocante à educação e posição social da sociedade brasileira imperial, Emilia Viotti também nos corrobora quanto a isso:

Dentro dos quadros de uma sociedade essencialmente agrária e escravista, onde eram escassas as possibilidades do trabalho livre, havia pouco lugar para instrução e cultura. Exceção feita pela obra catequética que se encerrava dentro de seus próprios limites. A marginalização da população livre do processo político retirava à educação básica muito de sua funcionalidade (COSTA, 1999: 238).

Durante a primeira metade do século XIX não houve, no Brasil, uma proposta de educação sistemática e planejada. As mudanças tendiam a resolver problemas imediatos, que servia para diminuir a defasagem da nova sede do império em relação a outros países e, para atender as demandas da Coroa.Para Maria Lúcia de Arruda Aranha:

Eram muitas as contradições sociais e políticas de um país cuja economia consolidava o modelo agrário-comercial e fazia as primeiras tentativas de industrialização. Debatiam-se os segmentos renovadores e as forças retrogradas da tradição agrária escravocrata (ARANHA, 2006: 233).

Nesse cenário a educação básica não encontrou nenhum ambiente a seu favor. Em um contexto marcado pelos conflitos sociais e políticos, a proposta por um modelo educacional que pudesse de certa forma, mudar a disparidade entre as camadas sociais aqui existentes, não foi assegurada pelas partes competentes. E quando o foi, fizeram-na de caráter paliativo e reprodutivista. O que reforça, em tese, o atraso da educação brasileira em relação a outros países.

FONTES:

CARTA DE LEI DE 25 DE MARÇO DE 1824

TÍTULO 8º

Das disposições gerais e garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros.

Art. 179 - A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela constituição do império, pela maneira seguinte:

#32. A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos.

Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1823. – João Severiano Maciel da Costa – Luiz José de Carvalho e Mello – Clemente Ferreira França – Mariano José Pereira da Fonseca – João Gomes da Silveira Mendonça – Francisco Vilela Barbosa – Barão de Santo Amaro.

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/constituição/HTM. Acessado em: 10/10/2007.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANHA, Maria Lucia de Arruda. História da educação e da pedagogia: geral e Brasil. 3ª ed. São Paulo: Moderna, 2006.

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2º ed. Rio de Janeiro: forense universitária, 2006.

COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à republica: momentos decisivos, 7 ed. São Paulo: editora UNESP, 1999.

IGLESIAS, Francisco. Trajetória política do Brasil: 1500-1964. São Paulo: companhia das letras, 1993.

MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o império. In: História das crianças no Brasil. (org.). DEL PRIORE, Mary. 5º ed. São Paulo: contexto, 2006.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Técnicas de Pesquisa: planejamento e execução de pesquisas, amostragens e técnicas de pesquisas, elaboração, análise e interpretação de dados. 5º ed.- São Paulo: atlas, 2002.

PRADO JUNIOR, Caio. Evolução política do Brasil: colônia e império. São Paulo: brasiliense, 1999.

VILLATA, Luiz Carlos. O que se fala o que se lê: língua, instrução e leitura. In.História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na America portuguesa. (org.). MELLO e SOUZA, Laura de.NOVAIS, Fernando A. São Paulo, companhia das letras, 1997, 8º reimpressão.




[1] Acadêmico do curso de História da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES – campus/São Francisco. E-mail: [email protected]