Dostoievski, não por acaso um dos meus escritores prediletos, em seu livro "O Idiota", dá-nos um belo exemplo de como um homem pode ser verdadeiramente Belo. Michkin, o príncipe, personagem principal da narrativa, é alguém isento de individualismo ou egoísmo e busca através do conhecimento de si e do reconhecimento do "outro", o Belo.
Por seu caráter, Michkin representa o homem em seu lado mais Belo. Aquele que não se importa com a maneira pela qual será julgado pelos outros, desde que coloque acima de tudo os bens supremos do espírito e suas potencialidades.
O Príncipe pode ser compreendido como a união de Dom Quixote, no que se refere ao apego à justiça e a bondade; e Cristo?homem, capaz da mais imensa ternura e também de grande indignação, face ao injusto. Para entender Michkin é preciso usar os caminhos traçados por Platão para o verdadeiro entendimento do Belo.
A idéia de Belo em Platão distancia-se da nossa concepção vulgar de belo. O Belo platônico representa o que há de mais elevado que a condição mortal pode atingir: algo como o homem aproximar-se dos deuses.
Não é projeto fácil compreender o livro em sua beleza essencial, pois na modernidade esta idéia de Belo foi falsificada em nome de uma equivocada realização pessoal. O homem moderno constrói "castelos" que nada tem a ver com seus talentos, hasteando bandeiras que nunca o pertencerão, mas que, inevitavelmente lhes são entregues como se fossem suas.
O Belo platônico ensina a buscar uma verdadeira realização; realização esta que é guiada pelo verdadeiramente Belo. A busca existencial deve ir em direção daquilo que se é, ou seja, dos talentos individuais de cada ser, que são o motor que deve guiar a vida. A beleza da vida perde-se quando há o desvio do Belo.
A beleza da vida está em sentir-se plenamente senhor de si; e tornar-se senhor de si é o grande projeto a ser seguido, pois somente este assenhoramento pode fazer com que as potencialidades individuais possam ser plenamente atingidas.
Estar em harmonia consigo é a grande questão que o Belo de Platão nos coloca, não importando se o que se deseja não é lucrativo ou bem avaliado socialmente.
A angústia da modernidade está em não suportar a idéia de feiúra, todavia, sem sabê-lo; mas não esta idéia de feiúra puramente egocêntrica, pois o verdadeiro Belo independe da aparência física, mas sim, é completamente dependente da busca do que há de mais Belo em cada um de nós.
Portanto, não se trata de um belo egóico, pois o verdadeiramente Belo não reside nas aparências, mas construído a partir da busca dos talentos pessoais.
O Belo em Platão pode ser resumido pela busca do nobre, do bom e do justo, que tem a ver com a busca dos talentos pessoais. E, neste sentido, o Belo transcende as aparências, ou pelo menos, as aparências deveriam revelar a verdadeira beleza e não o contrário.
Em seu livro "A República" Platão, - que, diga-se de passagem, tem um título muito inadequado para o objeto da obra, eis que Politéia, deveria ser traduzido como "Sobre a Civilidade" e não "A república", - busca demonstrar como é possível a formação pessoal do homem, elevado ao mais alto grau de civilidade. O livro pode ser considerado como um trabalho aristocrático, no sentido arcaico, que é a conquista da excelência humana.
Belo e excelência se encontram e os talentos servem para a conquista desta excelência e não para a falsificação do ser. Os talentos não são genéticos, ao contrário, eles são a possibilidade do Belo. Para os antigos, os talentos eram considerados presentes dos deuses no momento do nascimento e em troca dos talentos inatos, esperavam os deuses que os homens os ajudassem.
Assim, o guia para a realização dos talentos é o Belo.
Alguns, apesar das dificuldades, são capazes de realizar seus talentos. Quando olhamos para personalidades como as de Einstein, Freud, Kant ou mesmo Spinoza, não vemos outra coisa que não o Belo, ou seja, a realização humana em sua mais elevada forma. Michkin, o personagem de Dostoievski, apesar de construído, é outro exemplo de beleza no sentido platônico. Em comum, todos são exemplos de seres que tinham imensa paixão pelo que faziam e não temiam seus talentos, por mais tormentosos que se mostrassem.
O que então nos diferencia de personagens e personalidades como as acima mostradas? Nós temos talentos, todavia, não somos educados para realizá-los.
Em Platão, os talentos foram dados ao homem para que este pudesse se tornar cada vez mais Belo. Todavia, os verdadeiros talentos só se expressam quando o sujeito chega a conclusão de que está aqui apenas para melhorar o mundo em que vive e nunca o contrário.
A beleza, todavia, não está em olhar apenas para si, mas para ver (amar) também o outro. O primeiro passo é reconhecer-se a si mesmo como Belo, para em um outro momento, ter a capacidade (possibilidade) de ver no outro um alguém tão Belo quanto a si mesmo.
A mais elevada tecnologia humana é o Belo. Não adianta dar conhecimento ao homem sem ensiná-lo à busca do Belo. O conhecimento é instrumento e não o Belo em si. A educação em nada ajuda os indivíduos a descobrir os seus talentos. Confundimos o homem com sua profissão e nesta brincadeira esquecemos de construir o homem (o verdadeiro).
A sociedade grega arcaica vislumbrava o ideal do homem como aquele movido por uma paixão, ou seja, por Eros (a paixão criadora). Esta paixão criadora se chamava daemon e era justamente o que os mestres precisavam descobrir nos alunos e ajudar a desenvolver.
Neste sentido, Daemon é um guia mágico que faz com que o sujeito escolha aquilo que lhe apaixona, mas que exige, ao mesmo tempo, que ele caminhe em busca de sua realização. É aquela energia incita em cada ser que o faz tomar grandes decisões na vida, ainda que difíceis (é irracional para os modernos, mas basta ser educado para se escutar a voz do daemon e, consequentemente, se guiar pelo Belo).
Estranho que o daemon dos antigos virou demônio na tradição judaico cristã, pois as nossas tradições não gostam de pessoas que pensam por conta própria, e valorizar o daemon significa pensar constantemente em si, consultando a si mesmo e, deste modo, valorizando e compreendendo o outro.