O BARROQUISMO NO BOI BUMBÁ PARINTINS

Jocifran Ramos Martins

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre o caráter dual que impregna a produção artística parintinense, em especial o boi-bumbá, compreendido como tentativas de se uniformar na manifestação cultural a essência do conflito humano entre fé e razão, entre o profano e o sagrado, que caracteriza o espírito barroco desde os primórdios e se intensificou no ocidente no século XVI.

A insatisfação do homem com as explicações e/ou “verdades” correntes sempre ensejaram a busca pelo aperfeiçoamento das interpretações, ou a explicação que saciasse seus questionamentos. A explicação da natureza através do mito, como na Grécia Antiga, ao esgotar seu arsenal de argumentos ante a realidade nova que se conformava, levou o homem a empurrar as fronteiras do conhecimento. Crença e razão já não eram coisas afins. Nessa procura, o homem “inventou” a Filosofia e, através dos tempos, produziu ciência considerável acerca de sua realidade. Desta divisão, como se pôde observar, vem ressentindo-se o ser humano, principalmente em uma época em que parece se afirmar a hegemonia do saber científico, que inunda nossas vidas com sua presença traduzida em tecnologia, que abafa as manifestações, os anseios pela procura mais simples e essencial da felicidade. Isto tudo ainda contaminado pelas manifestações instintivas de sentimentos, que tanto tornam a compreensão eclipsada e dirigem reflexões e atos de maneira enviesada e com a insanidade sentimentalóide, como alertou Bacon: O intelecto humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se poder gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afeta o intelecto. As manifestações populares, principalmente a que aqui se propõe abordar, o boi bumbá, serviram-nos de objeto de observação, dada a idolatria com que se manifestam os parintinenses, da qual extraímos alguma reflexão. Esta cidade é uma efusão de cultura popular, mas optamos pelo boi bumbá, por entendermos que mais representa a identidade local, embora a abordagem pretendida não se limite a um fenômeno pontual dentro da amplitude humana. Antes, procuramos mostrar que há implicações além do âmbito da cidade e da região; e que o observado seria sim uma manifestação muito mais geral e que só afirma o ser humano como uma espécie única, seja nas grandes metrópoles, seja esquecido na floresta amazônica. Na proposição de interpretar um fato social, o recorte feito leva ao conhecimento mais detalhado do que se pretende estudar, discutir, entender. Porém, o estabelecimento de rigorosas fronteiras peca na tentativa de explicação do fato em si mesmo, como se ele trouxesse em seu bojo as causas que o engendraram e as respectivas conseqüências, que cessariam ao final de seu ciclo. Isto nos levaria a uma particularização que comprometeria seriamente a fidelidade que se pretende. O caráter multifacetado da realidade exige a fragmentação, afim de que se alcance a transparência do fato em questão. Mas esse procedimento deve constituir-se apenas num estágio rumo à inter-relação das partes para alcançar a totalidade. Secciona-se a unidade, buscando compreender suas nuances e, em seguida, recompõe-se o todo. Isto não deve ser esquecido ao se procurar compreender as manifestações artísticas, sua organização espacial na atualidade. Aliás, o adjetivo espacial nos remete à categoria de espaço que por si só nos remete, também, a uma anterioridade que não deve ser esquecida. A conformação espacial deve ser considerada também como categoria temporal. Ou seja, categoria historicamente construída, pois a organização atual é resultado de organizações anteriores e sua acumulação ou negação/substituição de partes que não se combinaram com as relações históricas emergentes. Assim, as realidades atual e passada, local, regional, nacional e internacional devem ser vistas como partes de um organismo interagindo e proporcionado o corpus, influenciando-se e, assim, determinando sua mobilidade histórica. A cultura, assim entendida, é a expressão de heranças que se manifestam na atualidade denotando um passado de interações e adaptações às realidades que se impuseram no transcurso de sua história. Levado isto ao extremo rigor, mesmo em época de espantosa arrancada científica, diríamos que em todo fazer humano ainda resiste a manifestação atávica, inconsciente ou não, do temor ao desconhecido, ao sobrenatural, ao incompreensível, o que se convencionou chamar de divino. Neste interstício, vislumbra-se não só a herança grega que separou mito e razão, mas toda a história humana que se construiu sobre a incompreensão e o temor do fogo, do escuro, da noite, do sol, das feras... Ainda hoje, na mais singela e aparentemente inócua forma de expressão artística, encontra-se impressa esta característica que nos moldou através dos séculos. Nós, seres humanos, somos essencialmente duais! Carregamos sempre, ainda que neguemos, a certeza de que se opõe à existência terrena - conhecida e material - outra desconhecida, espiritual. Esta sempre eivada da idéia de pureza, sublimada, etérea e eterna; aquela, carregada de pecado, de incorreções, fadada à degradação, à podridão, à decomposição. Nossas ações e reações no plano terreno parecem ter sempre presente a angústia de se estar contrariando o espírito e, assim, tornando-nos ímpios e desmerecedores da eternidade, da continuação. O divino e o sagrado, elementos antagônicos, caracterizados simploriamente pelo espiritual e pelo material, têm em Rubens Alves (1996) enriquecida essa concepção. O profano é, para ele, o que tem caráter utilitário, efêmero, descartável. Já o sagrado é a perenidade, a transformação. Mas por coisas sagradas, convém não entender esses seres que chamamos de deuses ou espíritos: um rochedo, uma árvore, uma fonte, um seixo, um pedaço de madeira, uma casa, em uma palavra, uma coisa qualquer pode ser sagrada. (...) O círculo dos objetos sagrados não pode, portanto, ser determinado de uma vez por todas; sua extensão é infinitamente variável conforme as religiões.(1996, p. 19-20) Em Parintins, a principal manifestação folclórica, o boi-bumbá, serve-nos como exemplo desta propositura. Nela, podemos perceber claramente a presença ou, ainda, o encontro das duas dimensões. O boi, um elemento da realidade cotidiana, compreendido num processo histórico-dialético, tem a sua concepção de pura manifestação popular folclórica, portanto secular, a que se agregam elementos religiosos e mágicos, como o padre, o feiticeiro e a ressurreição do boi. Transformada pouco-a-pouco no imaginário popular, passa a ser compreendida como indispensável, onipresente, desprovida de sua característica primeira. Aqui em Parintins, num esforço de décadas, o que é muito pouco para influências tão arraigadas na estrutura do pensamento coletivo, o boi-bumbá parece-nos querer fazer acreditar em toda a sua força e verdade. A começar pela sua própria apresentação: o bumba-meu-boi do Maranhão, apesar de mais antigo, parece-nos não ter a preocupação de convencer como verdade presente no cotidiano de todos. Parece, sim, fazer questão de mostrar que é uma brincadeira, haja vista seu formato e seu couro florido; já o boi-bumbá de Parintins busca a cada ano impressionar pela “mimese”, o que nos leva acreditar que a força intrínseca a esta aproximação da realidade seja simplesmente para afirmar que é uma verdade e deve ser aceita como tal, pois é “feito à sua imagem e semelhança”. Portanto, não é uma brincadeira, mas uma presença cotidiana a nos acompanhar a existência os trezentos e sessenta e cinco dias do ano. Vive-se o boi, vive-se do boi e para o boi. Nele, há o caráter utilitário, como afirma Rubens Alves, mas também há o outro, aquele se transcende, que persevera, que se transforma e permanece, a despeito dos antagonismos, das conquistas tecnológicas, que acaba incorporando. Um exemplo pode ser visto nas toadas e sua evolução no tempo. Da ingenuidade dos primeiros anos, em que se tinha como temática o cotidiano, os desafios e desafetos, como podemos constatar na toada de 1948 abaixo, passou-se a enfoques mais abrangentes, como o religioso e o político: MEU BOI PAROU Meu boi parou, tá te esperando O que é que falta pra tirar teu Desengano Audacioso, cretino não tens Coragem Segue o teu destino Se eu pegar o boi contrário Esfolo igual jacaré Tiro toda a carne fora E deixo a caveira em pé (AMBRÓSIO;1948) Em outro momento muito mais recente, percebe-se a preocupação com temas mais fortes e gerais. Nestes momentos, o boi-bumbá já extrapolou o âmbito da brincadeira de rua dos primeiros anos e ganha conotação de pretenso ordenador da ordem social e política, como se vislumbra nesta toada do Garantido: VERMELHO (CHICO DA SILVA,1997) A cor do meu batuque Tem o toque e tem o som da minha voz Vermelho, vermelhaço Vermelhusco, vermelhante Vermelhão O velho comunista se aliançou Ao rubro do rubor do meu amor O brilho do meu canto tem o tom E a expressão da minha cor “Vermelho!” Meu coração é vermelho Hei,hei De vermelho vive o coração ê, ô, ê, ô Tudo é Garantido após A rosa vermelhar Tudo é Garantido após o sol vermelhecer Vermelhou o curral A ideologia do folclore vermelhou Vermelhou a paixão O fogo de artifício da vitória vermelhou A alusão à cor permeia todo o texto, do qual a combinação das palavras-chave vermelho, comunista, ideologia e vermelhou são o núcleo semântico e cuja intenção parece ser o total envolvimento dos elementos de forte simbologia citados, e ,finalmente, a pronta aceitação pelos ouvintes: 1. O batuque (som) é claramente direcionado pela cor: “a cor do meu batuque tem o toque e tem o som da minha voz”. Neste trecho (primeira estrofe) a cor vermelha do batuque é anunciada pelo discurso, que dá a cadência, a direção da brincadeira. Ainda não se tem aqui a contaminação de influências externas à concepção folclórica simbolizada pelo vermelho. A sinestesia (mistura de sensações) som/cor tem o propósito de seduzir o ouvinte não só pela força poética, mas também pela a relação dos seus elementos componentes (auditivo: som, e visual: cor). A voz (som) é o recurso de expressão das idéias, da abstração da realidade e sua comunicação de forma mais sutil e elaborada possível. E assim sendo, torna-se veículo de interpretações desta mesma realidade que passam a ser veiculadas e aceitas não só pela idéia em si, mas por reforço de outros recursos que sirvam para otimizá-las, como os cromáticos (vermelho: cor), por exemplo, que desperta a paixão do povo pelo bumbá, e, neste caso, também o folclórico batuque (som). 2. Repentinamente, na segunda estrofe, a cor (elemento visual de grande importância e destaque) não fica mais restrita à simples referência à manifestação folclórica. Ao contrário, extrapola esta concepção e passa a se referir, de maneira direta, clara e enfática, à determinada corrente ideológico-política, o comunismo, que se teria “aliançado”, pela identificação cromática, com a manifestação cultural popular, com a paixão do povo: “o velho comunista se aliançou ao rubro do rubor do meu amor”. “Aliançar”, ato de fazer aliança, acordo, pacto, não é apenas sugerido, mas dito clara, direta e explicitamente. A referência a “o velho comunista”, pode ser entendida como antigo militante ainda em ação ou antigo militante que já não figura mais nas carreiras do partido. Diante das circunstâncias, parece-nos que a segunda assertiva é a mais correta, já que faria uma homenagem cifrada ao então governador Amazonino Mendes. O batuque (música), manifestação inocente, lúdica, compromissada apenas com a diversão, com o folclórico e que tinha o toque e o som da voz, transforma-se em canto (palavra que significa não só emitir com a voz sons ritmados e musicais, mas também ludibriar, seduzir, com palavras meigas e tentadoras, segundo MICHAELIS), algo mais sério e racional, que contém a significação consciente de toda carga semântica da cor vermelha que após a aliança enseja a substituição significativa de vocábulos: “o brilho do meu canto (não mais batuque) tem o tom e a expressão (e não mais o toque e o som) da minha cor”. I - TOQUE: som, inspiração é substituído por TOM: sentido, teor, caráter, procedimento. II - SOM: tudo o que soa, qualquer articulação de voz, música é substituído por EXPRESSÃO: ato de exprimir, de dizer, manifestação do pensamento, caráter, significação. 3. A intenção de se utilizar este texto é no mínimo por sua acentuada conotação política. A cor, por si só, já configura forte simbologia, porém combinada com as demais palavras parece não querer deixar dúvidas quanto à intenção. Desta forma, lança-se mão, conscientemente, de recursos cromáticos, como o VERMELHO que identifica não só o bumba Garantido, mas também o COMUNISMO no mundo todo, e se anuncia publicamente a relação com tal ideologia política: “o velho comunista se aliançou”, fazendo deste texto um divulgador de idéias (“a ideologia do folclore se avermelhou”) alheias aos princípios e finalidades folclóricos, mas mais geral, dizendo respeito à organização social mais abrangente. 4. Isto posto, SOM (batuque, voz ) e COR (vermelha) seduzem o velho comunista. Com a aliança e o canto, o Garantido não é mais só a Associação Folclórica, é agora também tudo o que o texto anuncia e agrega. Vale lembrar: “a ideologia do folclore vermelhou”. Vermelhou: o verbo formado do adjetivo vermelho indica-nos ação, processo que se desenrola por toda terceira estrofe, ou seja, após o pacto, a aliança. São indícios da pretendida influência no coletivo que deve assimilar a mensagem como se fosse pura e espontânea manifestação do seu boi. E “tudo é Garantido”, ou seja, tudo o que ele incorpora e divulga além da paixão pelo boi-bumbá. Neste contexto, aproveita-se da manifestação de milhares de pessoas para fazê-las absorver junto com sua arte, seu folclore, doses de um ideário político. Descaracteriza-se a verdadeira expressão espontânea popular para usá-la como um instrumento de divulgação das idéias de um grupo a serem absorvidas através da cor, da voz, do batuque, do canto, enfim, da festa. O boi-bumbá passa então a ser um ordenador social, que, em última instância, será o provedor dos destinos. Nessa leitura, agiganta-se, faz-se onipresente, necessário, confunde-se com a própria sociedade abrangente, pereniza-se. Se for essa a finalidade, está patente o envolvimento do bumbá com a necessidade humana de se apoiar em uma explicação para sua realidade, de diretrizes que façam a existência ganhar sentido, ainda que com isso, desvirtue-se, transfigure-se de seu sentido primeiro. Rubens Alves (1996, p 211), lembra-nos que Durkheim compara o sagrado ao social: De maneira geral, não há dúvida que a sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos, pela simples ação que exerce sobre eles, a sensação do divino, pois ela é para seus membros o que Deus é para os fiéis. Com efeito, um deus é, antes de tudo, um ser que o homem concebe, sob certos aspectos, como superior a si mesmo e do qual acredita depender. (...) Por ter uma natureza que lhe é própria, diferente da nossa natureza de indivíduo, ela persegue fins que lhes são igualmente específicos, mas, como não pode atingi-los, a não ser por intermédio de nós, reclama imperiosamente nossa colaboração. (...) É assim que a todo instante somos obrigados a sujeitar-nos a regras de conduta e de pensamento que não fizemos e nem quisemos, e que, inclusive, são às vezes contrárias a nossas inclinações e a nossos instintos fundamentais. A explicação sobrenatural para os fatos da vida está presente desde sua origem em que as explicações ou justificações estão carregadas do mistério religioso: Se eu tiver a graça de ficar curado desta doença, enquanto eu vida tiver, todos os anos, no dia 24 de junho, o seu dia (São João), eu mandarei rezar uma ladainha em seu louvor. E tem mais, meu glorioso santo. Eu vou festejá-lo, vou botar um boi em sua homenagem! E concluiu: – Eu lhe garanto!... (Dé Monteverde, O Boi de Lindolfo, 2004 - Fala atribuída a Lindolfo Monteverde, fundador do Boi Garantido, o boi da promessa) Há, na literatura, inúmeras tentativas de se analisar a presença do boi na história e sua relação sempre próxima ao divino. Todas elas nos mostram cada vez com mais clareza a tentativa de uniformar num elemento da realidade concreta categorias que, tomadas isoladamente, nos deixariam bem mais claro e compreensível mundos aparentemente díspares: o sagrado e o profano. Desde os judeus, fugindo do Egito, que adotaram o bezerro de ouro ao pé do Sinai, ao egípicio Ápis até a contemporânea Índia, sempre há referência à espécie, da qual lancem mão para ilustrar a predisposição humana de transformar ou de vislumbrar manifestações divinas a fim de amenizar ou aceitar as vicissitudes da vida. Embora o bezerro de ouro dos judeus tenha sido tomado como antítese do sagrado, na visão do cronista cristão, serve-nos para ilustrar a proposta de Rubens Alves (1996), para quem divino não são só deuses e espíritos, mas tudo o que é adorado e se desprende do utilitarismo descartável. A função da religião é controlar os impulsos animalescos do homem e conformar seu proceder ao convívio em sociedade. Sem o princípio norteador da religião, tudo teria o caráter profano e, portanto, utilitário. O que não se enquadrasse nesta categoria poderia ser sumariamente descartado. Então, segundo Alves (1984), como é mais prático desfazer-se de um medicamento com prazo de validade vencido, se não houvesse religião, poder-se-ia “matar os velhos, castrar os portadores de deficiências, deixar morrer as crianças defeituosas, abortar as gravidezes indesejadas, fazer desaparecer os adversários políticos, fuzilar os criminosos e possíveis criminosos”. Mas isto não ocorre porque o homem sente necessidade de se submeter a algo superior, terrível, poderoso, a que recorre em busca de amparo, de ajuda, de forças. Durkheim analisa esta necessidade humana e vê na sociedade a saciedade de todas essas buscas. Em última instância, a sociedade seria a religião, uma vez que é nela que o homem encontra tudo o que procura, desde a proteção até a conformação de seus instintos sob pena de punição. É na vida social que o ser humano se encontra, é a sociedade que o limita, é da vida em sociedade que ele precisa, é a sociedade que o controla e é a ela que ele teme. Seria, então, a sociedade a satisfação concreta e, ao mesmo tempo, abstrata da ânsia humana pelo religioso? Sendo assim, a busca de sua representação em aspectos cotidianos corrobora esta visão. O boi-bumbá onipresente na vida do parintinense seria uma manifestação concreta desta busca. Esta manifestação folclórica ganhou conformação tal que nos últimos anos extrapolou a preocupação pura da brincadeira de rua. O boi aventurou-se pelo social, buscou efetivar projetos educacionais, manifestando clara preocupação com o comportamento social de seus membros. Escolas de arte proliferaram. Empregos foram oferecidos a professores e administrativos, oportunidades surgiram para crianças e jovens. E esta presença deixou de ser apenas sazonal e passou a buscar uma disciplina social durante todo o ano. O boi, então, como na leitura de Durkheim, amalgama-se à sociedade, confunde-se com seus ideais, deixa sua origem lúdica e passa a coisa séria, profissionaliza-se. A partir desta visão, é a própria representação do social, conformando seus membros a modelos universalmente aceitos. O boi, não só o idolatrado, o que desperta paixões, mas também o boi-social, como se autodenominou, é agora a sociedade, e, na interpretação de Durkheim, a sociedade é a religião. O boi ganha então o caráter dual: utilitário e efêmero pela sua ação social, pela sua característica secular e profana; perene por se fazer onipresente, idolatrado, necessário, ordenador do caos. Estas leituras da sociedade e da religião só fortalecem o caráter indispensável e sempre presente da manifestação religiosa, seja ela qual for. A convivência cotidiana de sentimentos aparentemente tão diferentes fica muito mais clara durante os meses de junho e julho em Parintins. Estes meses são pródigos em nos presentear com as mesmas tensões barrocas que povoaram a alma do homem pós-contra-reforma, no século XVI. Se levarmos em conta a origem do Festival Folclórico, em 1965, não podemos deixar de fora a participação religiosa, através da JAC – Juventude Alegre Católica, grupo de jovens que se reuniam onde hoje é o Shoping Catedral. Oficialmente partiu deles, com a orientação de Padre Augusto Gianolla – padre do PIME (Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras) a idéia de unir todas as manifestações folclóricas da cidade num só local. Basílio Tenório, no inédito “A história do Boi Bumbá de Parintins” nos revela: E para onde seria canalizado o liquido do faturamento? – Ora, se a juta iria bancar os eventos, que seriam estrondosos, sabia-se de antemão que haveria muito dinheiro circulando isso porque haveria competição entre os grupos folclóricos. A questão foi parar entre os demais movimentos católicos da Paróquia, que a definiu: para ajudar na construção da Catedral de Nossa Senhora do Carmo. (Basílio Tenório – A História do Boi Bumba de Parintins) Ainda segundo este pesquisador parintinense, o mérito da criação do Festival só ficou com a JAC porque Dom Arcângelo não queria envolver a Igreja com tais manifestações profanas, ainda mais conflitando com os festejos de Nossa Senhora do Carmo. Se isto se confirma, o festival desde suas origens já carrega consigo o encontro, embora velado, do profano e do sagrado. Este procedimento é próprio do barroquismo. No século XVI, tempo de perseguição aos infiéis, aos hereges, tempo da Santa Inquisição, dos cristãos novos, as artes refletiram a tensão conflituosa entre posições antitéticas: gozar das conquistas do Renascimento ou abdicar de tudo e mergulhar num retrocesso em que imperava um medievalismo religioso já na Idade Moderna... No século XX, em plena selva amazônica, um festival profano, idealizado pela igreja, com rendas revertidas para a construção da catedral de Nossa Senhora do Carmo, não deveria parecer aos olhos da população como tal. E a história registra como mentores os jovens da JAC. Paralela à dimensão religiosa durkheiniana do boi-bumbá há outra, a terrena, a utilitária, a efêmera, como analisa Alves. É inegável a dimensão que ganhou o Festival Folclórico São inegáveis também os problemas daí oriundos. Tornou-se principalmente um festival da carne, em que se homenageiam os prazeres terrenos, como o sexo, o álcool, as drogas, numa verdadeira festa dionisíaca. São três dias em que se derramam na cidade turistas e autóctones ávidos pela saciedade dos impulsos. Parintins tornou-se sinônimo de leito do heitarismo, como diria o poeta pré-moderno Augusto dos Anjos: Este lugar, moços do mundo, vede: É o grande bebedouro coletivo, Onde os bandalhos, como um gado vivo, Todas as noites vêm matar a sede! (EU, 1912) O Barroco é, ao mesmo tempo, místico e sensual, religioso e erótico, espiritual e carnal. Em todas as manifestações barrocas houve esse eixo dualista governando a vida. Dos conflitos entre o homem e o mundo surge um estilo irregular: para traduzi-lo usaram-se artifícios da linguagem figurada - antíteses, metáforas, sinestesias, hipérboles. O barroquismo do boi- bumbá de Parintins pode ser percebido mais explicitamente pela interpenetração de temas religiosos presentes nas toadas cantadas na arena do bumbódromo, enquanto as coreografias apresentadas fazem clara alusão à sexualidade latente nos corpos seminus. Parece-nos que o poeta tenta redimir-se diante de tão explícita apologia aos prazeres mundanos. Minha Santa, paz e amor Nossa Senhora, proteção de Parintins, Boi Garantido, numa forma de oração, Pela fé e gratidão, lhe traz rosas e jasmins, Salve o caboclo, guerreiro parintintin Valente tupinambá Que protege seus jardins... (Chico da Silva) O Barroco foi um estilo de época que mais pregou a ênfase do efêmero. O modo barroco de ver o universo dá ênfase à constante mudança das coisas no mundo - e daí à face efêmera das coisas. Nesse sentido, o mundo é visto como algo instável, sujeito a metamorfoses e inconstâncias. A idéia da beleza como algo que termina está intimamente ligada a essa ênfase sobre a brevidade das coisas. Seria este o espírito que impregna aqueles que se propõem aproveitar os três dias de festa folclórica? Nestas ocasiões, dá-se com sofreguidão à matéria, como se o amanhã não importasse. A vida deve ser vivida intensamente nos três dias de festa. O que nos faz lembrar Gregório de Matos: Gozai, gozai da flor da formosura, Antes que o frio da madura idade Tronco deixe despido, o que é verdura. Que passado o Zenith da mocidade, Sem a noite encontrar da sepultura, É cada dia ocaso da beldade. (Gregório de Matos) Ou ainda, num outro poema: Goza, goza da flor da mocidade, Que o tempo trota a toda ligeireza, E imprime em toda flor sua pisada. Oh, não aguardes que a madura idade Te converta essa flor, essa beleza Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada. (Gregório de Matos) Passado o mês de junho, advêm manifestações de uma religiosidade atormentada, muito própria do espírito em conflito do homem barroco: a festa de Nossa Senhora do Carmo, padroeira de Parintins. O boi-bumbá, agora sem a fantasia, representado por brincantes, artistas, dirigentes e todos aqueles que se entregaram ao êxtase da festa mundana, são responsáveis pela efusão de religiosidade que toma conta de todos. Parece-nos que querem redimir-se dos insondáveis e inconfessáveis excessos cometidos durante o festival, por culpa do boi bumbá, de sua batida cadenciada, que faz mexer os corpos, que os embala nas coreografias sensuais... Mas agora tudo é passado, e a cidade mergulha num afã religioso, num fervor contrito, e todos se prostram diante da santa, como o poeta barroco prostrado “A Nosso Senhor Jesus Cristo com atos de arrependimento e suspiros de amor”: Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade, É verdade, Meu Deus, que hei delinqüido, Delinqüido vos tenho, e ofendido, Ofendido vos tem minha maldade. (...) Arrependido estou de coração, De coração vos busco, daí-me abraços, Abraços, que me rendem vossa luz. Luz que claro me mostra a salvação, A salvação pretendo em tais abraços, Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus. (Gregório de Matos) Na verdade, o Festival Folclórico não termina de fato no dia 30 de junho. Ele prolonga-se até dia 16 de julho, quando todos já reconheceram sua fraqueza e certamente prometeram não reincidir. Tentam subornar a Santa – outra demonstração da interpenetração de valores terrenos e celestes - com andores feitos com sobras dos QGs, como são chamados os galpões em que se constroem as alegorias, em que se vislumbram profusão de figuras remanescentes das apresentações do bumbódromo, nem sempre coerentes com o momento religioso a que servem naquele momento. A procissão barroca espalha-se pelas ruas da cidade, num claro reconhecimento do pecado em busca de perdão, jurando o mais sincero arrependimento. Artistas e a direção dos bumbás se responsabilizam pela ornamentação da praça e do interior da catedral e todos posam de fervorosos diante do altar, prostram-se, eximindo-se da culpa por gostarem tanto de boi. E todos, inclusive os medalhões da cidade, recorrem à festa da religiosa para dirimir-se de tão vultoso erro e buscar sua reparação. Mas, diante da repetição destas cenas, certamente o que se passa na cabeça de todos é o conteúdo conceptista de outro poema de Gregório de Matos, em que o pecador reconhece o pecado, pede perdão, mas praticamente inquire Deus a perdoá-lo, pois um precisa do outro, ou seja, como pecador precisa de Deus para perdoá-lo, e Deus precisa do pecador para se afirmar como Deus glorioso. Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, De vossa piedade me despido, Porque quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. (...) Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. (Gregório de Matos) Mas isso é só enquanto se preparam para quando junho chegar de novo, e aí será outro Festival, e o boi não pode esperar, o boi é muito importante, é sagrado...