RESUMO

Apresenta algumas reflexões acerca de heranças do sistema escravista. Analisa-se o movimento do bacharelismo liberal que marca o “Brasil jurídico” desde meados do século XIX. A partir das primeiras escolas de ensino superior, aborda-se a figura dos bacharéis em direito como transmissores de uma cultura estrangeira. Resgata-se a distância entre o Brasil legal e o Brasil real, dando ênfase ao problema da desigualdade social. Defende-se o direito alternativo como um meio conducente para a amenização da disparidade entre ricos e pobres na realidade jurídica nacional.

 INTRODUÇÃO

A formação do bacharel em Direito no Brasil é vista como um reflexo da cultura jurídica nacional. Logo, para que se entenda o Direito atual é fundamental que se faça uma análise histórica do mesmo.

As primeiras escolas de ensino superior do país surgiram no período imperial contribuindo para disseminação da ideologia liberalista, que se fundamenta na idéia de uma individualidade e proteção dos direitos humanos. Entretanto, essa época é marcada pelo sistema escravista. Assim, a escravidão e o liberalismo “caminharam juntos” por um longo período da história brasileira. De fato, é possível imaginar uma aliança entre escravidão e liberalismo? Ou trata-se de um “liberalismo às avessas”?

Muitos são os fatores históricos do Brasil que refletem na sociedade contemporânea. Apesar de ser, atualmente, um Estado democrático de direito, as liberdades individuais são garantidas a todos os cidadãos do país? As normas jurídicas são aplicadas a todos de maneira igualitária? Somente a partir da análise da cultura jurídica nacional é possível encontrar respostas para tais questionamentos.

 1 A DESIGUALDADE SOCIAL E O BACHARELISMO LIBERAL

 A colonização brasileira foi um processo marcado pela exploração de terras, devastação ambiental, destruição da cultura indígena aqui existente e a transformação dos mesmos em escravos, portanto trata-se de um período impregnado de injustiças. Para garantir a posse do território brasileiro, Portugal, durante a colonização, implantou a produção açucareira no país.

Juntamente a nova atividade econômica, os colonos implantaram no Brasil a escravidão africana. A mistura do trabalho escravo e o capitalismo mercantil criaram uma sociedade peculiar. Pois, apesar de existir um pouco de agricultura de subsistência, um pouco de comércio e um pouco de acumulação e prosperidade na Bahia, Recife e Rio de Janeiro, não houve acumulação capitalista na colônia.

Assim, no modo de produção escravista, as relações de produção eram relações de domínio e de sujeição. Um pequeno número de senhores exploravam a massa de escravos. Segundo Elusa Atche:

É preciso, portanto, aprender com a história. O sistema escravista considerou os africanos apenas como instrumentos para se alcançar determinados objetivos políticos e econômicos, sendo que as conseqüências desse posicionamento são perceptíveis na sociedade brasileira atual. Sob a ótica do ideário humanista, nada justifica a instrumentalização ou a “coisificação” do homem, qualquer que seja a sua cor, cultura ou origem[1].

Assim, o fim do período colonial acontece com a proclamação da independência do Brasil. Tal independência foi o produto de um processo liderado, principalmente, pelos grupos que mais se beneficiariam com a ruptura dos laços coloniais: os grandes proprietários de terra e os grandes comerciantes. A preservação da liberdade de comércio e da autonomia administrativa do país eram os principais objetivos da separação política. Contudo, a situação da maioria populacional não alterou, a escravidão africana foi mantida e a maior parte das pessoas não tinha motivo para comemorações.

Desejava-se organizar um Estado sem colocar em risco o domínio econômico e social. Os grandes proprietários de terra, ou seja, a parcela rica da sociedade estava interessada em manter a estrutura de produção baseada no trabalho escravo, destinado à exportação de produtos tropicais para o mercado europeu. A aparência liberal construída pela elite ocultava a miséria e a escravidão da maioria da população brasileira.  

Decorrente do processo de industrialização, a ideologia do liberalismo econômico marcou a história do Brasil durante o sistema escravista. Trata-se de um liberalismo às avessas. Uma vez que os liberais pregavam uma sociedade mais livre, justa e sem a exploração do trabalho não se pode traçar um paralelo entre esses ideais e a escravidão. Trata-se de uma comparação incoerente.

Nesse cenário surgem as primeiras escolas de ensino superior no país, especificamente as escolas de direito na qual foram destinadas a assumir funções peculiares: promover a ideologia político-jurídica do liberalismo como algo capaz de defender e integrar a sociedade; depois deveria ar efetivação institucional ao liberalismo. Esses ideais liberais pretendiam legitimar e assegurar os privilégios da elite social.[2]

As primeiras faculdades de Direito, inspiradas em pressupostos formais de modelos alienígenas (particularmente das diretrizes e estatutos de Coimbra), contribuíram para elaborar um pensamento jurídico ilustrado, cosmopolita e literário, bem distante dos anseios de uma sociedade agrária da qual grade parte da população encontrava-se excluída e marginalizada. Pela importância que essas duas escolas (Recife e São Paulo) exerceram como redutos encarregados de formar atores jurídicos.[3]

 Essas escolas de ensino jurídico baseadas na realidade estrangeira, não atingiam todos os membros da sociedade, a começar pela linguagem. Entretanto, esse problema não é característico apenas do passado. Na contemporaneidade, a população menos favorecida, ou seja, a maior parcela social brasileira, ainda não possui acesso às normas que as regulam, uma vez que a própria linguagem empregada na Constituição Federal e códigos não são entendidos pelo povo. Assim, os bacharéis em Direito continuam a dominar o campo jurídico, que ainda é distante dos pobres e miseráveis. Portanto “entende-se por bacharelismo a situação caracterizada pela predominância de bacharéis na vida política e cultural do país” [4] que servem único exclusivamente para propagar e defender os interesses da classe a qual pertencem.

 1.1 A figura dos bacharéis em direito na cultura jurídica brasileira

 A origem desses novos operadores do Direito deixa a cultura jurídica nacional com um novo perfil, já que grande parte desses bacharéis trazia consigo novas ideais de organização social. Porem o que se verifica é que não houve, nem poderia haver a conformação do Estado, efetivamente, a essas novas idéias[5]. De início, para ingressar na carreira jurídica, essas pessoas tinham que ser advindas de uma boa família, e conseqüentemente ser graduado na Universidade de Coimbra[6].

Portanto a organização social e política de Portugal era extremamente diferente da brasileira. A formação desses bacharéis deveria ser adequada à realidade a qual iriam trabalhar e exercer suas funções, porém a situação era totalmente contrária. Esses operadores ao retornar ao Brasil aplicavam o Direito aprendido e desenvolvido na Europa, logo era um Direito inválido à realidade brasileira, já que as situações aqui existentes eram diferentes das de lá. Percebe-se que os bacharéis e toda a organização jurídica do Brasil colonial revelam lealdade e obediência a Coroa Portuguesa[7], deixando e se distanciando a realidade a qual estavam inseridos. Essa discrepância foi uma das principais influencias que marcou o distanciamento entre os graduados e os demais integrantes da sociedade.

Os bacharéis em Direito do Brasil, apesar de serem profissionais de uma ciência social, não atingem a maioria populacional. O novo sistema trouxe consigo a perpetuação da classe dominante e a acentuação da disparidade entre as classes já quem em um país de analfabetos e semi-analfabetos, os letrados estão em vantagem. Os representantes jurídicos do Estado nada fazem para amenizar a disparidade do nível intelectual que existe entre as classes sociais. Poucos são os que “descem” do patamar superior e tentam chegar à parcela menos favorecida da sociedade. Exercendo características desvinculadas da maior parcela da sociedade.

Há de se fazer menção ao perfil dos bacharéis de Direito mediante alguns traços particulares e inconfundíveis. Ninguém melhor do que eles para usar e abusar do uso incontinente do palavreado pomposo, sofisticado e ritualístico. Não se pode deixar de chamar a atenção para o divórcio entre os reclamos mais imediatos das camadas populares do campo e das cidades e o proselitismo acrítico dos profissionais da lei que, valendo-se de um intelectualismo alienígeno, inspirado em princípios advindos da cultura inglesa, francesa ou alemã, ocultavam, sob o manto da neutralidade e da moderação política, a inconstitucionalidade de um espaço marcado por privilégios econômicos e profundas desigualdades sociais.[8]

 Essa organização foi estabelecida no Brasil imperial e excluiu toda uma estrutura já existe, na qual tinha a fundamentação em um direito indígena e africano[9] aplicando, portanto um saber jurídico desvirtuado do cenário existente.

 2 A DISTÂNCIA ENTRE O BRASIL LEGAL E O BRASIL REAL

 Como já mencionado nos tópicos acima, o desvirtuamento entre a realidade fática e o poder judiciário nacional era tamanho. Coisa tal que transformava o Direito em algo não adaptável a realidade e a seus verdadeiros conflitos. A dinamicidade jurídica não tinha nenhuma relação com a aplicação das normas. Portanto com isso fica bem claro que o distanciamento entre o Brasil real e o Brasil legal se fundamenta na idéia de se ter trago uma organização jurídica estrangeira para uma realidade totalmente diferente.

Essa retrospectiva nos mostra que até hoje os bacharéis se revelam não só hábeis servidores do ritualizado Direito do Estado, mais defensores do poder de grandes proprietários, como também talentosos reprodutores de uma legalidade estreita, fechada e artificial.[10]

Percebe-se, assim, uma tradição advocatícia desvinculada de atitudes mais comprometidas com a vida cotidiana e com uma sociedade em constante transformação. A postura técnica e casuística fecha-se frente ao dinamismo dos fatos e resiste a um direcionamento criativo, não conseguindo mais responder a novas e emergentes necessidades.[11]

 Mediante tal problema é necessário se repensar o exercício da pratica jurídica, tendo em conta uma nova lógica ético-racional, capaz de tornar o direito em um fruto de um processo histórico e social, que transpasse os interesses apenas da classe mais favorecida e tenha suas bases nas lutas sociais e interesses emergentes de toda sociedade.[12] Essa transformação já teve seu inicio com um movimento denominado Direito Alternativo que busca unir classe jurídica com a classe social, ou seja, fazer com que os “excluídos” tenha capacidade de participar da estrutura do judiciário nacional.

No âmbito da magistratura existem grupos e algumas atuações individuais que vêm assumindo postura progressista. Utilizando-se de interpretação mais política e sociológica, sobretudo não dogmática, desvinculada de formalismos, esses magistrados buscam resistir às leis injustas, explorando as ambigüidades e as omissões do Direito positivo oficial em causa dos menos favorecidos. Sem dúvida, pelo seu pioneirismo e impacto causado, o grupo dos juízes alternativos do Rio Grande do Sul é o movimento brasileiro de maior destaque na construção de uma justiça social igualitária e de um Direito “novo”.[13]

 A busca por uma justiça mais igualitária é o objetivo desse movimento que tenta com grande esforço aumentar a relação entre o mundo jurídico e o mundo social. Que na teoria sempre estiveram ligados, tornando-se um complemento do outro, porém na prática como demonstrado à realidade era e é bem diferente. A relação entre o judiciário e os menos favorecidos a partir do movimento alternativo toma um novo perfil. Como diz Wolkmer,

 “O Direito alternativo em relação à maioria dos movimentos críticos anteriores inova. Ele faz uma opção pelos pobres – uma opção prática e não apenas teórica como se via anteriormente. Sua proposta se desloca do acadêmico para rua.” [14]

 Portanto esse Direito é utilizado como instrumento de emancipação dos menos favorecidos e injustiçados[15] e tem como objetivo a construção de uma sociedade mais socialista e democrática. Esse Direito alternativo se mostra como uma maneira de amenizar a distância entre o Brasil real e o Brasil legal, que marca a história jurídica brasileira desde seu início. A união dessas duas realidades contribuiria para a formação de um Direito mais firme, sólido e social, já que teria os seus alicerces na realidade e cultura de um povo e não em uma minoria mais favorecida.

 CONCLUSÃO

 Analisar o bacharelismo liberal no período colonial é de certa forma entender a atual situação do sistema jurídico nacional. Essa discrepância entre uma elite formada e uma parte da sociedade analfabeta marcou e continua marcando toda a estrutura legal do Estado. As vantagens que os “bacharéis” possuem facilitam que os mesmos ao aplicarem o Direito, defendam apenas interesses de sua classe, deixando a margem toda uma grande parcela da sociedade, que por sua vez não tem conhecimento e nem autonomia pra lutar por seus direitos.

A análise histórica serve para se observar a distância entre classes sociais. Mostra-se o Direito Alternativo como uma possível solução desse trágico cenário, e como uma forma de se unir toda a sociedade em busca de um Direito como fruto da mesma, garantindo uma firmeza e solidez à ciência dita social.

 REFERÊNCIAS

ATCHE, Elusa Cristina Costa Silveira. Humanismo no direito de resistência dos negros escravos no Brasil do século XXI. In: Humanismo e cultura jurídica no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003.

WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 4ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de história do direito. 4.ed. 2. Tir. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4ªed. São Paulo: Saraiva, 2002.



[1] ATCHE, Elusa Cristina Costa Silveira. Humanismo no direito de resistência dos negros escravos no Brasil do século XXI. In: Humanismo e cultura jurídica no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003, p.139.

[2] WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 4ªed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.101.

[3] Ibidem.

[4] WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de história do direito. 4.ed. 2. Tir Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 378.

[5]  Ibid. p. 380.

[6] WOLKMER, Antônio Carlos. Op.cit. p.81.

[7] WOLKMER, Antônio Carlos. Op.cit. p.79.

[8] WOLKMER, Antônio Carlos. Op.cit.p.85.

[9] WOLKMER, Antônio Carlos. Op.cit.p.89.

[10] WOLKMER, Antônio Carlos. Op.cit.p.131.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13]WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4ªed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.137.

[14] Ibid. p.141.

[15] Ibid. p.144.