1. Introdução

Esse ensaio visa incitar uma breve discussão acerca dos partidos políticos do Brasil e da evolução do sistema partidário do país, em especial após a Constituição de 1988.

Tal tema é fundamental para tentar explicar o engano que os apocalípticos de 88 cometeram ao afirmarem que, depois da Constituição daquele ano, o Brasil se tornaria um país ingovernável. Apesar de todos os problemas pelos quais passamos, sabemos que esse prognóstico não se confirmou. Presidentes se sucederam uns após os outros e, mesmo no meio de escândalos de corrupção e impeachment, o país vem, sim, se mostrando governável e governado.

A reforma política, entretanto, mantém-se em pauta. Será ela realmente necessária? Para responder essa e outras perguntas, recorreremos a autores como Carlos Ranulfo Melo, Bernard Manin, Giovanni Sartori e outros, com ênfase para o primeiro.

2 . O sistema partidário brasileiro para Carlos Ranulfo Melo

Não à toa o pensador e Cientista Político Carlos Ranulfo Melo estrela o título desse item. Em seu texto "Nem tanto ao mar nem tanto a terra: elementos para uma análise do sistema partidário brasileiro"[1], o autor faz uma análise detalhada sobre o tema, do qual nos caberá apenas algumas pinceladas.

Melo parte do princípio de que o Brasil, ao contrário da Europa ou mesmo de nações como Chile, Uruguai e Cosa Rica, não possuiu partidos ditos fortes, aparelhos maquinais espalhados e bem solidificados no país, ou seja, partidos com a capacidade de canalizar os anseios e descontentamentos de uma sociedade.

O Brasil jamais experimentou uma "democracia de partido".[2] A representação de interesses e os protestos sociais, durante os cento e vinte primeiros anos como nação, pós-período colonial (1822-1945), de acordo com Melo, impediram que conflitos da massa se transformassem em sistemas partidários, uma vez que a maioria da população não possuía legitimidade para participar da vida política.

Na verdade, esse período delimitado de cento e vinte anos é até uma visão otimista do passado. Em 45, inaugurou-se a democracia no Brasil, mas a grande parcela da população era analfabeta e não podia votar. Para piorar a situação, como sabemos, menos de vinte anos depois houve o golpe ditatorial militar.

Melo excetua apenas o PT em sua constatação de que nunca houve partidos de massa no Brasil:

Por essa razão, e exceção parcial feita ao PT, o Brasil nunca registrou a existência de partidos de massa. Suas organizações partidárias, na maioria das vezes criadas de cima para baixo, lançaram-se ao mercado político com precário lastro social. Moldaram-se, como diria Kirchheimer (1966)[3], enquanto organizações capazes de oferecer apenas uma participação limitada, sendo menos afeitas à função expressiva ou integrativa. A ausência de momentos fundacionais fortes fez com que a tendência ao discurso genérico não conhecesse limites, ao mesmo tempo em que a capacidade de obter a lealdade de parcelas do eleitorado, de formar preferências ou mobilizar setores sociais em torno de bandeiras concretas, sempre se mostrasse diminuta.[4]

Hoje, vivenciamos o multipartidarismo, característico de ambos os períodos democráticos do Brasil. Esse é um fator importante para configurar as múltiplas facetas de nossa sociedade, esquecido e combatido durante os períodos militares.

A Constituição de 80, por si só, não explica esse fenômeno, uma vez que, quanto às eleições para os órgãos legislativos, a continuidade entre os dois períodos citados é explícita. Segundo Sartori, "não é apenas o arranjo institucional que exerce influência sobre a maneira como o eleitor vota, mas também o grau de estruturação do sistema partidário". [5]

Melo explica ainda que, "como os principais partidos nacionais não são os maiores em todas as unidades da federação, a competição eleitoral assume formatos distintos de um estado para outro", sendo, assim, o resultado do somatório das inúmeras competições entre os estados, o que define a composição do sistema partidário no Congresso. Trata-se, então, de um "sistema dotado de espaço não apenas para a proliferação de pequenas siglas, mas para o desenvolvimento de organizações de porte médio as quais, aproveitando-se de elevada magnitude de vários dos distritos", alcançam a "Câmara com um número de deputados que lhes permite adquirir relevância no processo decisório. O impacto do federalismo pode ser avaliado de forma mais direta no Senado onde, apesar da adoção do sistema majoritário", a fragmentação é relevante. Mostra Melo que entre 1990 e 2006 o número efetivo de partidos assumiu um valor médio de 5,8. "A explicação para tal valor encontra-se na ausência de partidos capazes de fazer valer sua força em todo o território nacional e na conseqüente existência de sistemas competitivos diferenciados". [6]

Melo defende que o sistema partidário atual do Brasil passou por três fases, nos anos recentes (a partir de 1982). A primeira fase é a do bipartidarismo, com PDS e PMDB surgindo em 1982, aproveitando o antigo sistema com ARENA e MDB, a legislação eleitoral do momento e a legitimidade adquirida ao longo da ditadura militar. Em 1985, porém, inicia-se a segunda fase, com o surgimento de uma terceira força: tratava-se do PFL (Partido da Frente Liberal, atual DEM). Em 1988, os membros do PMDB adeptos do parlamentarismo criaram o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) e, em 1990, já na terceira fase, o prefixo multi nunca fez tanto sentido em "multipartidarismo". Os dois principais partidos que serviam de apoio para o governo haviam perdido força – perdendo, inclusive, 40% das cadeiras na Câmara – e vários outros medianos foram gradativamente conseguindo espaço. Tivemos o surgimento, então, do PTR (Partido Trabalhista Renovador), PP (Partido Popular), PRN (Partido da Reconstrução Nacional) e PDC (Partido Democrático Cristão), dentre outros, que, assim como os citados, estavam fadados ao desaparecimento.

Em 1994, o atual sistema partidário brasileiro já estava desenhado. Quatro partidos demonstravam mais força: o PMDB, o PSDB, o PFL e, por último, o PT (Partido dos Trabalhadores), atualmente no poder com Lula na presidência da República, em duas vitórias consecutivas, provocando até mesmo um enfraquecimento das bancadas dos outros três partidos.

A chave para se entender a evolução do sistema partidário nos anos 90 está na seqüência das eleições presidenciais. Ao contrário do que vem acontecendo em países como Venezuela, Peru, Equador, Bolívia, Colômbia, no Brasil têm sido os partidos, e não movimentos criados em torno de candidatos, os atores responsáveis pela condução do processo sucessório para a Presidência da República. Dessa forma, a dinâmica presidencial vem gerando um efeito estruturante sobre o sistema partidário. Com exceção da eleição de 1989, quando 21 partidos lançaram nomes à disputa e o número efetivo de candidatos chegou a 5,7, nas quatro disputas seguintes, o pleito foi polarizado por dois blocos, à frente dos quais se destacavam o PT e o PSDB. O número efetivo de candidatos caiu para 2,7 (valor médio para as quatro eleições) e os dois partidos se firmaram como alternativas de polices perante o eleitorado nacional, aumentando sua presença nos órgãos representativos e equiparando-se ao PMDB e ao PFL.[7]

Hoje em dia, o sistema de eleições, em especial as presidenciais, no Brasil, gira em torno de dois grandes partidos. O primeiro é o PT, que nutre as esperanças da ala esquerdista. O outro é o PSDB, ocasionalmente com alianças com o DEM, representante centro-direitista do país. Às vezes, surge ainda o PMDB como terceira força.

Quando se fala em alianças entre PMDB e DEM, devem-se citar o apoio conjunto a Itamar Franco na sucessão de Fernando Collor, a constituição majoritária do núcleo do governo de Fernando Henrique e as oposições declaradas a Lula. Quando, em 2002, o DEM lançou a candidatura de Roseana Sarney à presidência do Brasil, a aliança foi abalada, mas logo se restabeleceu, no ano seguinte.

O caso do "mensalão" e as denúncias de corrupção no governo Lula abalaram um pouco a proximidade do PT com outros partidos de esquerda e provocaram até alguns "rachas" no partido, como bem exemplifica a posterior criação do PSOL. Ainda assim, PSDB e DEM, como já mencionado, perderam a força nesses anos de Lula no poder.

3. Considerações finais

Como vimos, o atual sistema político brasileiro é multipartidário, ao contrário do que acontece em outros países democráticos, como os Estados Unidos, símbolo da democracia, onde praticamente só existem os partidos Democrata e Republicano. É verdade que, a nível presidencial, as eleições no Brasil ainda são muito centralizadas nas mãos de dois grandes partidos, como já dito, mas a simples existência de outros, com possibilidades de coalizões e reconsiderações por parte do eleitor já tornam o processo mais válido e democrático.

No meio de tudo isso, há as propostas de reforma política. Para isso, porém, devemos ter em mente que só aos fora do poder ela interessa, uma vez que aqueles que possuem um cargo político temeriam perdê-lo (ou melhor: perder alguma vantagem dele), em decorrência de tais reformas. A única reforma considerável feita até hoje foi a possibilidade de reeleição presidencial, o que, obviamente, interessa à pessoa no poder (o presidente). Ao Executivo, ainda, não interessa de imediato a reforma política, uma vez que ele considera haver outras prioridades.

Há quem pensa que esse número excessivo de partidos no Brasil é prejudicial, o que nos parece verdade apenas em parte. Haver muitos partidos com o mesmo ideal (comunista, trabalhista ou liberal, por exemplo) é ruim, uma vez que não se forma uma identidade forte naquele pensamento. Mas crer que a estabilidade da democracia brasileira está ameaçada pelo multipartidarismo nos parece exagerado e é essa a principal bandeira vigente da reforma política.

Por fim, há várias outras propostas políticas para reforma, mas é impossível debater todas nessas linhas. Com as análises que as quatro páginas anteriores à conclusão fizeram, cada leitor poderá pensar de seu modo a respeito das reformas. Mas encerra-se esse trabalho com a reflexão de que as mudanças só serão bem-vindas se partirem da base. Reforma política feita por políticos é irrazoável por si só, se não contar com a opinião pública.

4. Bibliografia

MANIN, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29.

MELO, Carlos Ranulfo e Alcântara, Manuel, A Democracia Brasileira:

balanço e perspectivas para o século 21, Ed. UFMG, 2007.

KIRCHHEIMER, Otto. The Transformation of the Western Party Systems, in La

PALOMBARA and WEINER (orgs), Political Parties and Political Development. Princeton University Press, 1966.

SARTORI, Giovanni. Engenharia Constitucional. Brasília, UNB, 1996,



[1] Texto publicado em MELO, Carlos Ranulfo e Alcântara, Manuel, A Democracia Brasileira:

balanço e perspectivas para o século 21, Ed. UFMG, 2007.

[2] Expressão retirada de MANIN, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, pp. 5-34, 1995.

[3] MELO refere-se a KIRCHHEIMER, Otto. The Transformation of the Western Party Sistems, in La

PALOMBARA and WEINER (orgs), Political Parties and Political Development. Princeton University Press, 1966.

[4] MELO, Carlos Ranulfo. Obra citada.

[5] SARTORI, Giovanni. Engenharia Constitucional. Brasília, UNB, 1996, p.50-51.

[6] MELO, Carlos Ranulfo. Obra citada, p. 11.

[7] MELO, Carlos Ranulfo. Obra citada, p. 14.