Ser assaltado, correr risco de vida, ser alvejado, quase morrer, são situações perigosas que todos estamos sujeitos a qualquer momento. O que diferencia uma situação de outra é o inusitado. E o inusitado aconteceu: um momento de risco de vida, constrastou-se com o engraçado, com cômico, o irônico.
Era maio em Porto Alegre, noites escuras e frias. Estávamos terminando a construção da casa. Eu trabalhava em dois empregos, durante o dia no comércio local e outro a noite, na maravilhosa escala 12×24 que os sindicatos "conseguiram" acabar, em uma instituição hospitalar. Algumas noites, não havia necessidade de "virar" a noite, então trabalhávamos até a meia-noite. E foi em uma destas noites encurtadas que comecei a fazer parte da estatística da polícia.
Eu tinha 22 anos, colorado e era comunista, acreditava na J. Cony. "È, essa mesma, que ganha "uma grana" naquele grupo hospitalar federal". Ainda lembro do seu discurso: ".. não tem cabimento órgãos públicos pagarem altos salários para quem não faz nada em prol dos cidadãos ?". Viva a mudança ! Ridículo. Mas isso é "estelionato" e não assalto, fica para uma outra oportunidade.
Havíamos mudado a poucos meses e a chegada em casa durante a madrugada e era um pouco preocupante. Até o momento nunca acontecera qualquer problema. Pelo contrário, reinava a mais perfeita calma. Naquela terça-feira não era diferente. Olhei a escala e lá estava minha metade-noite de folga. Acenei aos que ficavam e fui em direção ao ponto de ônibus.
?
Desci do humilhante (ônibus coletivo) e comecei a caminhar rapidamente como sempre fazia. Geralmente eu caminhava pelo meio da rua com passos largos e olhar fixo para frente. Meu pai dizia que o andar rápido e em linha reta "dá coragem" e intimida quem olha.
No meio da quadra pude observar que alguém me seguiu com o corpo. Fiz que não vi e continuei caminhando.
De repente:
? Espera aí "ligeirinho" quero falá contigo! E isso é hora de bater papo. PQP vou ser assaltado, pensei. Vou me fazer de louco. Continuei andando.
- De boa, tô aparelhado. Se tu não pará, eu te paro ! Bem, pode ser solidão. Vai ver o cara está perdido atrás do poste. Não, não eu sei o que vai acontecer. Parei. Me senti como boi de matadouro.
Tira a "jaca e deixa uma grana no bolso dela".
Meu Deus, eu sabia. Não vou dar assunto, sem intimidades. Dei um passo para trás e comecei a retirar a minha jaqueta. Aconteceu muito rápido. Eu quase não ouvi os disparos. Foram três. Meu Deus, estou morto! Não pode ser, eu estou em pé, cadê o cara ? Sumiu correndo.
Eu tô legal, vou me mandar também. Comecei a caminhar desesperado. Já sei estou sonhando. Estranho, o lado direito está mais pesado! Passei a mão pelo corpo, PQP, tô ferido! Parei. Comecei a suar. É melhor pedir socorro.
É. É bom não fazer esforço, pode dar derrame interno (acho que vi isso na tevê ou li em algum lugar). Cadê o celular ? (Puts, ainda não existia. Só o pessoal da "Enterprise" têm os StaTtac, lembram?)
Socorro ? Socorro ? Eu fui assaltado! Na realidade nem tinha sido assaltado, o maluco saiu correndo.
Moro logo aqui "em cima". Nada!
No prédio em frente, nem as luzes ascenderam. Nas casas, somente os cães (os verdadeiros!) queriam me ajudar ! Voltei a andar ? Uma quadra e meia e eu estaria em casa. Vamos lá. Cheguei. Apertei a campanhia.
"A porta da garagem está aberta, só precisa empurrar"
Maria levei um tiro. Liga "pros" velhos para me levarem ao pronto-socorro. (Eco-Salva? Nem pensar, ainda não existia e parece que continua não existindo. Ah, mas a SAMU já existia, era da brigada. Acharam que era do PT? Não é não! Falando sério, a única "invenção" do PT, é o Lula ! Mas isto é assunto para outro "assalto".
Meu Deus, tu está bem? Tá doendo ? Tá sangrando? Meu Deus, o telefone tá sem linha !
Aperta o gancho. Tá tudo bem, ao menos parece. Não está doendo, não. (Tudo balela as cenas do John Wayne e companhia!)
Agora deu! Ela disse que teu pai tá se sentindo mal. Ela vem dirigindo. Vou pegar os documentos?
? Em dez minutos Mamãe chegou. Adeus portão. A cena era indescretível. Mamãe, sem dentes, toda escabelada (mas como é uma emergência, vou poupar o sarcasmo).
Vamos lá, tu tá bem? Teu pai ficou.
Mãe tu tá sem óculos e tu não tem carteira (habilitação)! Tá louco, eu não vou com ela.
Bobagem, tu sabe que eu sei dirigir. Nao cheguei até aqui ! Deixa de frescura!
Não mãe, chama o seu Joca aí do lado. Por favor !!!
Nem em situação de risco de vida, tu deixa de ser chato. Tá bem. "Seu Joca, seu Joca!"
Mãe é melhor ir lá no portão dele.
Eu sei, eu sei.
...
Seu Joca nos socorreu prontamente, e em menos de meia-hora eu estava entrando no Pronto-Socorro. Claro, antes a caminhoneta variant dele não pegou: desce todo mundo, desentala o para-choque do fusca (como ela conseguiu fazer isso? Ficou preso entre a coluna e o portão). No caminho, começaram umas "fisgadas" cada vez mais fortes até eu perder os sentidos. Consta nos "autos" que a cena dentro do fusca foi "algo" ? Mas também, mãe é mãe !!!
Pelo que me contaram, mais tarde, após descobrir que eu não havia "sido atacado por um bando e levado cinco tiros", (Mamãe!!!) meu pai chegou. Eu somente fui vê-lo três dias depois. Aconteceu o "derrame interno".
Doze dias depois fui para casa. O projetil, ficou comigo, alojado atrás dos rins. Por não ser uma cirurgia de urgência, o INPS não cobria a retirada. Passaram-se os anos e eu resolvi ficar com ele.
?
Ainda moro na mesma casa. Nunca vi quem atirou nas redondezas. E o mais interessante: "jamais ouvimos qualquer comentário sobre aqueles tiros!" É como um sonho. Ninguém ouviu meus gritos, os tiros, ?
Minha mãe sempre que pode fala bem alto e bem claro: "meu filho quase foi morto a tiros aqui nessa rua e ninguém, sequer, acendou uma luz".
(?)