A opinião sobre o aborto seguro divide a população brasileira. Uma pesquisa feita pelo IBOPE no ano de 2007[1] a respeito do aborto na sociedade encontrou as seguintes porcentagens: Ao serem perguntadas se concordavam ou não com a postura da Igreja Católica que condena o aborto, 59% das pessoas entrevistadas discordaram dessa postura; 74% concordaram com o aborto em casos de fetos anencéfalos; e 47% discordaram da condenação e da prisão de mulheres que fazem abortos por problemas financeiros, medo de perder o emprego, abandono do parceiro, etc. [2]. Ou seja, a sociedade discorda da Igreja Católica - que tem sido um dos atores responsáveis pela manutenção do aborto como ato ilícito.

Uma pesquisa realizada pela REDESAUDE (2004) revelou que as mulheres são responsáveis pela decisão do abortamento em 61% dos casos relatados. O casal é responsável em 18% e o parceiro aparece apenas com 8% de responsabilidade na decisão. Isso acontece porque, como assinalou Elisabete Pinto (2002), a gravidez ocorre no corpo da mulher, portanto como resultado de uma situação biológica há uma situação social: a mulher é a responsável pela reprodução da sociedade. As razões que levaram uma mulher a abortar, segundo a pesquisa, foram: razão financeira (34%); ter que assumir a gravidez sozinha (21%); medo da rejeição da família (14%); medo da rejeição do parceiro (13%). A pesquisa revelou também que mais da metade das mulheres (53%) acreditavam que o aborto era completamente ilegal no Brasil; e alardeou o crescimento da gravidez entre adolescentes brasileiras, afirmando que 51.380 internações por aborto incompleto no SUS foram registradas por garotas de 10 a 19 anos em 1999, e que o aborto ou complicações do parto constituem a quinta causa de morte materna entre adolescentes (Redesaude, 2004).

Para entendermos melhor o significado do aborto para mulheres e homens, é necessário que se trace um panorama sobre as representações do que é entendido como maternidade e paternidade para homens e mulheres. Nesse sentido, Violeta Angélica Cuenca Chumpitaz realizou uma pesquisa qualitativa em 2003, abordando justamente essas significações entre a população de baixa renda da cidade do Rio de Janeiro. Constatou-se que ainda está muito presente na sociedade a valorização da maternidade como um bem maior na vida de uma mulher, perceptível na fala de uma das entrevistadas:

"... porque depois que você é mãe, você deixa de viver pra você mesmo, você não pensa em você, seu objetivo é só um, seus filhos, sua meta uma, seus filhos (...) a gente nunca deixa de ser mãe" (p.28). Também se faz referência a um velho ditado popular no qual "ser mãe é padecer no paraíso", salientando que a mulher tem que se abster dela mesma, enfrentar suas dores, esconder suas incertezas, em prol de um bem maior: seus/suas filhos/as.

Dentro dessa vertente, a autora apontou que as mulheres que não possuem filhos/as são consideradas "tristes, infelizes, deprimidas e frustradas", pois na fala das mulheres entrevistadas a maternidade é o fim em si do papel social da mulher: "Ah, eu acho que é muito triste; a mulher que não tem filhos não sabe o que é vida realmente, só sabe o que é a vida depois que você tem um filho... você não tendo filho, você tem a vida vazia" (p.30). Outro depoimento anexa o sentimento de amargura com a negação da maternidade:

"... aquelas mulheres que podem ter filhos e não têm, são pessoas muito amargas na vida... ela não tem amor próprio" (p.31). Entretanto, diante de tantas falas condenando o não exercício da maternidade, há dois exemplos que afirmam a autonomia da mulher, por exemplo: "... eu acho até bonito, a mulher que tenha a opinião de não ter filhos e seguir a vida sozinha" (p.31-32). A respeito da paternidade, a maioria das falas afirmou que o homem é o responsável pelo sustento e provisão material da família, mas que também deve auxiliar a mulher no cuidado com os/as filhos/as, porém esse cuidado é, muitas vezes, superficial.

Elisabete Pinto (2002) pesquisou mulheres e homens da periferia de São Paulo que se submeteram ao aborto e constatou as opiniões sobre os significados do aborto para cada entrevistada/o: o "olhar masculino" e a "vivência feminina". Ela assinala que na maioria dos casos de abortamentos inseguros, as mulheres decidem sozinhas como prosseguir. As que optam pela interrupção da gravidez não o fazem senão com promessas de arrependimento, como nesse depoimento no qual a entrevistada relata algo acontecido com uma colega que estava grávida e optou pelo aborto:

"Eu já ouvi colega chorando. (Perguntei) o que é que foi? "Nossa eu estou grávida, contei para o Beto, e ele disse que o problema é meu. Quer dizer, é isso que eu vou ouvir. O problema seria meu. Então, já que o problema é meu eu tomei a decisão. Embora terrível. Mas que outra saída teria? Eu tinha outra saída? Não tinha! Eu ia ter que trabalhar em dois empregos como sempre, não tinha jeito. A saída foi essa. Foi terrível." (Pinto, 2002 p. 91)."

Graciana Alves Duarte et al.(2002), em sua pesquisa intitulada "Perspectiva masculina acerca do aborto provocado", traz elementos esclarecedores a respeito da fala dos homens sobre o aborto inseguro, reafirmando a maior aceitação do aborto quando dos casos já estipulados por lei. Metade dos entrevistados afirmou que as mulheres têm direito a interromper a gestação. Como variantes apareceram a questão da escolaridade desses homens e o grupo (docente/discente da Unicamp) a que pertenciam. Os homens se mostraram mais favoráveis ao aborto nos casos estipulados pela lei, seguido de anomalias fetais. A autora assinala que o maior grau de escolaridade, o grupo a que pertencem e a renda, são fatores relevantes na análise de sua pesquisa sobre a opinião dos homens. Ela assinala que essas variáveis permitem concluir que as pessoas com maior grau de instrução tendem a assumir, em parte, posturas mais liberais, como em relação ao aborto. Como complemento a essa pesquisa, Elisabete Pinto nos revela uma outra face: a opinião dos homens da periferia sobre o aborto provocado. A maioria desses homens condena a prática do aborto e, inclusive, em seu imaginário, a mulher faz o aborto sem nenhuma inquietação, sem nenhuma amálgama de sentimentos, como neste depoimento:

"... A mulher não quer nem que o cara se envolva nisso, ela fez aquilo só por aventura, aquilo foi só uma fatalidade que aconteceu e ela (não) está nem aí. Ela vai fazer o aborto, some da vida do cara" (p.99). Em outra fala, a moral religiosa se faz bastante presente e é possível perceber a transição de gênero pela qual passa a sociedade:

"...se Deus colocou alguma coisa dentro de uma mulher, (ela) tem a possibilidade de colocar aquilo para fora e conseguir criar tudo. Elas só levam para o lado materialista. Elas querem liberdade, e não pensam que todo mundo tem o direito de nascer. Eu acho que o aborto só pode ser feito, quando ela sofre estupro (p. 100)." Entre as mulheres que realizaram abortos inseguros, as seqüelas psicológicas são permanentes. Os sentimentos de alívio e de dor se misturam, o arrependimento marcou as trajetórias de algumas delas (a maior parte), e estas, agora, se pronunciam contra o aborto, como na fala a seguir: "Mas eu não faria mais um aborto. Por pior que fosse a situação. (...) É uma cicatriz que você carrega, fica aquela coisa lá. (...) eu continuo falando que sou contra. Eu jamais faria outro aborto" (Pinto, 2002, p. 145). Entretanto, outras mulheres afirmaram que não sentem nenhum arrependimento pelos abortos realizados, e até disseram que fariam novamente, se a situação assim o desejasse:

"...eu não me arrependo, porque no caso é como eu falei: eu faria de novo. Não quero e eu peço para o médico me operar (laqueadura), ele não opera, fala que eu sou nova, então eu vou tirando (...), não sinto remorso. Não sinto nada, para mim é como se eu tivesse tomado um copo de água. (...) Eu não me arrependo de nada; o que eu faço e tudo o que eu faço eu estou fazendo ciente (Pinto, 2002, p.143)."

Como o aborto é um fenômeno social complexo, as pesquisas existentes sobre o assunto também divergem quanto às suas significações. A antropóloga Débora Diniz reuniu dados existentes sobre o aborto no Brasil (2.135 pesquisas de campo, publicadas em periódicos científicos) e concluiu que, ao contrário do proclamado pelo senso comum, a mulher que aborta no Brasil[3] o faz segundo uma constante racionalização, uma profunda indagação e com o auxílio do parceiro. Diniz também informou que a formação cultural da maternidade também está sofrendo uma transição:

"Os dados mostram que não é a mulher considerada leviana que aborta. É uma mulher comum, que vive uma relação estável e que já tem um filho. É depois de ser mãe, de saber o que é a maternidade, que ela decide com o parceiro pelo aborto. É uma decisão responsável e baseada na experiência (Anis, 2008)."

Entretanto, há que se ressaltar que quase inexistem pesquisas sobre a opinião da população feminina em geral sobre a ampliação ou não desses permissivos, sobre a manutenção da criminalização do aborto e quais seriam as modificações que elas gostariam que ocorressem, a maioria das pesquisas qualitativas versam sobre mulheres que cometeram abortos inseguros e suas opiniões, nesses casos.

[1] Encomendada pela ONG Católicas pelo Direito a Decidir. [2] Para mais detalhes, consultar a tabela de dados disponível em: http://www.catolicasonline.org.br/conteudo/downloads/tabela-ibope-pesquisa-brasileiros.xls [3] Saliente-se que todos os dados disponíveis sobre aborto inseguro no Brasil são estimativas, pois devido à condição penal do mesmo, poucas mulheres falam abertamente sobre o assunto, e tampouco os hospitais informam claramente o motivo da internação de determinada paciente como aborto induzido, por exemplo.

A maternidade e o amor romântico

Gilberto Freyre, em "Casa Grande e Senzala", traçou a formação da identidade cultural das famílias brasileiras e, sobretudo, a formação do imaginário sobre a mulher, especialmente a negra, como altamente sexualizada e serviente. Para ser mais exata, quando ele se reportou às particularidades culturais dos portugueses, ele escreveu uma narrativa sobre as mulheres reforçando o estereótipo de "mulher reificada", entretanto, a miscigenação no Brasil ocorreu muitas vezes por raptos de mulheres-índias, e violações sexuais contra mulheres negras e já mulatas e caboclas (os senhores e as escravas):

O longo contato com os sarracenos (mouros) deixara idealizada entre os portugueses a figura da moura-encantada[1], tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual (...) sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios (...) que os colonizadores vieram encontrar parecido, quase igual, às índias nuas e de cabelos soltos do Brasil. (...) (elas, as índias brasileiras) por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se entregando, de pernas abertas, aos "caraíbas" gulosos de mulher (Freyre, 1980, p.107). A respeito da família, Freyre constatou que: "A família, não o indivíduo nem tampouco o Estado, nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador do Brasil" (p.117). Por esse mesmo motivo, é que se faz necessário seu breve estudo nessa sessão. A mulher através da formação patriarcal, com os mandos e desmandos dos senhores-de-engenho, era muitas vezes vítima de dominação e de abuso por parte do homem, reprimida social e sexualmente por ele, corroborando sua condição de mera mercadoria a mercê de seu senhor, sem vontades nem coragem de mudança dessa realidade. Ainda nessa linha de raciocínio, Freyre observou as características eróticas dada pelos europeus aos/às escravos/as africanos/as, e que repercutem ainda hoje a significação de toda mulher brasileira. Freyre abordou que aos/às negros/as foram dados como características étnicas o erotismo, a luxúria e a depravação sexual, sexualidade forte, danças de cunho apelativo/afrodisíacas para a excitação do homem, orgias, etc.

Entretanto, Freyre enfatizou que essas informações nada tinham de verdadeiras, pois "a precoce voluptuosidade, a fome de mulher que aos treze ou catorze anos faz de todo brasileiro um Don Juan não vem do contágio ou do sangue da raça inferior (escravos/as africanos/as), mas do sistema econômico e social da nossa formação" (Freyre, 1980, p.490). Desta forma, verificamos o imaginário na sociedade de então com a sexualidade dos homens e mulheres brasileiros.

Também o autor observou que os casamentos no Brasil nos séculos XVII a XVIII eram pactuados entre senhores e mocinhas de 12 e 13 anos, pois aos 20 elas estariam já "solteironas". Assim sendo, Freyre trouxe um elemento chave pra compreensão do grande valor atribuído ao casamento no país: as meninas deixavam de brincar de bonecas, para exercer a função da maternidade na família patriarcal. De seu livro, destacamos o seguinte trecho:

Desde o século XVI dominou no Brasil semelhante prejuízo. Quem tivesse sua filha, que a casasse meninota. Porque depois de certa idade as mulheres pareciam não oferecer o mesmo sabor de virgens ou donzelas que aos doze ou treze anos. Já não conservavam o provocante verdor de meninas-moças apreciado pelos maridos de trinta, quarenta anos. Às vezes de cinqüenta, sessenta e setenta (Freyre, 1980, p.510).

Entretanto, o ponto crucial da família patriarcal era a reprodução. Seja ela através da família mesmo do senhor, a linhagem européia, ou a linhagem mestiça com os vários ilegítimos nascidos no país. A esse respeito, Freyre destacou que apesar da aclamada "voluptuosidade" e "erotismo" da mulher negra, geralmente eram os homens europeus quem as assediavam e não o contrário, pois "os filhos dos senhores criavam-se desde pequenos para garanhões, ao mesmo tempo em que as negras e mulatas para 'ventres geradores'" (Freyre, 1980, p. 538). Mantendo-se a mulher branca para servir ao marido, gerando seus/suas filhos/as legítimos, futuros/as herdeiros/as dos senhores. A mulher branca, assim, vivia para seu casamento e para seus/suas filhos/as.

A pesquisadora Maria Lúcia Rocha-Coutinho (1994) investigou a mulher na sociedade e mostrou que o amor romântico foi o principal agente da valorização da maternidade no século XVIII na Europa e no século XIX no Brasil, naturalizando assim um fenômeno puramente social, "inerente à ordem cultural que homens e mulheres instauraram sobre a natureza" (p.27). Os membros dessa sociedade familiar estão coesos por regras específicas, direitos e deveres próprios, e laços afetivos socialmente construídos baseados na legislação e na Igreja. O novo casamento baseado no amor romântico inaugura uma nova formação familiar, na qual surge o amor materno. Desta forma, "a criança adquire um novo valor e importância, sendo agora elemento indispensável da vida cotidiana, uma vez que é o produto por excelência desta nova unidade, razão de sua subsistência" (p. 28-29). Assim, a mulher passa agora a viver para o amor: a seu parceiro, a seus filhos/as e à sua própria casa, sempre impecável - ambiente que passou a ser domínio feminino. Rocha-Coutinho afirmou que: O amor materno é a origem e o ponto fundamental da criação do espaço sentimentalizado do lar, em cujo interior a família vem se refugiar. A família moderna, portanto, centra-se em torno da mãe que adquire uma importância que jamais tivera. Sua casa, fechada às influências externas, passa a constituir o novo "reino" da mulher e a maternidade seu mais almejado desejo.

No percurso a respeito da maternidade tivemos momentos em que foi necessária a "suspensão temporária" dessa permanência da mulher no lar, como nas Guerras Mundiais, nas quais ela foi incentivada a participar da vida industrial. Entretanto, essa pausa logo cessou. Com o fim da II Guerra, a mulher foi incentivada novamente a voltar ao âmbito privado de seu lar e vivenciar seu reinado, para que seus maridos reassumissem seus postos de trabalho afinal, o destino de toda mulher era ser mãe como apregoava a sua natureza biológica, seu "instinto maternal". A identidade feminina deste período se assenta no tripé: marido, casa e criação dos/as filhos/as.

Os anos 60 foram fecundos para se duvidar dessa natureza da mulher, entretanto, pouca coisa mudou. Mas, as sementes da inquietação foram plantadas. As mulheres estavam confusas com o modelo tradicional e o modelo que começava a ganhar formas: a dupla jornada, a possibilidade de realização profissional. Ao mesmo tempo em que havia essa inquietação no ar, também se reproduzia a sacralidade da maternidade, a importância da casa e de seu cuidado extremo confiado às mulheres. Nos anos 70 houve uma revolução no comportamento em geral e maior visibilidade dos movimentos feministas para a sociedade. A liberdade da mulher foi sendo mais desejada pelas mesmas: a revolução sexual e a pílula anticoncepcional foram elementos importantes dessa fase (já questionando a sacralidade da maternidade). A luta pelo direito ao aborto se fez presente na Europa e nos Estados Unidos com ressonância no Brasil. Assim sendo, a mulher passou a ter a opção e o direito de um modelo alternativo ao da "rainha-do-lar", um modelo que valorizasse sua identidade, seus novos desejos, sua carreira e sua conquista da esfera pública. Entretanto, esse modelo apenas se adequou às novas necessidades do mercado que absorveu a mão-de-obra feminina. Ou seja, além de se preocupar e de se ocupar com o tripé: marido, casa e filhos/as, também entraram a carreira, o trabalho: a concretização da dupla jornada de trabalho. Isto explica a condenação social do aborto provocado em grande parte da sociedade. A esse discurso da família, da proteção e "instinto maternal", não cabe a defesa do direito de escolha da mulher que não deseja ou não pode ter aquele/a filho/a, uma vez que ela nasceu fundamentalmente para ser mãe, para se reproduzir e reproduzir a sociedade com todos os seus valores. Como assinala Rocha-Coutinho (1994): Assim, do mesmo modo que os homens não nascem pais, as mulheres, apesar de seu aparato biológico, também não nascem mães. E, do mesmo modo que a paternidade não satisfaz o projeto de vida do homem, a maternidade, por si só, pode não preencher o projeto de vida da mulher. Para ambos, ter filhos não é, ou não deveria ser uma determinação biológica, mas sim uma escolha pessoal. (p.45). Desta forma, e após o que aqui foi exposto, podemos afirmar que o processo de formação da família brasileira baseado na exaltação da sexualidade, no don juanismo dos garotos, na erotização das mulatas e, ao contrário, na condução sexualmente moral das mulheres brancas, européias, foi a base para a sacralização da mulher como mãe. A mulher-mãe não-erotizada, sublime, dadivosa, católica e devota à religião. A cultura de uma sociedade - como bem trabalhou Roque de Laraia em "Cultura: um conceito antropológico" - define-a moldando-a e, portanto, por meio da própria cultura é que valores podem ser alterados, direitos incorporados e comportamentos mudados. Assim, Laraia (2001) salientou que nossa herança cultural nos condicionou a postarmos-nos de forma estigmatizadora quando nos deparamos com comportamentos diferentes dos padrões instaurados na sociedade. Assim, o ser humano tem a propensão de considera seu modo de viver como perfeitamente normal e natural (etnocentrismo), o que não é. A cultura por si só é dinâmica, mudando constantemente. O que hoje marca uma determinada cultura pode vir a sofrer mudança de valores ou paradigmas, entretanto, essa mudança não é radical e nem feita sem acarretar conflitos. A esse respeito, Laraia (2001) inferiu que as sociedades, em determinados momentos "são palco do embate entre as tendências conservadoras e as inovadoras", e que enquanto as primeiras insistem na manutenção de determinados valores naturalizando-os, as demais tentam inserir o novo, o diferente (Laraia, 2001, p.99). É nesse sentido que percebemos a perpetuação da figura santificada da mulher-mãe brasileira, e entendemos a condenação ao aborto, pois o aborto admitido como um direito da mulher nega essa santificação construída culturalmente sobre a maternidade. Ou seja, a maternidade é um valor enraizado na nossa cultura, e o aborto sendo descriminalizado e legalizado, visa à desconstrução desse mito, portanto, um novo valor inserido que questiona a naturalização do mitificado amor materno, e da natural vocação feminina à maternidade.

[1] A figura da moura-encantada equivale a Yemanjá brasileira (Freyre, 1980, p.496).

A Posição das Igrejas Evangélicas

Recentemente a igreja evangélica se posicionou favorável ao direito de escolha da mulher em interromper uma gestação. Entretanto, esta é uma posição isolada de um dos bispos mais evidentes na mídia brasileira e que era detentor de uma emissora brasileira, a Rede Record.

Em uma entrevista concedida ao Jornal "Folha de São Paulo", Edir Macedo revelou-se favorável ao aborto e veiculou em sua emissora (em 2007) uma propaganda a favor da autonomia da mulher quanto a seu corpo e sua sexualidade que coincidia com a visão da Igreja Universal do Reino de Deus sobre o tema. A Constituição de Cidadania e Reprodução[1] revelou que o aborto era o pano de fundo entre o debate de católicos e evangélicos da Universal.

Mais precisamente, foi um debate travado entre o bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, e a Conferência dos Bispos do Brasil. A CNBB logo reagiu com a tradicional Campanha da Fraternidade, cujo tema este ano (2008) foi: "Fraternidade e Defesa da Vida" e o lema era: "Escolhe, pois, a vida" (CRR, 2007). A propaganda veiculada pela Rede Record e pela Record News[2] informou que as mulheres conquistaram o direito de votar e de trabalhar. Por que não poderiam decidir o que fazer com o próprio corpo? A propaganda termina com a vinheta da Record e com as palavras "Responsabilidade Social".

Em sua biografia, "O Bispo - a história revelada de Edir Macedo", ele confirma sua posição quanto ao assunto: "Sou a favor do aborto sim" (CRR, 2007). Este, entretanto, é um caso isolado entre os/as evangélicos/as. A posição da IURD, nas palavras do bispo Carlos Macedo de Oliveira durante uma das Audiências Públicas do STF a respeito da interrupção de gravidez de bebê anencéfalo em 2008, é: "Defendemos que deve prevalecer o desejo da mulher que passa por esse dano. A descriminalização desse tipo de aborto não deveria esbarrar no radicalismo religioso" (Correio Popular, 2008a).

[1] A Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) foi fundada em 2001 e instalada no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). "É uma entidade civil de âmbito nacional e sem fins lucrativos cujo objetivo é a promoção dos direitos reprodutivos segundo os princípios das Declarações da ONU" (http://www.ccr.org.br/a_sobre_ccr.asp). [2] Para ver a propaganda, acesse: http://www.youtube.com/watch?v=0aMiCQ-KNAk

A Igreja Católica e o Aborto

A Igreja Católica tem sido um importante ator no debate sobre o aborto na sociedade brasileira. Identificada com o conservadorismo, sua doutrina tem por mote na questão do aborto inseguro um de seus mandamentos que afirma o poder de "Deus" sobre a "criação" e que o ser humano não tem direito a matar o outro, e isso, para a Igreja Católica, aplica-se ao aborto.

O Catolicismo dotou o embrião de vida humana, estabelecendo até mesmo o Estatuto do Nascituro (aqui, através do Conselho Nacional dos Bispos do Brasil). Nascituro, para a Igreja Católica, é o "indivíduo" que está para nascer, ou seja, pelo Estatuto a vida é protegida desde a concepção até a sua morte natural. A formulação do direito a vida desde a concepção ganhou visibilidade política a partir dos anos 1970, quando diversos países industrializados acenaram positivamente à liberalização do aborto, para restringir esse acesso legal. Sônia Correa e Maria Betânia Ávila (2003) informaram que a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal de 1948 não incluem essa afirmação, e sim que o "direito à vida é uma prerrogativa de seres humanos 'que nascem livres e iguais', e não de seres ainda não nascidos" (p.67).

Para a pesquisadora Maria José F. Rosado-Nunes[1], o catolicismo "influencia os meios de comunicação de massa e influencia com seu lobby junto aos parlamentares". Entretanto, a pesquisadora Leila Linhares Barsted (1992) destacou que a Igreja Católica e o Feminismo se uniram em determinado momento de nossa história. Ela afirmou que essa aliança foi necessária para a abertura da sociedade às lutas feministas mesmo que estas tivessem que delimitar seu campo de ação, retirando certos posicionamentos de suas pautas de discussão. Essa aliança foi justamente realizada devido ao grande poder da igreja em influenciar a sociedade brasileira.

[1] Membro da ONG Católicas pelo Direito de Decidir - Brasil. A CDD são uma organização de mulheres católicas feministas que defendem o direito de escolha da mulher e a autonomia de seu próprio corpo. Não são oficialmente reconhecidas pela Igreja Católica. As CDDs existem, originalmente, nos EUA e nos demais países da América Latina.

Nunes assinalou que num primeiro momento a igreja se congraça com o movimento feminista na luta por mais creches, contra o custo de vida, pela libertação de presos políticos, etc. Nesse sentido, José Murilo de Carvalho (2008) observou a luta da Igreja Católica pela restituição da democracia no país. Ele afirmou que "em 1970 o próprio Papa denunciou a tortura no Brasil". E que a CNBB já vinha trabalhando a questão da condenação da ditadura. Assim:

A hierarquia católica moveu-se com firmeza na direção da defesa dos direitos humanos e da oposição ao regime militar. Seu órgão máximo de decisão era a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A reação do governo levou a prisões e mesmo a assassinatos de padres. Mas a Igreja como um todo era poderosa demais para ser intimidada, como o foram os partidos políticos e os sindicatos. Ela se tornou um baluarte da luta contra a ditadura (p.183).

Todavia, com a abertura política, nos anos 1980, as reivindicações dos movimentos feministas passaram a incluir a autonomia da mulher à própria sexualidade e, portanto, o direito ao aborto. A partir desse momento houve uma ruptura entre a igreja e o movimento feminista, cisão esta que se faz presente nos momentos atuais. A autora destacou que uma das estratégias da Igreja Católica para essa influência é justamente apresentar o discurso de banimento à prática do aborto como voz uníssona dentro da instituição. Os contra - discursos não são reconhecidos pela hierarquia, não têm visibilidade pública devido à repressão da Igreja contra os discursos dissonantes ao oficial:

Historicamente, a hierarquia católica no Brasil alinhou-se com Roma, no que diz respeito às diretivas no campo da moral sexual. (...) Mesmo os bispos seguidores da proposta pastoral inspirada na Teologia da Libertação[1], reconhecidos como progressistas no campo social, na área da moral sexual manifestaram-se sempre favoráveis à manutenção dos princípios católicos tradicionais[2] (Nunes, 1997, p. 416-417).

Desta forma, a Igreja Católica esteve ao lado do Movimento Feminista nos primórdios da formação deste último, entretanto, em um determinado momento se distanciou e se posicionou contrário aos "novos" valores defendidos pela ex-parceria, justamente em virtude da defesa dos costumes, da tradição e da moral. Postura essa que podemos observar quando, por exemplo, o PL que exigia a obrigatoriedade de atendimento pelo SUS dos casos de abortos previstos em lei (PL 20/91), de autoria de Eduardo Jorge, foi aprovado no ano de 1997, coincidentemente o mesmo ano em que o papa João Paulo II visitava o país pela segunda vez (a primeira foi em 1980). [3] Durante seu discurso, o papa chamou a atenção para o problema da legalização do aborto:

O Papa João Paulo II conclamou ontem [03/10/1997] a Igreja Católica a manter "um diálogo construtivo" com as instâncias políticas, das quais "depende em boa medida a sorte das famílias". (...) Ao justificar seu pedido, o papa afirmou que "entre as verdades obscurecidas" no coração do homem, por causa da crescente secularização e do hedonismo reinante, ficam especialmente afetadas todas aquelas relacionadas com a família (...) a mesma fidelidade conjugal e o respeito pela vida, em todas as fases de sua existência, estão subvertidos por uma cultura que não admite a transcendência do homem criado à imagem e semelhança de Deus (Folha de São Paulo, 1997). Dessa forma podemos ver que a Igreja Católica num primeiro momento se aliou com o feminismo brasileiro em suas demandas, num contexto histórico de ditadura militar, lutando ao lado das ativistas por direitos humanos, pela anistia. Num segundo momento, o feminismo amplia sua margem de luta questionando, entre outras coisas, a autonomia do corpo feminino, portanto o direito ao aborto, e a Igreja Católica rompe com a aliança outrora feita com o Movimento.

A igreja admite que o feto seja uma vida humana e que a mulher não possui direitos sobre ele, pois "Deus" deu a vida e só "Ele" pode retirá-la. O aborto também significa a prática do sexo desvinculada da reprodução, fora do casamento e, assim uma afronta à família. Estes são valores da igreja, valores que ela defende não apenas aos seus membros, mas a toda a sociedade. Porém, Rosado-Nunes (2006) em seu texto "Teologia feminista e a razão da crítica patriarcal: entrevista com Ivone Gebara" apontou a ramificação do feminismo entre as teólogas católicas, destacando a "Teologia Feminista (TF)", representada por Ivone Gebara [4]. Gebara é defensora do aborto como opção, tendo sido condenada a dois anos de silêncio pelo Vaticano por esse seu pensamento[5]. Segundo Gebara, o que caracteriza e diferencia, portanto, a TF brasileira das TFs norte-americanas e européias é o seu caráter acadêmico, pois as pesquisadoras nem sempre pertencem a alguma instituição religiosa, e trazem uma visão mais abrangente das relações de gênero para a discussão da teologia.

Apesar de a teóloga ter contribuído para a base da "Teologia da Libertação", ela criticou essa corrente porque "é ainda patriarcal e está repleta de imagens masculinas de Deus" (Rosado-Nunes, 2006 p. 295). Nesse artigo, Rosado-Nunes expõe a reflexão de Gebara sobre a difícil conciliação entre ser católica e feminista, diante de uma instituição marcadamente patriarcal. A autora também observou que uma das ênfases do pensamento de Gebara recai sobre a preocupação excessiva da Igreja Católica com o "espírito" em detrimento da mulher, reduzindo-a a mero organismo biológico, com funções determinadas em que a maternidade torna-se o destino obrigatório. A rejeição desse discurso, tal como Gebara o fez, leva ao questionamento crítico sobre os pilares da Igreja Católica frente à contemporaneidade. Sobre a manipulação religiosa do corpo feminino (por ser ele que engendra), a teóloga observou que: "Essa manipulação não se faz necessariamente a partir dos representantes das hierarquias religiosas, mas também através de políticos, através da medicina e do direito" (Rosado-Nunes, 2006, p. 298). Quando perguntada por Rosado-Nunes como era a relação entre a TF brasileira e os movimentos feministas, Gebara respondeu que:

Creio que a Teologia Feminista no Brasil começa a se desenvolver de forma mais original a partir do momento em que se articula às questões levantadas pelo movimento feminista. (...) Quando as teologias feministas se articulam aos movimentos feministas e fazem de suas questões as questões cotidianas vividas pelas mulheres, se dá uma espécie de ruptura em relação às questões tradicionais da teologia e à sua forma de abordagem. (...) essa maneira de se fazer teologia não é institucional, no sentido de não ser assumida oficialmente pelas igrejas (Rosado-Nunes, 2006 p.299).

Nesse sentido, percebemos que mesmo no interior da igreja não há consensos quanto às questões que permeiam os problemas de gênero na sociedade. Foi necessário engendrar uma teologia própria para poder debater a fundo os problemas que a sexualização e biologização das mulheres acarretavam em suas vidas. Foi necessário haver uma espécie de ruptura entre os valores tradicionais do catolicismo e a aproximação de algumas teólogas com os movimentos feministas para se constituir uma nova linha de pensamento dentro da esfera religiosa brasileira que contemplasse a pluralidade da sociedade. Embora poucos avanços, de fato, ocorreram, há boas expectativas quanto a essa nova concepção religiosa.

[1] Para a Teologia da Libertação, os métodos contraceptivos são liberados e o aborto é discutido, tendo por base a saúde da mulher, a questão da violação sexual e má-formação fetal. Seus teólogos são favoráveis ao planejamento familiar. Seu fundador é o ex-frei brasileiro Leonardo Boff, que a concebeu no final dos anos 60. A Teologia da Libertação não é bem vista pela hierarquia eclesiástica porque possui valores diferentes aos oficiais.

[2] Sobre essa questão, Gebara afirmou que: A Teologia da Libertação, embora aborde problemas éticos e esse particular mantém sua atualidade no presente, não deixa de ser a expressão de um momento histórico particular vivido na América Latina. Trata-se das décadas 1970 e 1980, período de luta contra as ditaduras militares e de afirmação de vários movimentos políticos e sociais com o apoio das igrejas cristãs. O cenário mundial e as referências ao socialismo histórico da época davam a base teórica para afirmar a possibilidade de estabelecer relações sociais mais justas. Davam igualmente um referencial histórico socialista a partir do qual 'se imaginava' que o povo que vivia no bloco socialista experimentava a justiça social em seu cotidiano. Entretanto, com a mudança do contexto internacional a partir de 1990, isto é, do final da guerra fria, do final da União Soviética, da queda do muro de Berlim e do estabelecimento da cultura e da economia globalizada, as referências sociais e também as teologias mudaram. Assim, nesse novo contexto, as teologias da libertação perdem seu referencial histórico ou, em outros termos, perdem uma certa referência histórica de sociedades justas e igualitárias" (Rosado-Nunes, 2006, p. 300). [3] O atual papa Bento 16 visitou o Brasil em 2007, mesmo ano em que o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e o Presidente Luis Inácio Lula da Silva, afirmaram que o aborto inseguro era um problema grave de saúde pública.

[4] Ivone Gebara pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora Cônegas de Santo Agostinho, doutora em Filosofia e Ciências Religiosas.

[5] Gebara afirmou que a dominação masculina sobre a sexualidade feminina "manifesta-se, igualmente, nas questões de descriminalização e legalização do aborto, como se os homens, ou a sociedade que representam , tivessem a última palavra sobre nossas decisões e escolhas" (Rosado-Nunes, 2006, p. 301).

O aborto como uma questão de saúde pública no Brasil: Os procedimentos e as mortes evitáveis.

De acordo com a pesquisa da World Health Organization (2007), os procedimentos utilizados para realizar o aborto inseguro dividem-se em quatro categorias. A primeira delas engloba remédios orais ou injetáveis; a segunda, preparações vaginais, como misturas químicas; a terceira, introdução de algum corpo estranho no útero, como agulhas, talos de plantas, sondas por profissionais não-qualificados, entre outros; e a quarta, trauma no abdômen, como chutes, esforço físico, entre outros. Segundo as pesquisadoras Barbosa e Arilha (1993), o Cytotec[1] tem sua preferência entre as mulheres que optam pelo aborto, de qualquer classe social, por que quando comparado com outras formas de indução de aborto, ele é o método economicamente mais viável. Nos depoimentos colhidos por Elisabete Pinto (2002), o preço médio de cada comprimido era de R$60,00. Para a conclusão parcial[2] do abortamento, são necessários 4 comprimidos, sendo dois deles por via oral e dois por via intra-vaginal.

[1] O Cytotec foi introduzido no Brasil em 1986. Este é o nome genérico do misoprostol, desenvolvido pela Searle e distribuído no Brasil para utilização no combate a úlceras gástricas. Ele possui uma ação estimulante sobre a musculatura uterina, provocando contrações. Sendo assim utilizado na indução do parto e no aborto provocado (Barbosa & Arilha, 1993). [2] Parcial porque após 4 horas da administração do Cytotec, advêm cólicas muito fortes e, assim, a expulsão total ou parcial do feto. Há a necessidade de internação no hospital para realizar uma curetagem que limpará o útero da mulher (Pinto, 2002).

Elisabete Pinto (2002) traz um depoimento que elucida a utilização de dois métodos bastante empregados para a interrupção da gravidez, como o Cytotec e a sonda. A entrevistada realizou dois abortos inseguros. O primeiro, ingerindo o Cytotec; o segundo, através de uma "parteira" que utilizou o método da sonda:

"Cytotec tomei em casa, a criança nasceu no meu serviço. Era um menino. Esse foi o primeiro. Fui para o hospital, mas a criança nasceu no serviço, com o remédio que eu tomei... (O meu) segundo aborto faz cinco anos. Eu fui na parteira, Dona S., ela usava sonda. Deu anestesia porque eu estava de sete meses. Senti (...) dor; foi como num parto normal. Daí eu tive a criança, fui para o hospital. Só que esse já teve que fazer o enterro, sabe (...). Depois que ela dá o remédio, a gente já começa a sentir dor, contração. (...) Ela põe a sonda e você vai embora. Depois de vinte e quatro horas, você tira a sonda, daí passa um tempinho, a criança sai. (...) A sonda é mais barata, só que você sofre muito com a sonda (p. 120). (...) O segundo já nasceu morto, porque a sonda machuca eles. Porque só o fato de ele ficar sem água dentro da barriga, já morre. Senti (a bolsa estourando). Sai bastante água, saiu água quase o dia inteirinho. Sai toda a água. Daí eu pegava botijão de gás, lavei um monte de roupa, depois ele saiu (120-121)."

Chumpitaz (2003) relata a utilização de um "bico-de-pato", um utensílio utilizado para prender cabelos, no útero de uma paciente com finalidade abortiva, no Rio de Janeiro. A utilização desse "método" implicou em infecção na paciente, além de perfurações por todo o útero. A pesquisadora ainda assinalou que nas clínicas privadas, clandestinas, os procedimentos para a interrupção da gravidez são: dilatação e curetagem, ou aspiração à vácuo. [1]

[1] Dilatação e curetagem é uma técnica cirúrgica tradicionalmente utilizada na produção do aborto durante o primeiro trimestre de gravidez. Após dilatação do colo, introduz-se no útero uma cureta para o raspado e extração de membranas e partes embrionárias. A técnica de aspiração a vácuo emprega uma cânula e um aspirador manual ou elétrico (Labra, 1997; Gori, 1989, apud Chumpitaz, 2003, p. 104).

É importante observarmos que há aqui, dentre os diferentes métodos de abortamento, que há uma questão social permeando a discussão. Enquanto as mulheres que possuem melhores condições financeiras podem realizar seus abortos em clínicas, com procedimentos cirúrgicos (e entre essas, há ainda as que podem emigrar para países nos quais as leis são menos ou nada restritivas e realizar o procedimento em segurança e com higiene), as que não o possuem são obrigadas a ingerir medicamentos, misturas de ervas, utilizar objetos cortantes, entre outros, para realizar seus abortos inseguros. Uma dupla complicação, pois as mulheres já carregam uma culpa pelo ato socialmente condenável, e ainda se sujeitam a violações em seus corpos em nome do desespero pelo qual passam.

A pesquisadora Néia Schor (1984) explicou que as conseqüências do aborto provocado são seqüelas físicas, psíquicas e sociais, até o óbito, por isso, ela afirma que é importante diagnosticar a realidade do aborto provocado como problema de Saúde Pública, pois a "magnitude e vulnerabilidade" do aborto avisam que é necessário tratar o aborto como uma prioridade na área da Saúde da Mulher; "chegou o momento de discutir o problema e tomar decisões no âmbito da Saúde Pública de uma forma mais ampla e em todos os níveis" (p.22-23). A autora informou que as complicações físicas mais freqüentes do aborto inseguro são: a infecção pélvica, a hemorragia e o choque. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPS, 2002), no Brasil para cada 100.000 nascidos vivos, cerca de 70 mulheres morreram devido a complicações na gestação, incluindo o aborto.De acordo com a pesquisa da World Health Organization - "Unsafe Abortion" (2007), o aborto quando realizado por profissionais competentes e em condições satisfatórias de higiene e com técnicas adequadas, não representa riscos para a paciente. A pesquisa informa que nos EUA a mortalidade materna relativa ao aborto induzido está em 0,6 para cada 100.000 procedimentos cirúrgicos (p. 05). Os riscos do aborto inseguro devem-se as seguintes condições: medicamento usado, geralmente sem informação; o método utilizado; a saúde geral da mulher e o estágio da gravidez. "

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