O apossamento e uso por particulares de bens de uso comum como obstáculo ao exercício de direitos fundamentais[1] 

Amanda Santos Tinoco Ferreira[2]

Maykon Maverick da Silva Uchôa[3]

Wirna Maria Ferreira Lima[4]

Resumo: esse artigo traçará como o apossamento e o uso por particulares dos bens uso comum do povo podem funcionar como obstáculo ao exercício dos direitos fundamentais. A partir do conceito de atividade administrativa em busca do bem como e da promoção de direitos, parte-se para análise de como os bens públicos são os instrumentos de sua realização. Ao conceituar os bens comuns, releva-se a titularidade coletiva desses bens, que pertencem a todos, indistintamente. Traz-se também como funciona o uso específico desses bens comuns, através do devido processo administrativo, e como acontece o seu uso indevido pelos administrados. Por fim, destacou-se como os bens de uso comum são importantes para o exercício efetivo dos direitos fundamentais e como a simples atitude do apossamento e uso irregular pelas pessoas, ferindo os princípios do direito administrativo, pode colocar em risco o exercício desses direitos. Utilizou-se como método de abordagem a dedução, a partir de pesquisa bibliográfica dos conceitos gerais para se chegar às conclusões do trabalho.

 

INTRODUÇÃO

O Estado, como entidade pensada para a organização social, defesa das pessoas e garantia de direitos, precisa desenvolver certas atividades para chegar a essas finalidades. Para isso, ele também precisa de certos recursos de diversas naturezas, como recursos financeiros, captados através dos tributos, ou recursos humanos, que constituem seus agentes.

Outros tipos de recursos que o Estado precisa para desenvolver suas atividades são certos tipos de bens, móveis e imóveis. Um simples exemplo pode demonstrar isso: a promoção da educação é uma das atribuições da administração pública. Para isso, é necessário um local físico, um prédio, para que funcione uma escola, universidade, centro profissionalizante.

Ou seja: é importante para o Estado “ter” certos bens, bens que sirvam para atingir as suas funções estatais. São os chamados bens públicos, coisas que são usadas pelo governo para a promoção dos direitos de uma coletividade, para a garantia de direitos fundamentais como a saúde, o lazer, a proteção ao meio ambiente. Esses bens pertencem a toda a coletividade.

Mas esses bens, que pertencem a todos, podem sofrer com uma atuação irregular por parte de uns poucos particulares. Essa situação pode acabar gerando um prejuízo aos direitos da coletividade, prejudicando o exercício de certos direitos, que na verdade são de todos e que o Estado tem que garantir. O tema proposto fala sobre essa questão.

1 OS BENS DE USO COMUM

Para poder falar sobre o tema proposto, é preciso trazer algumas ideias gerais sobre os bens. Segundo Carlos Roberto GONÇALVES (2010, p. 274) “bens são coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e contêm valor econômico.”. Mais adiante, ele continua dizendo (2010, p. 275) “bens, portanto, são coisas materiais, concretas, úteis aos homens e de expressão econômica, suscetíveis de apropriação , bem como as de existência imaterial economicamente apreciáveis.”. Nesse último conceito, o autor quer dizer os bens imateriais mas que possuem conotação econômica, como o direito autoral.

Existem diversas classificações dos bens. O Código Civil adota muitas maneiras de classificar os bens, como faz ao dividi-los em bens considerados em si mesmo ou reciprocamente considerados. A partir do art. 98, o Código Civil traz outra classificação dos bens, que são os bens públicos.

Segundo Celso Antônio Bandeira de MELLO (2007, p. 880):

bens públicos são todos os bens que pertencem às pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Público (estas últimas, aliás, não passam de autarquias designadas pela base estrutural que possuem), bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à prestação de um serviço público. 

Esse entendimento está de acordo com o art. 98 do Código Civil, que diz: “São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.”.

Isso significa que os bens são públicos conforme a sua titularidade, seu pertencimento seja das pessoas de direito público, ou, ainda, se eles estiverem afetados pelos serviços públicos de uma dessas pessoas. A atividade pública tem o poder de atrair para a sua esfera, para o seu regime jurídico público, os bens que existem em sociedade, tornando esses bens perfeitamente públicos, quando eles integram o patrimônio das pessoas públicas, ou quando as normas do regime jurídico administrativo são aplicadas a certos bens, mesmo que sejam particulares. (MELLO, 2007)

 Os bens públicos servem à coletividade, a todas as pessoas que fazem parte do Estado. O seu uso, como já dissemos, é para garantir o exercício do Estado das suas atividades enquanto ente pensado para promover direitos. Os bens públicos são importantes recursos para a efetivação dos comandos do Estado, como a prestação dos serviços públicos.

A doutrina e o Código Civil fazem uma subclassificação quanto aos bens públicos. O art. 99 dessa lei diz:

Art. 99. São bens públicos:

I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;

III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.

Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.

José dos Santos de CARVALHO FILHO (2008, p. 1004) diz a respeito dos bens de uso especial: “são aqueles que visam à execução dos serviços administrativos e dos serviços públicos em geral. A denominação não é muito precisa, mas indica que tais bens constituem aparelhamento material da Administração para atingir seus fins”.

Os bens dominicais seriam os bens que não são bens de uso especial bem bens de uso comum. Quando um bem, pertencente a administração, como objeto de direito real ou de direito pessoal, não se encaixa como bem de uso especial, ou seja, não é usado para as atividades da administração, nem é um bem de uso comum, que iremos falar a seguir, é um bem dominical (CARVALHO FILHO, 2008).

Agora vem o conceito de bem de uso comum do povo. O art. 99, I, que citamos anteriormente, não traz um conceito de bem de uso comum, mas a partir dos exemplos é possível identificar esses bens como bens que as pessoas, em geral, podem utilizar livremente. José dos Santos de CARVALHO FILHO (2008, p. 1004) afirma esse entendimento: “os bens de uso comum do povo são aqueles que se destinam à utilização geral pelos indivíduos, podendo ser federais, estaduais ou municipais.”.

Celso Antônio Bandeira de MELLO (2007, p. 893) diz:

Os bens de uso comum, como o nome indica, fundamentalmente servem para serem utilizados indistintamente por quaisquer sujeitos, em concorrência igualitária e harmoniosa com os demais, de acordo com o destino do bem e condições que não lhe causem uma sobrecarga invulgar. Este é o seu uso comum.

Isso significa que os bens de uso comum são destinados ao uso de todas as pessoas, para o exercício de certos direitos. A partir dos exemplos trazidos pelo art. 99, I, do Código Civil, podemos perceber quais seriam esses direitos. Esse inciso diz que são bens de uso comum do povo os rios, mares, estradas, ruas e praças.

Assim, o uso dos bens comuns é para garantir a locomoção, que pode se dar através da via terrestre (estradas e ruas) ou da via aquática (rios e mares). No caso dos rios e mares, ainda poderíamos pensar que podem servir como abastecimento de água e fonte de recursos, como o alimento através da pescaria.

No caso das praças, logradouros públicos, praias do mar ou de rios e lagos, o seu uso garante o direito ao lazer, direito social garantido na Constituição em seu art. 6º. Ainda sobre esses logradouros públicos, direitos como a liberdade de manifestação, garantidos no art. 5º, XVI, da Constituição, são exercitados nesses espaços, como o direito de realizar passeatas.

Estas são as utilizações comuns, normais dos bens de uso comum. Se os indivíduos forem usar os bens de uso comum segundo essa destinação normal, não será preciso qualquer autorização do poder público, pois esses bens podem ser usados comumente. Segundo Celso Antônio Bandeira de MELLO (2007, p. 893): “Para esta utilização comum, ordinária e correspondente à própria destinação que têm [...] prescinde-se de qualquer ato administrativo que o faculte ou do dever de comunicar previamente à autoridade a intenção de utilizá-los.”

Mas o uso desses bens depende, é claro, da conformidade com outras normas. Uma pessoa que desejar circular com o seu veículo, por exemplo, precisa pagar pedágio em algumas localidades. O pagamento do pedágio é uma exigência da administração irrestrita, não destinada a apenas uma pessoa, mas a todos que forem usar aquela estrada. Assim, não há uma individualização do seu uso, mas uma exigência geral (MELLO, 2008).

 

2 O APOSSAMENTO E USO POR PARTICULARES DE BENS DE USO COMUM COMO OBSTÁCULO AO EXERCÍCIO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O uso dos bens públicos de bens de uso comum é uma garantia que nós, sujeitos particulares, temos para exercer certos direitos. Para se desenvolver as atividades do Estado ele usa os seus recursos, como os seus bens. Mas, além disso, o uso dos bens públicos serve também para promover direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais, conceituados por José Afonso da SILVA (1998, p. 182) “se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”. Continua (1998, p. 183) a dizer: “são situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas pelo direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana.”.

A atividade do Estado como um todo e, no caso em questão, a existência e uso dos bens públicos de uso comum estão ligadas ao exercício desses direitos fundamentais. Pode parecer meio estranho que algo tão simples como é o uso de certos bens de uso comum esteja ligado aos direitos fundamentais, mas isso acontece.

Como citamos acima, o uso de bens comuns pode estar ligado à: liberdade de locomoção, liberdade de manifestação e de reunião, direito ao lazer, direito ao acesso a recursos hídricos, direito à alimentação, no caso da extração de alimento dos mares, rios e lagos de uso comum.

Direitos econômicos também podem estar presentes, como o uso de praias livremente por comerciantes ambulantes ou fixos. Também entra nesse caso o uso de praças e logradouros públicos para a venda de mercadorias e a subsistência das pessoas.

Esses exemplos mostram que o uso dos bens públicos viabiliza o exercício de certos direitos fundamentais muito importantes para a coletividade e até mesmo para o próprio indivíduo humano. Quando são usados de maneira regular, os bens públicos de uso comum fazem com que sejam promovidos os direitos fundamentais, como foi dito anteriormente.

Assim, quando os bens de uso comum do povo são usados irregularmente, acabam surgindo obstáculos ao exercício pleno de direitos fundamentais.

Celso Antônio Bandeira de Mello diz que o uso dos bens públicos pode se dar de duas maneiras. Primeiramente, há o uso normal, ordinário, que já falamos anteriormente. É o uso do bem conforme com a normalidade, sem causar nenhum tipo de desordem ao seu exercício normal. (MELLO, 2008).

Há também o uso anormal dos bens públicos. Esse uso anormal, segundo Celso Antônio Bandeira de MELLO (2008, p. 894) é:

quando o uso de tais bens, embora correspondente à destinação específica, principal, que lhes é própria, for extraordinário, isto é, efetuado em condições incomuns, causadoras de incômodos ou transtornos para o uso de terceiros ou onerosas para o próprio bem.

O autor cita como exemplo o transporte, em via pública, de veículos muito pesados, que carreguem maquinário muito grande (MELLO, 2008). Podemos citar como exemplo o uso de uma praça para apresentação musical que atravessaria a madrugada. O uso desse bem público estaria afetando o uso normal que se espera de um bem como esse, afetando a ordem pública.

Por isso, nos casos de uso extraordinário do bem, é preciso uma autorização ou permissão do uso do bem público comum. A autorização é concedida segundo Celso Antônio Bandeira de MELLO (2008, p. 894) quando “a autoridade administrativa faculta o uso do bem público para utilização episódica de curta duração”.

Esse é o caso, por exemplo, da realização de um passeio ciclístico, que irá atrapalhar o trânsito numa localidade em certo período de tempo. Mesmo que a Constituição garanta a liberdade do exercício do direito de reunião, como foi dito, é preciso que o poder público autorize a realização de ato como esse, porque poderá causar desordem nas atividades normais da sociedade.

A permissão, por sua vez, segundo Celso Antônio Bandeira de MELLO (2008, p. 896):

É o ato unilateral, precário e discricionário quanto à decisão de outorga, pelo qual se faculta a alguém o uso de um bem público. Sempre que possível, será outorgado mediante licitação ou, no mínimo, com obediência a procedimento em que se assegure tratamento isonômico aos administrados.

Esse é o exemplo de um pipoqueiro que pede a permissão para instalar sua barraca numa praça, do dono de bar ou restaurante que pede para usar a calçada para colocar mesas, do jornaleiro que pede para colocar a sua banca num logradouro público.

A permissão ou autorização constituem os meios adequados e legais para que o particular utilize o bem público de maneira extraordinária. Mas acontece que o uso desse bem público pode se dar de maneira ilícita, ferindo o processo legal administrativo correto. É o que acontece com o apossamento e uso do bem público feito sem a observância das disposições legais.

Apossamento significa a ação de tomar a posse, de tomar para si e usar como se fosse dono determinado bem. Segundo o art. 1.196 do Código Civil: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.”. Esses poderes seriam o poder de uso e gozo do bem em questão.

Esse uso a partir do apossamento é uma coisa ilícita. Consiste na pessoa que passa a exercer uma atividade de posse, exercendo sobre determinada coisa um poder quase igual ao poder de proprietário. Seria o mesmo exemplo do jornaleiro que usa parte de uma praça para colocar a sua banca, mas não faz isso através das vias legais. Apenas coloca o seu material de comércio em cima da praça e passa a utilizar aquele espaço como seu.

Esse uso que não segue o procedimento administrativo regularmente acaba gerando uma violação aos direitos fundamentais por diversos motivos.

Primeiro, a pessoa que se apossa de bem de uso público está ferindo a ideia de pertencimento de todos daquele bem. É muito comum que as pessoas que simplesmente tomam posse de bem público comecem a pretender usar aquilo indefinitivamente, não permitindo que outras pessoas possam usar ou gozar daquele bem.

Além disso, o apossamento irregular do bem de uso comum fere o princípio do devido processo legal, porque a pessoa acabou passando a exercer a posse sem observar as disposições legais corretas. Como já foi trazido na citação de Celso Antônio Bandeira de Mello, o processo de permissão do uso de bem público, por exemplo, deve ser feito através da licitação ou de outra modalidade que se assemelhe a ela, para garantir que poderão ter acesso àquele bem todas as pessoas.

CONCLUSÃO

Assim, o uso irregular do bem público comum do povo afeta diretamente a atividade administrativa, pois compromete a realização dos fins pelos quais foi criado o Estado, que são a promoção dos direitos de liberdade, segurança, lazer e mesmo alimentação.

É papel do Estado fiscalizar os possíveis desvios no uso correto dos bens de uso comum do povo através de seu poder de polícia. Mesmo os desvios que possam parecer mais pequenos, como o apossamento de uma área pequena de uma praça por um jornaleiro, pode significar a supressão de direitos fundamentais de outras pessoas, o que o poder público não pode permitir.

É preciso que sejam preservados os princípios da administração pública, especialmente o da legalidade, referente a concessão e a permissão concedidas pelo Estado de maneira devida, respeitando o devido processo legal, e o da moralidade, que comanda que todos respeitem os limites morais e éticos dentro da administração pública.

Apenas a partir da fiscalização e da conscientização da importância dos bens públicos para toda a coletividade é que será possível manter uma administração pública proba, correta e, acima de tudo, que promova os direitos fundamentais dos seus administrados.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. direito administrativo descomplicado. 19. e. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011.

 

CARVALHO FILHO, José dos Santos de. Manual de direito administrativo. 20ª Ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - Vol. 1 - São Paulo: Saraiva, 8ª ed, 2010.

 

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

 

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo - 15ª edição, rev. ampl. atual. São Paulo: Malheiros, 1998.



[1] Artigo científico elaborado em outubro de 2014.

[2] Graduando(a) em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará – FAP

[3] Graduando(a) em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará – FAP

[4] Graduando(a) em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará – FAP