* Primeira parte do artigo "O processo de desumanização dos judeus como facilitador do Holocausto", elaborado como conclusão do curso de pós graduação em História Contemporânea no Centro Universitário Geraldo Di Biase. O grande filósofo Jean Paul Sartre chegou a afirmar que "se o judeu não existisse, o antissemita inventá-lo-ia."1 Parece uma boa conclusão quando descobrimos, em diferentes épocas, locais onde não existem judeus e mesmo assim pode-se notar traços de antissemitismo na sociedade.2 Alguns podem dizer genericamente que se trata de um caso típico de "bode expiatório". Nesta expressão, está presente a ideia de que uma pessoa ou grupo é culpabilizado por algo, sendo alvo de múltiplas emoções - como a raiva e o medo ? que poderiam prejudicar a coesão social se não fossem expiadas neste(s) indivíduo(s).3 No entanto, esta teoria é duramente atacada por uma das maiores especialistas em antissemitismo ? Hannah Arendt. Falar em "bode expiatório" para explicar a perseguição aos judeus é esconder a seriedade do antissemitismo e as causas que colocaram este povo no centro destes eventos. Afinal de contas, pergunta a autora, isso "não significa que o bode expiatório poderia ser qualquer outro grupo?"4 Por que os judeus? Antes de continuar, é importante mencionar que a palavra "antissemitismo" contém um erro grave. A palavra "semita" ou "semítico" diz respeito à língua, excluindo-se a etnia ou a religião. Além do hebraico, o árabe, por exemplo, também é semita. Foi o uso do termo que tradicionalmente foi sendo relacionado somente aos judeus. Foi somente na segunda metade do século XIX que surgiu o Antisemitismus. O alemão Wilhelm Marr queria usar uma palavra que diferenciasse o antijudaísmo de sua época do precedente. Desta distinção trataremos mais adiante. Por ora, veremos como a manifestação do antissemitismo precedeu e muito o surgimento da palavra.5 A origem deste sentimento em relação aos judeus é bem antiga. Para Yehuda Bauer, professor da Universidade de Jerusalém, esta perseguição tem raízes culturais. Alguns princípios do judaísmo como a igualdade e as críticas à escravidão e à autoridade fizeram deste povo um perigo para a Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma, que não poderiam tolerar tais idéias, completamente contrárias às bases de suas sociedades.6 Além disso, os judeus incomodavam pela sua cultura de não assimilação. Para muitos, esta última atitude era, na verdade, uma resposta aos ataques e não uma característica intrínseca do povo judeu.7 Na Diáspora da época Romana o judeu espalhou consigo o antijudaísmo, carregado de dois aspectos ? ser diferente e ter outra religião.8 Antes mesmo de o Cristianismo se tornar a religião oficial do Império, vários escritos da Igreja já condenavam os judeus. Já durante a Idade Média, eles recebiam as mais variadas descrições: "filhos do próprio diabo", "um povo ímpio e insociável", "não inventaram nada de útil na vida", "não produziram nem homens notáveis nem sábios ilustres", "tentaram corromper os costumes", "exalam mau cheiro", "uma nação perniciosa às outras", "para eles é profano tudo aquilo que é sagrado para nós", "desordeiros e sediciosos", "têm chifres, orelha de porco, barba de bode, rabo e soltam um odor mefítico" "pestes do universo", "inimigos de Deus", "rebeldes", "raça de víboras", "delatores", "caluniadores", "fermento farisaico", "malditos execráveis", "apedrejadores", "inimigos de tudo o que é belo", "corrompidos, devassos e cúpidos". As sinagogas eram vistas como "um antro de bandidos, a sede dos demônios e da idolatria" e suas preces são comparadas ao grunhido de porcos e ao zurrar dos asnos.9 O antissemitismo da população era baseado em idéias como o deicidio10, a profanação da hóstia sagrada11 e aos supostos rituais macabros12 realizados por este povo. Aos poucos foram surgindo os guetos, que apesar de representar um claro gesto de exclusão acabou por proteger esta população dos ataques de cristãos ? os chamados pogroms13. Este isolamento acabou por reforçar o que mais caracterizava os judeus, oportunizando a manutenção da cultura judaica e dos laços de união diante de um agressor externo. Mesmo sabendo que a base religiosa era fundamental para a perseguição aos judeus na Idade Média, não podemos deixar de mencionar os aspectos econômicos e sociais. Proibidos de possuírem terras, aos judeus só restaram o comércio e o crédito. Soma-se a isso o fato de que a usura era considerado um pecado pela Igreja Católica e proibido aos cristãos. Aos poucos a associação dos judeus com o dinheiro tornou-se muito forte, a tal ponto que a imagem do "judeu avarento" ser uma das mais presentes até os nossos dias.14 Não importa qual seja o argumento, a origem é a mesma. Chamado de revolucionário ou reacionário, isolacionista ou querendo se misturar, comunista ou capitalista. Segundo Paulo Geiger15, "os motivos são alegações, racionalizações e explicações de um preconceito necessário." Passando da Idade Média para a Moderna, não pensemos que a Reforma Protestante aliviou a situação dos judeus. Dois dos ícones deste evento, Lutero e Calvino, possuem escritos reveladores que transbordam antissemitismo. O primeiro, em sua obra "Sobre os judeus e suas mentiras" orientava seus fiéis a queimarem sinagogas, além de escrever que "eles são filhos do diabo, condenados às chamas do inferno."16 Já Calvino dizia que "os judeus estupidamente devoram todas as riquezas da terra com sua cupidez desenfreada."17 Nem mesmo um movimento que inspiraria a emancipação dos judeus tempos depois deixou de ter seus textos antissemitas. Um dos maiores nomes iluministas, Voltaire, teria afirmado em um artigo "Juifs", no Dictionnaire Philosophique: "Em suma, consideramo-los apenas um povo bárbaro e ignorante, que há muito uniu a mais sórdida avareza á mais detestável supertição e ao ódio mais invencível pelos povos que os toleram e os enriquecem. Devíamos ainda simplesmente queimá-los."18 Em suma, no decorrer da sua história o judeu foi sempre o diferente. E o preconceito não ocorre com alguém semelhante ao preconceituoso. Neste aspecto, argumentaria a psicanálise, o antissemitismo é antes de tudo um fenômeno psicológico, que só depois se torna social.19 Por fim, há uma corrente que enxerga com outros olhos a história das perseguições aos judeus. Para esses autores não existe um antissemitismo. Pelo contrário, são os judeus que sempre quiseram se isolar pelo mundo, inclusive praticando uma espécie de eugenia, para se defenderem da competição com os não judeus. O que alguns chamam de antissemitismo nada mais seria do que uma reação natural, algo como um "contra-ataque" do mundo diante desta atitude. A culpa do antissemitismo seria, portanto, dos próprios judeus.20 1- SARTRE, Jean Paul. Reflexões sobre o racismo. Rio de Janeiro: Difel, 1979, p. 8. 2- NOVINSKY, Anita. O racismo e a questão judaica. In Lilian.K.M. Schwarcz e R.S.Queiroz (org.) Raça e Diversidade. São Paulo, Edusp/Estação Ciência, 1996. Disponível em: Acessado em: 29/09/2010. Cf. BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit. P, 101. 3- JOHNSON, Allan G.. Dicionário de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 27. 4- ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Anti-semitismo, instrumento de poder. Rio de janeiro: Documentário, 1975, p. 24 e 26. 5- FONTETTE, François de. Op. Cit. p. 9-10. 6- Apud NOVINSKY, Anita. Op. Cit. 7- SARTRE, Jean Paul. Op. Cit., p. 58. 8- Ver GEIGER, Paulo. Antissemitismo. In: Nunca Mais. Educando para a cidadania e a democracia. 1ª jornada interdisciplinar Intolerância e Holocausto: como estudar e ensinar. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, 2010. 9- FONTETTE, François de. Op. Cit., p. 21; 24; 30-31. 10- Acusação pela morte de Jesus. Muitos usam como base a passagem de Mateus 27,25: "Que o seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos", teria dito o povo judeu após "condenar" Jesus e absolver Barrabás. 11- Dizia-se que os judeus, por exemplo, chicoteavam a hóstia, até que ela sangrasse (sic). 12- O sumiço de crianças num povoado era logo "solucionado" com a acusação de que os pequenos eram sacrificados em rituais religiosos pelos judeus. 13- Palavra de origem russa que define um organizado, embora aparentemente espontâneo, ataque de multidão à determinada coletividade judaica, com saques, violência e massacre. Definição retirada de ARENDT, Hannah. Op. Cit., p. 106. 14- A imagem que surgiu na Idade Média pelos motivos expostos não teria o porquê de se manter até hoje. No entanto, a tradição criou o estereotipo, que se torna mais forte do que o objeto real. Vide GEIGER, Paulo. Op. Cit, p. 43. 15- Idem Ibidem, p. 45. 16- ZAGNI, Rodrigo Medina. As Profundezas do Intangível: Relações entre o antissemitismo religioso e o antissemitismo "científico" na justificativa nazista para a Shoah. Aula inaugural do curso "Panorama Histórico do Holocausto", USP, 02/08/2008. Disponível em: . Acessado em: 27/09/2010. Cf FONTETTE, François de. Op. Cit., p. 58-59. 17- BARON, Salo W. Op. Cit., p. 62. 18- Idem Ibidem, p. 137. 19- Afirmativa baseada em BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 43. Por sua vez, o autor citado menciona uma obra chamada "Distúrbios sociais e antissemitismo", de AKERMAN E JAHODA. 20- Um dos defensores desta ideia é o psicólogo Kevin McDonald, nas obras "Um povo que habita sozinho" e na monografia " Compreendendo a influência judaica". Apud BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 40-41.