Quando minha sobrinha, aos prantos, me contou que estava tudo preparado para a Festa Junina no colégio, mas foi suspensa devido a chegada do material novo para o ginásio que necessitou ser guardado no pátio que eles limparam. Imediatamente lembrei da festa de aniversário do "diáia".
O verão começava a entrar em Porto Alegre, haviam acabado as aulas, ainda haviam sobras das festas natalinas e de ano novo. Nas vilas não há reocupação com o "veraneio de férias". Para quem mora nas vilas, veranear é passar um sábado ou domingo na beira do lago do Guaíba, dar uma "esticadinha" até o Lami ou viajar num final de semana em excursão até a praia do Pinhal ou até as "prainhas" da Barra do Ribeiro ou Itapuã.
Não havia notícias de desemprego, mal atendimento dos postos de saúde, a propósito só tínhamos 1 posto de saúde, era enorme quase um hospital. Mas eles existiam, somente não podiam ser divulgados porque o governo militar não queria abalar a moral do povo. Assim como o democrático governo do "pé-redondo" do Lula.
Tudo transcorria tranquilo "no ano de nosso senhor" (sempre quis dizer isso!) de 1978. Na rua onde morávamos, eu e os demais guris, estávamos reunidos naquela famosa escadaria do bar. Planejávamos, sob o olhar desconfiado da minha mãe, fazer uma "reúna" (uma festa). Em Janeiro e Fevereiro, os lugares onde íamos geralmente fechavam ou tinha pouca guria. A maioria dos guris já trabalhavam nos supermercados, armazéns, açougues, bares e lancherias da redondeza e não queriam gastar o salário para dançar com eles mesmos. Então decidimos fazer a festa. A entrada franca, a vila inteira participa e a gente ganha uma grana também, vendendo os "refri" e os salgadinhos e cigarros. Estava tudo organizado, mas para dar partida tínhamos que estar com o local definido, quer dizer, o local seria a casa do "snooker", que estava para alugar, a preocupação era encontrar uma desculpa para os meus pais liberarem o local.
A casa do Snooker, era uma casa verde, de madeira, e além dos dois quartos, ela tinha duas peças enormes na entrada. Quando o snooker funcionava ali ficavam as mesas e nos quartos o barzinho e a rouparia. Se localizava ao lado do bar, mas devido as muitas discussões e brigas meu pai resolveu fechá-la. O bar era familiar e como morávamos ali também, não ficava bem termos esse tipo de problemas quase toda a noite. O ponto bom era que "os pinguçus" deixavam de "beber" no bar. Mas mesmo assim ele resolveu fechar.
Voltando à reunião, a ideia era fazer uma limpeza, nas 2 peças grandes que seriam o salão, no quarto lateral, a venda de lanche e naquele maior dos fundos, colocamos as cadeiras para quem quisesse "conversar", etc e tal. O Lesmão, o Tulio e o Mosquito ajeitam o pátio, Eu, o Nenê e o Mirim a casa. Ah, precisaríamos comprar 4 lâmpadas, as compras ficam com o Alemão. O problema era encontrar um motivo para convencer a mãe. O pai "era totalmente da gente", mas não mandava nada. Era, mais ou menos assim como o Ulisses Guimaraes. Pensamos em dar-lhe um crédito, mas nesses casos que envolvem mais de 3 pessoas, "legitimiza" uma reunião de grupo e com certeza ele passaria para o DOPS domiciliar autorizar.
Falando em DOPS, certa vez, meu pai precisou ir até o "DOPS da azenha", era uma Delegacia de Polícia. Aconteceu uma briga no bar e ele tinha que "depor". Lembro que havia uma escadaria com dois leões, um em cada lado. Foi muito engraçado, porque ele perguntava ao meu pai e a minha  mãe respondia, ele somente ascenava. A todo o momento o delegado, falava: "meu senhor, eu somente posso registrar o que o senhor falar", e começava tudo outra vez.
- Bem, temos uma semana para "amaciar". Vamos fazer tudo que ela mandar sem reclamação, falei para os meus irmãos. Ah, importantíssimo, vocês não devem chamar a gente para jogar ou vir aqui no bar para conversar", me dirigi aos guris. Ela devia achar que jovem não tem o que conversar. Bem temos que resolver hoje ou amanhã.
...
Porém, mãe é uma praga mesmo, no terceiro dia, ela já tinha "sacado" a jogada. Meu Deus, não dava para acreditar, parecia que ela tinha um sexto sentido mesmo.
- Voces estão querendo alguma coisa, ou pior, fizeram alguma coisa errada ? Vão trazer outra "mundana" para casa novamente ? (Essa, nós ouvinos até os 20 anos, eu acho). Combinem com o pai de vocês, ele gostou ! Coitado, ele somente sacodia a cabeça.
- Não acham melhor me falar logo, para terminar a expectativa.
Meu Deus, como pode, ela é mãe da gente. "Tava" sempre na defensiva, até parecia que  a gente somente fazia bagunça. Pombas, a gente trabalhava duro junto com eles e ainda ficávamos "naquele colégio" dos padres, que mais parecia a "correição", aprendendo a cortar madeira,  usar pirógrafo, fazer modelos de roupa e ainda tinha as aulas normais, um verdadeiro massacre. E tinha a Profa. Carmem, bem velhinha, ensinava "artes domésticas", era uma bagunça. Ninguém tava nem aí pra ela!
Bem, vamos ter que mandar bala. Ainda não tinhamos decidido o que dizer, pensei rápido e "saí falando", se demorar ela desconfia e dá aquele tijolaço a sêco, "tu tá mentindo":
- Não, é que o Diáia tá de aniversário. (Eu nem sabia quando ele aniversariava e, claro, ela também não!). A gente estava pensando, se  poderíamos usar a casa do Snooker. A casa dele é muito pequena e não dá para fazer lá (a casa tinha 2 peças, uma era sala, cozinha e varanda e a outra 4 dormitórios, entenda-se camas).
- Hum, disse ela. A casa tá pra alugar!  Não tem luz e deve estar imunda, vocês podem pegar uma doença lá.
Que importava, se a gente conseguisse "pegar" umas guria já tava valendo. Silêncio total, continuou cortando as batatas, olhava para nós e para a janela. É agora ou nunca, ela amoleceu, comecei a argumentar, não podia deixar esfriar.
-  A gente pensou em puxar um fio do galpão, fazer a limpesa e comprar as lâmpadas.
Ela colocou as batatas no fogo,  gesticulou  para eu ir mexendo.
- Todos são menores, não tem nenhum marmanjão? Nem uma "amiga" do Dragão verde? (Espinhou novamente, como já disse, isso durou anos). O
O sinal amarelo, pensei. Minha mãe sempre foi uma pessoa muito simples e direta para resolver qualquer questão e, nos criou da mesma forma. "Se você não concorda com o assunto, não se desgaste, não alimente esperanças".  Logo, quando ela fazia uma pergunta era sinal amarelo, vai dar negócio como diz meu pai.
- Vê com o teu pai, o que ele acha disso?" E se ele vai "reparar" vocês. Antes terminem tudo por aqui, e avisem aquele "grandão" desocupado (era o lesmão), que preciso que tire as cortinas para mim. Ela ficou falando uma śerie de outras coisas que eu nem ouvia mais, a partir do "pedir para o papai" , eu já comecei a pensar na festa, tinha "n' coisas mais importantes para me preocupar.
Como já sabíamos, ele concordou.
- Tem bastante trabalho, aquela entrada está virada só em mato, temos que puxar um fio de luz, podem usar as lâmpadas da garagem e a do galpão. "Temos", esse era o seu Nésinho, o judeu do Morro! O contrário da carcereira da Febem !
Vocês vão usar somente as peças da frente?
Não. Expliquei o iríamos fazer
Bom, muito bom. Peguem aquelas cadeiras que estão lá no depósito, algumas precisam de concerto. Vocẽs precisam de "algum" adiantado.
Não digo! Meu pai era assim, jovem tem que ser jovem, subir a escada degrau por degrau. Devemos fiscalizar mas não intimidar. Pena que a outras pessoas não pensavam da mesma forma.
- Não, não. Tudo vai ser dividido (modestia parte, já tava tudo organizado, a coleta, as bebidas ...).
Trabalhamos duro na quarta, quinta e sexta. No final da tarde de sexta-feira tudo limpo, pátio capinado, casa lavada, luz "ligada" e o "escambau". Os guris estão comentando que vem até umas gurias da 26 de dezembro. O pessoal da rua calçada lá de baixo das casas de mateiral (alvenaria). Amanhã pela manhã (sábado) levamos as cadeiras, o som, a comida ...
Sábado, o dia "D".
Eu atendia no bar, mas os olhos estavam na rua. Os guris me chamavam, conversávamos e saía um para cada lado. A mãe, o olho que tudo vê, ligada.
- Deixa o balcão comigo e vai resolver o que falta. Tanta confusão por um aniversário. Não quero essa gurizada a todo momento te chamando. Serviço é serviço e não deve ser interrompido.
Nem deixei ela se arrepender, sai correndo.
Deveriam ser onze ou onze e meia manhã, estávamos sentados na escada quando o "fulano" surge correndo. -"Vem vindo" um caminhão com uma mudança e o "motora" tava perguntando onde era o Bar do seu Aaron.
Era inacreditável! Saindo do nada, um caminhão estacionou na frente da casa. Ficamos ali parados, incrédulos. Começaram a descarregar. Meu Deus, era ali mesmo. Cadê o Bin-Laden para lançar um avião sob aquele caminhão (ainda não estava em atividades!!). Meu Deus, o que vamos fazer? Nada. Não tínhamos o que fazer.
Sentamos nas escadas do bar e assistimos a mudança. Meu pai também veio até a frente do bar.
- Que bola fora meninos ! Ainda bem que casa tá fechada? Me levantei rapidamente.
- Pai, temos que pegar as lâmpadas e os baldes e  desligar a luz também, tá tudo lá atras.
- Não, ninguém faz nada. Disse ele. A luz tu desliga o fio pelo galpão. Deixa fio lá, só corta.
Foi o final de manhã mais triste das nossas vidas. Cançados, sem festa e ainda perdermos um bom dinheiro. As "guria e os guri "viriam sem dúvida, não dá tempo de avisar. Entramos para o bar e sentamos. Eu, meus irmãos, meu pai, o lesmão e duas amigas nossas. Os guris iriam lá para esquina avisar o pessoal fosse aparecendo.
Minha mãe também juntou-se a nós: - Muito bem, deveríamos ter ligado para a imobiliária. Imagina se os inquilinos chegam em plena festa.
Silêncio total. Ela só está preocupada com os inquilinos. Quero mais que esses inquilinos explodam, pensei.
- Seu Aaron, o senhor "compra de volta" as bebidas e os salgadinhos? Perguntou o alemão, entrando no bar. O Alemão era pragmático, sempre raciocinava quando ninguém mais o conseguia. Acho que no meio de um incêndio ele diria: "separem o que é metal e ferro que a gente pode vender".
Minha mãe respondeu quase de supetão: - Não, ninguém vai comprar nada. Vocẽs podem fazer o "aniversário" (frisou bem - devia saber, nada ela desconhecia) na garagem. Afinal vocês trabalharam duro para limpar aquilo lá. Pode ser né, Nésinho? Tu põe o carro para fora, voces tiram aquelas ferramentas das paredes, no quartinho de costura voces fazem de bar. Está tudo limpo. Mas termina, o mais tardar,  2 horas da manhã, certo?"
Nem respondemos, saímos correndo. Até minha irmã, a "predadora natural" veio junto. Avisei os guris. Já passavam das 5 horas da tarde, algumas gurias já estavam lá na esquina naquele trololó de mulher. Todo mundo correu, ajudou da forma que podia.
As 7 horas como o combinado, o som já estava ligado, colocamos algumas cadeiras e mesas na áreea da casa, ficava de frente para a cidade e na lateral da garagem, perfeito.
A festa foi um sucesso. É inacreditavel D. Armênia fez um bolo enrome, dançou  a famosa "rhumba girl" da Nicolete Larson com meu  pai. Abafaram. Conversaram com todos, encontrou até a filha de uma amiga. Nove horas eles saíram. Não aguentava mais dançar com a luz de 100 watts acesa.
Nós estamos indo,  mas coloquei "escutas" nas paredes. Comportem-se. Mãe, quem vai entender.
Pegamos o saco de lixo rosa e enfiamos na lampada. Legal ! Na hora marcada encerramos.
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Ah! Descobrimos também que o diáia fazia mesmo aniversário em janeiro. Deu tudo certo!
Alguns dias depois ela mesma contou o ocorrido para a senhora que alugou a casa, que não entendia quem limpou a casa antes da chegada da mudança, e quem colocou as lampadas. Ela nos procurou para pagar, mas meu pai já tinha feito. Como ela falou na frente dele, não pudemos receber duas vezes.
Daquele dia em diante aprendi a amar mais ainda a minha mãe. Não somente pela "reúna", mas porque tanto ela como meu pai sempre  nos diziam: "todos tem direito de fazer o que desejar, mas quem trabalha mais ainda". Descobri que ela é séria e rude quando tem que ser. Como ela mesma dizia: "alguém tem que impor limites e eu não sou mulher de me esconder".
Vocês vão ocupar a garagem novamente?
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