A agroindústria foi do paraíso ao inferno em questão de meses. Turbinada pela aposta de investidores, a atividade, em especial a sucroalcooleira e a dos frigoríficos, surfou na onda de euforia do dinheiro fácil dos investidores e bancos. Nos últimos meses as empresas dos dois setores apareceram no noticiário especialmente por conta de pedidos de recuperação judicial, fusões e aquisições.

Foi assim com o negócio entre Sadia e Perdigão, a compra da Nova América pela Cosan e do Grupo Santa Elisa pela Dreyfus, alguns dos negócios mais recentes do setor. Ou os casos de pedido de recuperação judicial dos frigoríficos Independência, Margen, Estrela, Arantes, IFC e Quatro Marcos e dos grupos sucroalcooleiros Infinity Bio-Energy Brasil e Companhia Albertina.

Um dos reflexos da baixa em parte da atividade no campo chegou à Bolsa de Valores de São Paulo (BM&F Bovespa). De 1º de setembro, início da crise econômica mais aguda, até agora, o valor de mercado das empresas da agroindústria na bolsa caiu 12,68%, mais que o dobro da queda apresentada pelo conjunto das companhias listadas (-5,38%).

A Equifax, empresa especializada em análise de crédito, confirma o destaque negativo: "O setor de frigoríficos vem sofrendo muito. Entre os motivos está a grande dependência das exportações, que caíram. A produção teve de se voltar ao mercado interno e com o excesso de oferta os preços caíram. A situação também ficou complicada para as usinas de açúcar e álcool".

Ainda segundo a empresa, outros setores, teoricamente mais expostos aos dias difíceis da economia, conseguiram fôlego e escaparam de engrossar a lista dos pedidos de recuperação judicial porque contaram com a ajuda governamental, que reduziu o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI)de veículos, material de construção e da linha branca.

Além disso, empresas de maior porte e menos debilitadas tiveram mais facilidade na obtenção do escasso crédito bancário.

Quem ainda não tinha aproveitado a sobra de caixa no mercado para vender a um preço valorizado sua empresa teve de correr para a recuperação judicial ou negociar na bacia das almas.
 
Recuperação judicial
Empresas ligadas ao agronegócio, como frigoríficos, usinas de álcool e produtores agrícolas, lideram a lista das companhias que apelam à recuperação judicial.

De janeiro a maio, 300 empresas entraram com pedidos de recuperação, mecanismo que substituiu a concordata. Esse total é o triplo do registrado em 2008.

O agronegócio, que depende de vender aos países mais afetados pela crise, responde sozinho por mais da metade do faturamento dessas 300 companhias.

Entre grandes empresas, as do setor são as que mais recorrem à antiga concordata; no geral, pedidos triplicaram neste ano

Empresas exportadoras ligadas ao agronegócio brasileiro, como frigoríficos, usinas de álcool e produtores agrícolas, são as companhias de grande porte que mais apelaram neste ano à recuperação judicial, mecanismo de proteção contra a execução de dívidas por credores, que substituiu a concordata após a Lei de Falências, de 2004.

Neste ano, até o final de maio, 300 empresas de diferentes segmentos recorreram à recuperação judicial -o triplo dos pedidos de 2008.

Segundo levantamento da Serasa , na amostra há 18 frigoríficos ou empresas do setor de carnes e derivados, 11 produtores agrícolas e 10 usinas de álcool, entre outros setores .
Juntos, esses segmentos somam 39 empresas e representam metade do faturamento anual das 300 que buscaram proteção contra credores.

Em comum, essas empresas se beneficiaram do boom no preço de commodities até meados de 2008 e tiveram de se endividar para manter um ritmo frenético de investimentos, compatível com uma promessa que depois foi abortada pela crise.

São companhias que dependem quase que integralmente das vendas a alguns dos países mais prejudicados pela recessão, sendo que muitas perderam triplamente: com preços, em quantidades vendidas e por prejuízos financeiros com hedge [proteção] cambial.

Empresas menores
Criada pela Lei de Falências para ajudar empresas a se reerguerem, a recuperação judicial "estreou" em julho de 2005, com a adesão da Varig. Como a economia entrava em um ciclo virtuoso, poucas empresas tiveram interesse no mecanismo. Para os críticos, a regra havia sido criada só para resolver o problema da companhia aérea e dificilmente chegaria a empresas de menor porte.

O levantamento da Serasa mostra que a recuperação judicial chegou a pequenas empresas -180 companhias com faturamento anual de menos de R$ 2,5 milhões deram entrada no pedido em 2009. Porém, as empresas grandes, com receita de mais de R$ 50 milhões, respondem por 85% do volume financeiro envolvido no processo. As 180 menores não chegam a 5% desse volume.

Para especialistas, a recuperação judicial ainda é um processo caro, que envolve a contratação de inúmeros profissionais especializados e de mediadores para fechar acordo de credores em torno da retomada de uma empresa.

Motivos para a crise
A liderança do agronegócio na lista de recuperações judiciais ocorre porque a crise internacional pegou o setor no contrapé. Em constante expansão para atender a uma crescente demanda externa, parte do agronegócio sentiu retração internacional da demanda e total ausência de crédito.

Os setores sucroenergético e de carnes foram os mais afetados. Apesar dessa liderança indesejável, o agronegócio mostra nessa crise uma recuperação acima da prevista. É o que ocorre com o setor de grãos.

O setor de carnes, que somou 41% do total do faturamento das empresas envolvidas em recuperação judicial, vinha em uma corrida desenfreada por novas participações nos mercados interno e externo.

Alguns negócios, como as compras de frigoríficos na região do Mercosul -inclusive as internas-, foram feitos por valores bem acima do real. Com isso, as indústrias mais descapitalizadas, e que dependiam do crescimento das vendas para girar o caixa, foram duramente afetadas.

Além de sentir retração nas vendas externas, os frigoríficos, que tinham crescido no período favorável de matérias-primas com preços baixos, passaram a ter gastos maiores com a recuperação das cotações do boi, antes defasadas.

No setor sucroenergético não foi diferente. A perspectiva de um grande avanço do mercado externo do álcool combustível, principalmente nos Estados Unidos, gerou investimentos históricos no setor.

As usinas ficaram prontas e o mercado externo não respondeu como o esperado. Ao contrário, houve uma inversão da tendência externa. O açúcar passou a ser valorizado, e o álcool, apesar da demanda interna forte, está sendo negociado abaixo do custo de produção.

Enquanto as exportações de açúcar crescem, as de álcool não avançam. Sem crédito, as empresas estão com dificuldades para gerar caixa.

As empresas mais afetadas são exatamente as que têm os projetos mais modernos e optaram apenas pela produção de álcool, em que perdem dinheiro. Já as que têm flexibilidade elevaram a produção de açúcar, que rende mais no momento.
Produzir açúcar neste momento rende 100% mais do que álcool anidro e 119% mais do que o hidratado, diz o Cepea.

Principal polo de produção sucroenergético e de carnes, São Paulo foi o Estado mais afetado, respondendo por 71% do faturamento das empresas que pediram recuperação judicial.

A falta de crédito afetou, também, vários outros projetos agropecuários, muitos montados em cima de endividamento e de esperanças de constante evolução do setor.
 
Quem são as vítimas
No setor de carne bovina, um dos mais afetados pela crise internacional, a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) contabilizou 50 unidades fechadas ou com abates suspensos. O grupo Independência, um dos principais do Brasil, pediu recuperação judicial e suspendeu os abates em 13 unidades. Dessas, cinco ficam em Mato Grosso, afetado também pelo fechamento de cinco unidades do grupo Quatro Marcos e três do grupo Arantes.

Apenas o grupo Arantes, ao pedir a recuperação judicial, somava dívidas estimadas em R$ 1,5 bilhão. Em Mato Grosso do Sul, o impacto da queda nas exportações de carne foi ainda mais forte: 21 dos 36 frigoríficos suspenderam os abates. Segundo o presidente da Abrafrigo, Péricles Salazar, parte das unidades que tinham parado em todo o País retoma aos poucos a produção, mas a crise está longe de ser superada.

No setor avícola, a crise precipitou a fusão entre a Perdigão e a Sadia, originando a Brasil Foods (BRF). A nova empresa, porém, já surgiu com dívidas de R$ 10,4 bilhões. O maior montante foi herdado da Sadia, que teve perdas significativas com derivativos no ano passado. É dado como certo que a BRF vai enxugar a grande estrutura. No Estado de São Paulo, a Frango Sertanejo, do grupo Arantes, com planta de abates na região de São José do Rio Preto (SP), foi atingida pelo pedido de recuperação judicial da companhia.

Grupos avícolas de menor porte dispensaram funcionários e fecharam unidades. A Frango Forte paralisou abatedouros em Conchas e Tietê, no interior paulista. No pedido de recuperação judicial, a empresa alegou a forte queda nas exportações para a Rússia. A situação se agravou pela queda de pelo menos 10% no consumo interno de frangos, sobretudo no Estado de São Paulo. Centenas de integradores continuam com aviários vazios. Somente na região de Sorocaba, cinco grandes granjas de suínos encerraram as atividades. A crise afetou os países importadores e o setor amarga uma das piores crises da história. As granjas que resistem trabalham com prejuízo.

No setor sucroalcooleiro, a Companhia Albertina, com usina em Sertãozinho (SP), foi a primeira a pedir recuperação judicial no início da crise internacional. Na sequência, o grupo João Lyra, do ex-deputado federal João Lyra, recorreu à Justiça em favor de suas cinco usinas - três em Alagoas e duas e Minas Gerais - atoladas em dívidas. Depois, foi a vez do grupo Naoum, que controla as usinas de açúcar e álcool Santa Helena, Jaciara e Pantanal, em Mato Grosso, entrar com pedido de recuperação judicial. O presidente do grupo, Edison Couto, disse que a medida visava a preservar os 5 mil postos de trabalho.

Outra vítima da crise, o grupo Othon pediu o remédio judicial para suas três usinas na região norte do Rio de Janeiro. No Paraná, esteve à beira da falência a Usina Central do Paraná, do grupo Atalla. O presidente da empresa de consultoria Datagro, Plínio Nastari, acredita que a alta no preço do açúcar pode ajudar essas empresas a se recuperarem e sair da crise. Lembra, porém, que as destilarias, por trabalharem exclusivamente com álcool, vão continuar em dificuldade por causa do preço do combustível abaixo do custo de produção.
 
Crise revela falhas na regra de recuperação
Antessala da falência, a antiga concordata era vista como o anúncio esperado de um calote. Diante do fim anunciado, credores buscavam, desorganizadamente, reaver na Justiça o mais rápido possível bens e direitos.

Inspirada no capítulo 11 da lei de falências americana, a recuperação judicial brasileira buscou promover a melhora da situação financeira da empresa, acompanhada por um interventor nomeado pela Justiça.

A receita tradicional manda reunir credores em assembleia, fechar um acordo em torno de um plano viável de retomada dos pagamentos, vender ativos bons (marcas, patentes, unidades de produção etc) para fazer caixa, voltar a pagar dívidas e seguir vida nova. A crise atual, no entanto, revelou uma série de falhas e de mecanismos que precisam de ajuste, segundo especialistas.
O primeiro problema é que ninguém quer colocar dinheiro novo em uma empresa que deixou de pagar suas dívidas. E isso ocorre no momento em que ela mais precisa de capital para se reerguer.

Outra falha dizia respeito às dívidas trabalhistas, que têm prioridade assegurada no caso de falência. A Justiça do Trabalho entendia que a empresa que comprava um ativo da companhia em recuperação -como marca, bens, unidade lucrativa etc. -herdava o passivo correspondente dos trabalhadores. Só no final de maio que o STF (Supremo Tribunal Federal) definiu, como já dizia a Lei de Falências, que o comprador desses ativos não tem responsabilidade pelo passivo trabalhista antigo, que segue na empresa-mãe que administra a massa recuperável.

Apesar de o governo federal ter promovido a aprovação da Lei de Falências, não há regras tributárias específicas para equacionar os débitos tributários com a União. Cada Estado e município definem a própria política de parcelamentos, sendo que alguns inviabilizam negociação com outros credores ou recorrem à Justiça para recuperar os créditos.

Pelas regras da recuperação judicial, ficam fora da massa recuperável os bens com alienação fiduciária, em que o dono cede a posse desse em garantia da dívida.
O mesmo acontece com os ACC (Adiantamentos de Contrato de Câmbio), papéis em que o exportador adianta em reais a receita que terá em dólares. No caso, o banco passa a ter o direito de receber a venda externa.

O problema é que os ACCs são os principais ativos de empresas exportadoras, que são as que mais recorreram à recuperação judicial. Se ficam fora, não é viável a retomada dessa empresa.

Tudo isso precisa ser revisto. Embora a lei tenha sido feita sobre pressupostos corretos, internacionalmente reconhecidos como válidos, na aplicação a gente recai nas práticas anteriores.

Bibliografia
Jornal O Estado de S. Paulo de 13 de junho de 2009 Jornal Folha de S. Paulo de 14 de junho de 2009
Jornal O Estado de S. Paulo de 15 de junho de 2009 Jornal Folha de S. Paulo de 15 de junho de 2009