As questões ligadas à Ética atualmente vem sendo tratadas de modo a conferir-lhe quase que uma existência própria fazendo-a parecer prescindir do seu principal pilar que é o ser humano. Essa quase existência própria dá-se quando se pensa e se diz que falta ética em determinado lugar, à determinada situação ou mesmo a alguém, como se a Ética pudesse
manifestar e agir per se corrigindo aquilo que tributamos como inaceitável. No entanto, falta por vezes, e não poucas, um entendimento maior de que a falta de ética nas interações e relações humanas surge no vácuo criado pelo ser humano quando sua ação é esvaziada de sentido e seus valores morais estão, a cada dia, mais relativizados. Ou pelo menos os sentidos
guias das ações humanas não são claros e perceptíveis para os outros.

Se Ética for entendida de um modo mais clássico e a partir do ethos grego
como morada dos costumes e como a ação que visa atingir ao bem comum, alguns de seus fatores fundadores surgirão à vista. Morada dos costumes: diferentemente do instinto animal, os costumes e hábitos são essencialmente humanos e formados a partir de uma construção
histórica na vida das sociedades. Neste sentido, o costume humano surge da repetição e da aceitação geral daquele ato como condizente com os desejos de determinada comunidade ou sociedade, podendo ser entendido, também, a partir de uma visão mais ligada à Cultura. Visar
atingir ao bem comum é em relação à mesma comunidade ou sociedade já que o comum, neste caso, assume a função de se referenciar à totalidade dos seres contextualizados nesses povos, ou pelo menos em relação à sua maioria se admitido um viés político democrático ?
entendido como participativo e amplo. E inerente ao bem comum tem-se o tratamento justo.

Com efeito, o costume humano surge da vida social e da partilha entre
semelhantes, a despeito de toda desigualdade que haja, seja econômica ou política. É neste sentido que se deve entender o bem comum ao qual o agir ético visa: o benefício para o justo bem viver de um povo em conjunto. Respeitadas as idiossincrasias de cada sociedade, pode-se
pensar que haja de fato um bem comum que atinja aos seus habitantes de modo universal. Se olharmos sob a ótica da política brasileira atual, por exemplo, será fácil perceber que o Congresso caminha totalmente desalinhado das aspirações populares, incluindo nessas, também, os desejos da classe empresarial que sofre duplamente: com o desperdício do erário e com a manutenção da alta carga tributária (talvez, em função de um ciclo interminável de gastos abusivos que faz o Governo manter a sua sanha arrecadatória). De todo modo, falar de Ética hoje em dia no Planalto Central parece que é gritar para ninguém ouvir.

Aproveitando o exemplo da política nacional dos anos 2000 é que podemos
observar como o vazio moral impera e justifica a falta de ética nesse cenário. Há muito do que reclamar e mais ainda a fazer na busca de soluções para que se altere este quadro, melhorando a relação do brasileiro com a Política e para que a classe política aja de modo congruente aos anseios dos eleitores, visando o bem comum. De votações secretas às CPI que, invariavelmente, não apontam culpados ou impõem penas, até porque a existência ? inexplicável! - do foro privilegiado permite renúncias absurdas para um retorno futuro, enfim, a necessária reforma política não será completa sem uma reforma educacional e conceitual do
brasileiro em geral.

Para começar, o exercício de cidadania visto com vigor no impecheament do
Presidente Collor há muito não aparece. Há pouco mais de um ano, na questão do aumento dos salários dos congressistas houve um início de manifestação que culminou, à época, com a não realização do absurdo: ou seja, a prática da cidadania funciona! Então, um primeiro passo na direção de finalizar os descalabros está no exercício pleno da cidadania. Claro que no dia a dia é bastante complexa a atuação do cidadão comum que trabalha, enfrenta filas de metrô, ônibus, trânsito lento; atuação de presença nas Câmaras Municipais ou Assembléias Legislativas, e o cidadão candango, no Congresso Nacional também. E se é difícil que o
cidadão exerça seus direitos, existem entidades que o representa no âmbito da sociedade civil que deveriam assumir posturas mais agressivas em defesa dos seus representados.

Mas o que vemos diuturnamente é tanto cada cidadão se dedicando aos seus afazeres, que não são poucos, como entidades, salvas algumas ótimas exceções, também se preocupando exclusivamente com si próprias. No entanto, e voltando ao foco central da tese aqui defendida, tais ações se fazem baseadas em um agir moral esvaziado de sentido, ou pelo
menos bastante relativizado se analisado sob um ponto de vista da sociedade como um todo. O entendimento é que o caráter de universalidade dos valores morais se esvaiu completamente restando ao cidadão um caminho a percorrer que diz respeito unicamente a si próprio. A
formação de valores morais que se dava antes em dois ambientes básicos inexiste hoje. Os dois pilares centrais estão a cada dia também mais esvaziados: a família e a educação. A família é substituída a todo instante, ou melhor, suprida, na ausência dos pais, por terceiros que passam a educar os filhos. Não se discute aqui a necessidade de trabalho de pais e mães, as dificuldades impostas principalmente quando se mora em cidades maiores onde o tempo possível de dedicação aos filhos é sempre diminuto. Contudo, é observável a terceirização da educação dos filhos, senão pelos trabalhadores domésticos pelo computador, representante da
internet e do acesso às tecnologias. Podem parecer que agregam, mas sob o meu ponto de vista, as tecnologias atuais têm criado ambientes de convivência, grosso modo, apenas virtuais e mesmo quando presenciais os jovens parecem se bastarem com os seus celulares, iPod, e tudo o mais que é criado para o consumo ? outro vilão que alimenta o corpo, estetiza a vida e esvazia o ser que deixa de valer pelo que é. A família, assim, segue uma tendência terrível já que são estes jovens os futuros pais: a educação se baseará naquela outrora recebida, levando as novas gerações a um esvaziamento ainda maior dos valores morais,
acirrando radicalmente o quadro atual.

A outra instituição falida é a educação, e falo em qualquer nível. A despeito de haver ainda boas escolas, o que foi feito com a educação foi a sua mercantilização, haja visto o número enorme de faculdades com suas especializações, o que acaba banalizando de tal sorte o estudo que a formação humana fica relegada a um plano inferior. O que se vê é a
propaganda dizendo que agora só não tem diploma quem não quer, como se o diploma sozinho fosse capaz de garantir a realização de qualquer atividade. É claro que existem as boas escolas, faculdades e universidades. No entanto, é impossível para elas absorverem a
totalidade de alunos. Desta forma, o que fica é um número sempre maior de escolas em qualquer nível de ensino de baixa qualidade, formando, conseqüentemente, um maior número de cidadãos despreparados para a convivência em sociedade bem como sem capacidade técnica para exercer a profissão escolhida.

Com isto, os costumes e os valores morais vão se perdendo e o universo se fecha na individualidade de cada um que passa a exercer sua própria vontade na condução da vida social. Alguns reflexos: péssima educação no trânsito, enorme concordância e prática de pirataria, menor importância com a coisa pública e uma sensação de que se os políticos fazem
e nada acontece, todos podem fazer - a famosa impunidade -, sendo a coisa pública as ruas, o patrimônio, as cidades e o erário. Um exemplo que pode ser citado e vem de 2006 é do novelista Sílvio de Abreu em entrevista a uma revista periódica quando expôs sua visão a respeito do resultado das pesquisas de opinião sobre o andamento de um roteiro. Na
entrevista, o autor, que dirigia a novela "Belíssima" veiculada na Rede Globo à época, cita os exemplos dos vilões que faziam parte da trama e como o público reagia a eles. Diz, por exemplo, que as "[...] pessoas se mostraram muito mais interessadas nos personagens negativos do que nos moralmente corretos."1 Esta fala pode demonstrar a subversão dos
valores. O autor inclusive compara o comportamento do público em relação a uma novela anterior, "As filhas da mãe", quando dessa, os personagens mais queridos eram os "personagens bons".

Sílvio de Abreu conseguiu perceber naquela época uma correlação da alteração no limite de aceitação do público em relação às ações dos personagens com o momento político vivido no Brasil (havia explodido há pouco o escândalo conhecido como "mensalão") quando diz dos indícios percebidos de que "[...] essa maior tolerância com os desvios de
conduta tem tudo a ver com os escândalos recentes da política."2 Diante disto, acaba prevalecendo uma tolerância com comportamentos outrora totalmente renegados.

O autor, logo no começo da entrevista e diante deste quadro nada animador faz uma colocação que, de certa forma, demonstra o que está sendo dito aqui resumidamente. Ao observar que o público valoriza menos a "retidão de caráter", diz Sílvio de Abreu3: "[...] esse
encontro com o público me fez pensar que a moral do país está em frangalhos." Isto serve para demonstrar que, respeitados os limites desta reflexão, as questões ligadas à universalidade têm encontrado barreiras que impedem a criação de valores morais universais já que o que prevalece, no final, é a posição individual e a busca de bens individuais.

O que chama a atenção é exatamente a permissibilidade do público em relação às ações morais dos personagens, no caso acima, e, com os demais cidadãos de modo geral. Assim, a vida na nossa sociedade vai se deteriorando a cada dia em função de que a Ética não tem mais um fundamento moral válido universalmente. Com isto, tanto são os valores morais quanto os indivíduos, e, arrisco a dizer, quantas são as éticas. Não tenho uma solução pronta a receitar. Levantar a questão é um começo, discutir e levar para a sociedade as necessidades de acerto é um trajeto. Mas tenho a convicção de que qualquer solução passa por uma revisão
dos valores morais e o modo de agir considerando a sociedade e não as individualidades isoladamente. Rever conceitos e entender, realmente, que para se ter um indivíduo ético é preciso que o seu agir moral seja válido e vivenciado em sociedade. Desta forma, um primeiro passo talvez seja voltar a entender a Ética consubstanciada pela Moral e não mais como
meramente sinônimos e muito menos excludentes.


1 Sílvio de Abreu. Revista Veja, Edição 1961, ano 39 ? n. 24. 21/06/2006. p. 11-15. Entrevista concedida a Marcelo Marthe
2 ABREU, loc. cit.
3 ABREU, loc. cit.