O ACESSO EMERGENCIAL AO SERVIÇO DE SAÚDE: POSSIBILIDADES DE CONCESSÃO DE TUTELA DE EMERGÊNCIA

 

             Ana Cláudia Dourado Mendes e Luciana Rocha Gonçalves

SÚMARIO

1 INTRODUÇÃO

2 DIREITO E ACESSO À SAÚDE

2.1 Breve Histórico dos Direitos Sociais

2.2 Direito à Saúde

3 UTILIZAÇÃO DA VIA JUDICIÁRIA: A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

4 CONCESSÃO DE TUTELAS DE URGÊNCIA: POSSIBILIDADES

5 CONCLUSÃO

6 REFERÊNCIAS

 

1 INTRODUÇÃO

 

A saúde, direto fundamental inscrito no artigo 6° da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), apresenta-se, ao lado dos direitos à educação, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social e proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados, como direito social de segunda geração ou dimensão.

Observa-se que os direitos sociais relacionam-se intimamente com o princípio da Dignidade da Pessoa Humana (artigo 1°, III, CRFB/1988), núcleo constitucional supremo e intangível em torno do qual gravitam os demais direitos, na medida em que exigem prestações positivas do Estado que deve buscar efetivá-los por meio das suas políticas sociais e econômicas.

Assim, em um cenário em que se confrontam, de um lado, os princípios da máxima efetividade dos direitos fundamentais, da vedação ao retrocesso social e da garantia do mínimo existencial e, do outro, o princípio administrativo da reserva do possível e da primazia da realidade econômica, surge o instituto da tutela de emergência como garantidor do efetivo acesso e concretizador do direito fundamental à saúde.

O que se pretende neste artigo é discutir acerca do instituto da tutela de urgência aplicado àqueles casos em que se busca, de fato, efetivar o direito de segunda dimensão à saúde quando, tendo em vista a morosidade do Poder Público, tal direito não é atendido de pronto, ocasionando uma demanda excessiva pela busca da efetivação do direito à saúde pela via do judiciário e acumulando em nossos tribunais uma série de causas que versam sobre o tema.

Deste modo, tem-se que o acesso emergencial ao serviço de saúde é conseqüência direta do fenômeno da judicialização da saúde e uma resposta à ineficiência e demora na concretização de citado direito fundamental pelo Poder Público.

 

2 DIREITO E ACESSO À SAÚDE

 

2.1 Breve Histórico dos Direitos Sociais

Os direitos sociais são classificados como direitos de segunda geração ou de segunda dimensão e são resultantes de um Estado Social de Direito, na medida em que exigem prestações positivas, “um agir” ou “fazer”, por parte do Estado.

Os direitos de segunda geração têm como marco histórico a Revolução Industrial Burguesa, a partir do Século XIX. “Nesse sentido, em decorrência das péssimas situações e condições de trabalho, eclodem movimentos como o Cartista na Inglaterra e a Comuna de Paris (1848), na busca de reivindicações trabalhistas e normas de assistência social” (LENZA, 2012, p.959).

Como assinala Carvalho (2010), o surgimento dos direitos fundamentais pressupõe a presença de três elementos, a saber: a) o Estado moderno, que lhes dá importância prática, garantindo o seu cumprimento, posto que limitam o poder em face do indivíduo; b) o indivíduo como ser independente e autônomo que é, capaz de fazer valer o seu direito frente ao Estado e à sociedade; c) texto normativo regulamentador das relações entre Estado e indivíduos, dotado de supremacia e de validade em todo o território nacional, que declara e garante determinados direitos fundamentais.

Portanto, no momento histórico que marca o surgimento dos direitos sociais, o Estado deixa de se abster e passa assumir uma postura ativa “de quem são exigidas prestações para que sejam assegurados os direitos sociais (habitação, moradia, alimentação, saúde, dentre outros)” (CARVALHO, 2010, p. 714).

Os direitos de segunda geração correspondem aos direitos de igualdade substancial, real e material, não meramente formal- esta quando apenas se busca a igualdade no texto de lei, sem procurar efetivá-la através de normas constitucionais ou infraconstitucionais, bem como ações. Convém destacar aqui o célebre ensinamento sobre igualdade do mestre Rui Barbosa (1999, p. 26), para quem “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade”

Destaca-se entre os documentos mais importantes nessa perspectiva de Estado Social de Direito, a Constituição mexicana de1917, aConstituição de Weimar, em 1919, na Alemanha, e, no Brasil, a Constituição de 1934.

A atual Constituição brasileira descreve um rol não exaustivo de direitos sociais em seu artigo 6° e é aí que se encontra inserido o direito à saúde, sem prejuízo de serem encontrados em outros dispositivos da Constituição que disponham sobre os direitos sociais.

2.2 Direito à Saúde

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (artigo 196, CRFB/1988).

Sabe-se que a saúde é intimamente ligada ao direito à vida, e, desta forma, converte-se em direito indisponível.

Porquanto foi elevado à categoria de direito fundamental e social pela Constituição, garantiu-se, com isso, o poder de agir do indivíduo frente ao Estado, quando verificada a ineficiência deste em garantir as prestações positivas que lhes são afetas através das políticas públicas adequadas e voltadas à efetivação do texto constitucional.

“Enquanto direitos fundamentais, os direitos sociais têm aplicação imediata (artigo 5°, §1,) e podem ser implementados, no caso de omissão legislativa, pelas técnicas de controle, quais sejam, o mandado de injunção ou a ADO”. (LENZA, 2012, p. 1076).

Ocorre que, embora seja regra que os direitos fundamentais são dotados de aplicação imediata, ou seja, são dotados de todos os meios e elementos necessários à sua pronta incidência nos fatos, verifica-se que nem sempre eles detêm aplicabilidade imediata, o que importa dizer que dependem de providências que lhes completem a eficácia, sendo algumas de eficácia limitada e aplicabilidade direta.

Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de aplicabilidade imediata, enquanto que as que definem os direitos sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta. (SILVA, 1998, p. 408).

Deste modo, é necessário um comportamento positivo para que o direito à saúde seja implementado em sua plenitude, o que deve irradiar para todos os Poderes do Estado, seja na condução das políticas públicas, na atuação do legislador e na solução de conflitos para o julgador.

3 UTILIZAÇÃO DA VIA JUDICIÁRIA: A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

 

A idéia de concretização do direito à saúde está sujeito à barreira da reserva do possível pelo administrador, pois “o Estado cumpre com a responsabilidade pela justiça social, dentro de suas limitações e reservas orçamentárias”. (HERRERA, 2009, p. 82).

É daí que advém a grande importância das tutelas de urgência (cautelar e antecipatória) como dispositivos que possibilitam o acesso e a garantia do acesso à saúde, visando a resguardar a integridade e a saúde da parte que ingressa no Judiciário para ver a sua pretensão atendida.

Muito se discute acerca da legitimidade do Ministério Público para atual como parte nas demandas judiciais que versem sobre o direito á saúde.

Dispõe o artigo 127 da CRFB/1988 que “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

O direito à saúde, como dito anteriormente, é direito individual indisponível e, portanto, está o Ministério Público legitimado a agir em sua defesa.

A previsão genérica, no corpo do texto constitucional, possibilita a atuação ministerial administrativa ou extrajudicial, bem como sua atuação judicial como custos legis. Assim, fundamentado diretamente no texto constitucional, pode o Ministério Público, independentemente da qualidade do titular do direito, instaurar procedimentos administrativos, expedindo notificações e requisitando informações, visando assegurar o direito individual à saúde. Da mesma forma, a atribuição para intervir e acompanhar processos judiciais em que discutido direito individual à saúde decorre diretamente da norma constitucional. (HAMACHER, 2013, p. 2).

A discussão que se tem é em torno da ausência de lei ordinária que regulamente os termos e limites em que se dará a atuação do Ministério Público nestes casos, pois não basta a previsão Constitucional, deve existir lei que atribua legitimidade processual ao Órgão Ministerial.

Ressalta-se que o Ministério Público é instituição que atua em defesa da sociedade. Assim, quando se verifica a atuação Ministerial em defesa dos direitos individuais, mesmo os indisponíveis, a posição de maioria da doutrina pátria é no sentido de que a atuação é apenas como custus legis, zelando para que os interesses sejam respeitados, não como parte do processo.

Lado outro, entende-se que o Ministério Público terá legitimidade para atuar na via judicial e extrajudicial quando o titular do direito for criança, adolescente ou idoso, pois há expressa previsão legal a esse respeito.

Neste sentido, o entendimento atual do Supremo Tribunal Federal[1] é o seguinte:

EMENTA Processo civil. Ministério Público. Legitimidade ativa. Medida judicial para internação compulsória de pessoa vítima de alcoolismo. Ausência. 1. O Ministério Público não tem legitimidade ativa ad causam para requerer a internação compulsória, para tratamento de saúde, de pessoa vítima de alcoolismo. 2. Existindo Defensoria Pública organizada, tem ela competência para atuar nesses casos. (STF, Relator  Min. Marco Aurélio, 2008).

Nesse escopo, cabe perceber as possibilidades de concessão de tutela de urgência no ordenamento jurídico brasileiro, com relação ao provimento do Direito à saúde.

 

4 CONCESSÃO DE TUTELAS DE URGÊNCIA: POSSIBILIDADES

 

Tratando-se de tutelas de urgência no ordenamento jurídico brasileiro, podem ser apontadas as modalidades existentes, conforme expõe Theodoro Júnior (2008, p. 424), quais sejam as de natureza antecipada, e as de natureza cautelar; “estas de cunho satisfativo, e aquelas de cunho apenas preventivo.” Essas modalidades se tratam de mecanismos processuais em busca da efetivação da tutela jurisdicional num litígio, onde a prestação final resta comprometida.

Theodoro Júnior (2008, p. 425) aponta, acerca da tutela antecipada:

Para não transformar a liminar satisfativa em regra geral, o que afetaria, de alguma forma, a garantia do devido processo legal e seus consectários do direito ao contraditório e ampla devesa antes de ser o litigante privado de qualquer bem jurídico (CF, art. 5°, incs. LIV e LV), a tutela antecipatória submete a parte interessa às exigências da prova inequívoca do alegado na inicial. Além disso, o juiz para deferi-la deverá restar convencido de que o quadro demonstrado pelo autor caracteriza, por parte do réu, abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório, ou independentemente da postura do réu, haja risco iminente para o aturo de dano irreparável ou de difícil reparação, antes do julgamento de mérito da causa.

Diante disso, cabe perceber que, diante do binômio necessidade e razoabilidade para a concessão, exposto por Mendes, Coelho e Branco (2008), que será discutido numa ação judicial de acesso à saúde, recorrer-se-á à antecipação da tutela, tendo em vista o caráter emergencial da prestação, que não poderia se atrelar à morosidade processual, sendo produzidos os efeitos da tutela antecipadamente, sem prejuízo da sua reversão.

Caberá pois a antecipação dos efeitos da tutela pleiteada, com base no requisito disposto no Código de Processo Civil (CPC): “Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação;”.

Nesse escopo, é que se percebe que, diante da possibilidade de dano irreversível, nos casos de requisição judicial de prestação de saúde, há que se prover antecipadamente, na medida do possível (razoabilidade para a Administração Pública), a efetivação do direito à saúde. É o que se visualiza, a título exemplificativo, na decisão do Tribunal de Minas Gerais[2] a seguir:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - MANDADO DE SEGURANÇA - MEDICAMENTO - TRATAMENTO DE CÂNCER - MEDIDA LIMINAR - PRESCRIÇÃO MÉDICA - REQUISITOS - FORNECIMENTO DEVIDO. Configurada a existência dos pressupostos de convencimento da alegação apresentada, assim como o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, deve ser deferida a tutela antecipatória (art. 273, do CPC). A disponibilização de tratamentos oncológicos através de CACON's não impede que a parte demande o Município para o fornecimento de medicamento prescrito por profissional competente. O serviço público de assistência à saúde deve ser integral, incumbindo ao Poder Público disponibilizá-lo, mormente em se tratando de doença grave como o câncer. Possibilidade de ocorrência de dano inverso se revogada a medida. Recurso não provido. (TJMG, Rel. Ministra Heloísa Combat, 2012).

É, por fim, reiterada a efetivação da prestação jurisdicional em caráter antecipatório, quando se tem em vista a possibilidade de dano irreparável; no caso do direito à saúde, a irreparabilidade do dano confronta o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, nos termos da Constituição Federal de 1988.

5 CONCLUSÃO

 

Diante do exposto, é possível perceber que o ordenamento jurídico pátrio acolheu o direito à vida e, por conseguinte, à saúde, como direitos fundamentais garantidos constitucionalmente. De modo que os mecanismos possíveis previstos no ordenamento jurídico devem ser utilizados para que a preservação da vida seja efetiva.

O acesso à saúde, além de medida política e governamental, integra, na sua essência, objeto a ser assegurado também pela via judiciária, haja vista que a tutela jurisdicional do Estado serve de abrigo àqueles que sentem seus direitos violados ou não servidos pelo próprio poder público.

Ocorre que a saúde, em si, demanda celeridade, tendo em vista que o corpo humano não pode ser programado, para eventualidade de moléstias.

E, nesse sentido, não basta que o Estado dê provimento à necessidade de acesso aos programas, tratamentos e medicamentos. Cabe perceber que, sendo direito, esse provimento, mais cedo ou mais tarde, há de ocorrer.

O que não se pode permitir é que, diante da urgência e da emergência, seja exigida a persecução processual, em toda a sua complexidade, para que, por fim, o tratamento seja permitido, que poderá ser intempestivo, diante da gravidade e da possível lesividade concluída.

O que se observa, diante dos mecanismos processuais existentes, é que há formas de se evitar o drástico exaurimento da necessidade de proteção jurisdicional, tendo em vista a possibilidade de, ao fim do processo, não se existir mais necessidade ou possibilidade de cumprimento da sentença.

Aponta-se para tanto, diante do caráter de seu caráter emergencial, a antecipação dos efeitos da tutela, que é legítimo no ordenamento pátrio, e que se mostra plenamente aplicável, preenchendo-se seus requisitos para que não haja a protelação na prestação jurisdicional diante da necessidade de acesso à saúde.

Por fim, a antecipação de tutela é permitida, diante da urgência visualizável em casos concretos, onde não há como se aguardar a demorada discussão e utilização de todos os recursos processuais existentes, na busca pelo provimento ou não da demanda.

6 REFERÊNCIAS

 

ARAKAKI, Allan Thiago Barbosa. A Limitação da Responsabilidade Estatal Pelo Princípio da Reserva do Possível. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12762. Acesso em 15/11/2013. 

BARBOSA, Rui. Oração Aos Moços. 5.ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 24º. ed. Brasília: CDICP, 2012.

CARVALHO, Kildare Gonçalves de. Direito Constitucional. 16. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

HAMACHER, Flávio Jordão. A Atuação do Ministério Público na defesa do direito individual à saúde. Disponível em www.ammp.org.br/inst/artigo/Artigo-25.doc‎.

HERRERA, Luiz Henrique Martins. Judicialização das políticas publicas de assistência à saúde: procedimentalismo versus substancialismo. Revista de Direito, Bauru: SARE, Vol. XII, nº. 16. 2009. 

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed.São Paulo: Saraiva, 2012.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

MUNIZ, Fernando Carlos de Araújo. A judicialização do serviço público de saúde: a efetividade da tutela de urgência na obtenção de atendimento médico, medicamentos e insumos terapêuticos por via judicial. Disponível em http://www.webartigos.com/artigos/a-judicializacao-do-servico-publico-de-saude-a-efetividade-da-tutela-de-urgencia-na-obtencao-de-atendimento-medico-medicamentos-e-insumos-terapeuticos-por-via-judicial/79509/#ixzz2kvkHlBrZ. Acesso em 15/11/2013.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

STF. RE 496718/RS. Relator Min. Marco Aurélio.12/08/2008.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 48 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

TJMG. AI1.0024.12.124101-2/001 0798052-36.2012.8.13.0000 Relatora Des.Heloisa Combat. 25/10/2012.



[1] Disponível em www.stf.jusbrasil.com.br Acesso em 16/11/2013.

[2] Disponível em www.jusbrasil.com.br