O abuso sexual e a infância:

Uma visão na terapia centrada na criança

 Johnny Everton Pinheiro de Borba

Resumo

O presente relatório busca uma analise do caso de três crianças que estão em situação de acolhimento pela suspeita de abuso sexual.  Algumas informações foram recolhidas dos próprios educandos que trabalham no abrigo. Outras foram através de uma conversa não diretiva mais focalizada na situação de abuso, pelos relatos da irmã mais velha. Em determinado momento o pai de duas das crianças apareceu para uma entrevista com a equipe técnica que trabalha no acolhimento para saber a situação de seus filhos. Foi realizado uma pesquisa bibliográfica sobre o assunto  e sua visão na terapia centrada na criança.

Introdução

O abuso sexual na infância está tornando-se uma epidemia do sistema social moderno. Apesar de sempre estar presente na maioria das civilizações, apontar e notificar inúmeras ocorrências de violação dos direitos da criança e do adolescente aumentou consideravelmente nas ultimas décadas. Segundo Furniss 1993, citado por Amazarray & Koller (1998), “o abuso sexual da criança é tanto uma questão normativa e política quanto clínica, apresentando importantes aspectos sociológicos e antropológicos”. Já para alguns autores, o que aumentou foi a atenção por parte dos pesquisadores sobreo assunto (Knutson, 1995 citado por Amazarray & Koller 1998).

Existem características culturais definidas por alguns povos sobre o toque do órgão genitais não como abuso, mas como costume de determinada sociedade. Segundo Scheper Hughes 1998, citado por França (2013) diz que “há culturas em várias partes do mundo – citando a Turquia, o Brasil rural e outros – nas quais o toque público dos genitais de bebês por determinados adultos (mães, pais e vizinhas) é admitido como natural e gracioso”.

Não obstante justificaria a cultura como sobrepondo o ato infracionário acometido ao jovem abusado, situação em que a criança é exposta sem a chance de defesa e de buscar ajuda independente da cultura ou religião.

Quando o abusador faz parte do seu convívio familiar, muitos casos levam anos para serem resolvidos, e muitos outros nem ao menos são notificados para que o abusador seja retirado do contato da criança abusada e de outras possíveis vitimas. Para a maioria dos abusos sexuais cometidos contra crianças e adolescentes ocorre dentro de casa e são perpetrados por pessoas próximas, que desempenham papel de cuidador destas (Habigzang, Koller, Azevedo & Machado ,2005).

Nesta síndroma enigmática onde as manifestações e sentimentos dos vitimados são suprimidos pelo abusador, acabam não sendo vistos por outros integrantes da família ou do convívio social. A criança acaba não sabendo a quem recorrer deixando-se no silêncio. Para  Antoni & Koller, 2000; Habigzang & Caminha, 2004; Koller, 1999, citado por Habigzang et. Al. (2005), “...se confirma através dos relatos das vítimas que revelam as ameaças e agressões físicas sofridas durante o abuso sexual, bem como as sentenças depreciativas utilizadas pelo agressor e a falta de amparo e supervisão dos cuidadores”.

A UNICEF (2005), diz que qualquer ação ou omissão que promova danos, lesões ou transtornos no desenvolvimento que pressupõe relação de desigualdade são relativos a algum tipo de abuso que a criança ou o adolescente está sofrendo. O ECA (2012) diz no Art. 227- “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

 A OMS 1999, citado por Neves et. Al. (2010): “Abuso sexual infantil é o envolvimento de uma criança em atividade sexual que ele ou ela não compreende completamente, é incapaz de consentir, ou para a qual, em função de seu desenvolvimento, a criança não está preparada e não pode consentir, ou que viole as leis ou tabus da sociedade. O abuso sexual infantil é evidenciado por estas atividades entre uma criança e um adulto ou outra criança, que, em razão da idade ou do desenvolvimento, está em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder”.

Para as famílias de uma criança que sobre abuso sexual existe um grau de complexidade para desenrolar um emaranhado de outras negligencias que deixaram o abuso ser ocultado. “As mães, muitas vezes, se deparam com perdas próprias, perdas para os seus filhos e para toda a família, com confusões, conflitos e ameaças (Dobke, Santos, Dell'Aglio, 2011). O abuso sexual deixa a criança traumatizada, pois deteriora a capacidade reflexiva e o sentido de self, o que torna o ciclo de desenvolvimento muito perturbado (Thouvenin, 1997 citado por Froner & Ramires 2008), e na menor suspeita, deve ser reconhecida e denunciada aos órgãos responsáveis para a tomada de medidas de proteção adequado.

 

Discussão do caso

Em uma visita a casa de acolhimento 3, um dos educandos comentou um pouco sobre as irmãs que haviam urinado na cama a noite e estavam se preparando para tomar banho. Ele disse que isso é frequente e já havia visto isso com outros adolescentes com o passar do tempo no abrigo. As meninas me avistaram e saíram correndo para o banheiro para tomar banho.

Em outro momento, após o banho, conversei com a menina maior de sete anos de, e durante a conversa ela relata a vontade de voltar para casa.  “A culpa não era dela (mãe), não sabia de nada. Porque temos que ficar aqui”.

De acordo com a exposição da menina tento com ela buscar um entendimento sobre o motivo que levou ela e os irmãos para estarem no acolhimento. Ela diz que sabe que o abuso é algo ruim pra idade dela. No momento meu sentimento foi que a criança se culpava pelo ocorrido.

Uma observação me chamou a atenção que foi o interesse na irmã mais velha a assusto dos adolescentes. Pouco brinca com as meninas de idade semelhante à dela e não costuma se pentear no espelho das crianças e sim das adolescentes, mais alto e possui os cosméticos das jovens.

 

O abuso sexual: e suas muitas faces

De acordo com Watson citado por Froner & Ramires (2008), diz que existem três pontos importantes sobre o abuso em crianças: a posição hierárquica do abusador; a diferença de idade cronológica ao de desenvolvimento da criança e a sensação de gratificação através de um possível prazer da vitima.

Apesar de existirem leis rigorosas a quem pratica abuso sexual infantil no Brasil, ainda não consegue por si só fazer com que ajude no desenvolvimento e fortalecimento dos vitimados.

Se avaliarmos o caso citado, algumas características como urinar na cama, tanto da irmã mais velha quanto de sua irmã de quatro anos. Crianças ou adolescentes podem desenvolver transtornos de humor, de ansiedade, alimentares, dissociativos, hiperatividade e déficit de atenção, assim como enurese e encoprese (Briere & Elliott, 2003; Cohen, Mannarino, & Rogal, 2001; Runyon & Kenny, 2002 citado por Habigzang et. Al. 2005).

Algo muito importante também é a ausência de violência física na criança abusada o que torna mais difícil o trabalho de se achar a resposta, sendo considerada Habigzang et. Al. (2005), Tem sido definido como todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, que parte de um agente que esteja em estágio de desenvolvimento mais adiantado e/ou de mais poder que a criança ou adolescente vitimizado e o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) é a psicopatologia mais citada como decorrente do abuso sexual.

A vulnerabilidade em que a criança se encontra para ser uma vitima do abusador, depende muito das condições em que se apresenta o conceito intrafamiliar que pertence os jovens abusados.

A experiência de abuso sexual pode afetar o desenvolvimento de crianças e adolescentes de diferentes formas, uma vez que alguns apresentam efeitos mínimos ou nenhum efeito aparente, enquanto outros desenvolvem severos problemas emocionais, sociais e/ou psiquiátricos (Elliott & Carnes, 2001; Heflin & Deblinger, 1996/1999; Runyon & Kenny, 2002; Saywitz, Mannarino, Berliner, & Cohen, 2000).  Corresponde a uma violência contra a criança ou adolescente que envolve um comportamento de desrespeito do individuo e seus limites (Baptista, França, Costa & Brito , 2008).

A família é a instituição que mais tem seu valor no papel correspondente ao desenvolvimento dos jovens, pois reproduz o sujeito a compreender seu lugar social. Corresponde a uma conduta protetora e de grande responsabilidade para o fortalecimento de vínculos afetivos, mesmo que isso não seja uma ilha de virtudes (Sauret, Carneiro, Valongueiro,  & Vasconcelos, 2011).

 Geralmente o abusador é alguém muito próximo da criança e a dificuldade para que a criança se manifeste verbalmente acaba por provocar sintomas físicos como urinar na cama. A maior parte dos casos o abusador é um parente próximo o que faz com que a vitima se intimide ainda mais para uma ação protetiva.

O estupro é definido, pelo Código Penal Brasileiro, pela penetração vaginal com uso de violência ou grave ameaça, sendo que, em menores de 14 anos, essa violência é presumido. O Código Penal Brasileiro, até meados de 2009, diferenciava os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor (Neves, Castro & Cury, 2010).

Em determinado momento em que a criança começa a entender que está sendo abusada, o próprio abusador, de alguma maneira tenta contorcer isso acusando a criança de receber o carinhos do abusador, (Pfeiffer & Salvagni, 2005).

E é neste momento que geralmente acontece a denuncia, nem sempre pela vitima, mas de um amigo próximo, ou vizinho que suspeita de algo estranho no relacionamento entre uma criança um adulto.

 

Uma visão centrada na criança

Uma criança que recebe maus tratos, principalmente o abuso sexual, costuma não comentar muito sobre o acontecido quando perguntado. A menina do caso citado apresentava uma relação defensiva em não revelar o ocorrido, mas garantindo que a culpa não era de sua mãe, e possivelmente pode-se subentender que a culpa é de outra pessoa: ou do abusador ou da própria menina que não sabia o que estava acontecendo.

Ariès (1978) e Corazza 2002, citado por Mello & Dutra, (2008) expõem em seus trabalhos que a história da construção do que conhecemos, hoje, como infância, é fruto de um longo e tortuoso percurso sócio-histórico.

Um fator de estrema importância característico da criança vitimada são as contorções de seu autoconceito. Distorções que em alguns casos deterioram o sujeito aos poucos, transformando sentimentos não resolvidos em partes cruciais de sua personalidade.

Nascemos com uma predisposição a entender sobre nos mesmos, sendo a parte mais organizada do individuo. “... a função organizadora no íntimo do indivíduo, por meio da qual um ser humano pode relacionar-se com outro... É o centro do qual vemos e temos consciência das diferentes facetas de nossa personalidade” (May 1973, citado por Mello & Dutra, 2008).

Nesta capacidade de se colocar no lugar do outro de forma empática, mostra que devemos tratar situações de abuso infantil com muito respeito e cuidado. Para Sampaio, Camino e Roazzi 2009, citado por Mello & Dutra (2008), concebem a empatia como uma capacidade que e desenvolvida ao longo dos anos e que tende a ser refinada a medida que os aspectos cognitivos e afetivos evoluem.

Trabalhar com crianças que passaram por abuso sexual provoca muitos sentimentos transferidos pelo paciente, mas que devem ser entendido incondicionalmente para que ele não entenda que o terapeuta está em uma posição julgadora, mas de aceitação do sujeito como ele é, capaz de crescer e renovar-se dia após dia, quando o terapeuta transforma-se em um facilitador de seus potenciais.

 

Referências

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