1. O direito de escolha da mulher 

A evolução do reconhecimento dos direitos das mulheres, nas diversas Constituições que tiveram vigência no Brasil, ocorreu como consequência das articulações do movimento feminista brasileiro.

Vale citar a Constituição de 1946, que trouxe elementos e direitos sociais amplamente discutidos na década de 30, tais quais a vedação de diferença salarial por sexo, idade e estado civil e o direito de descanso da gestante antes e depois do parto sem prejuízo do salário. No entanto, verificava-se, ainda, uma discrepância entre a referida norma constitucional e a legislação infraconstitucional vigente na época.  Apenas a Constituição Federal, de 1988, regulamentou especificamente e tornou cogentes esses direitos que conhecemos hoje.

O fato da criminalização do aborto impedir que as mulheres, que não desejam prosseguir com a gestação, tenham respaldo do Sistema Único de Saúde (SUS), incentiva a procura do aborto clandestino (e, portanto, inseguro como se verá mais detalhadamente no capítulo a seguir) acaba por gerar um problema de saúde pública, atingindo também os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da privacidade e, ainda, da autonomia reprodutiva, todos consolidados na Carta Magna de 1988.

Portanto, não seria o caso de provocar uma reanálise no atual Código Penal de 1940, cuja promulgação é anterior à vigente Constituição Federal?

Tal necessidade é inegável. Isso porque, mudanças sociais com relação à mulher vêm se solidificando nas últimas décadas. Os novos valores sociais sobre o papel da mulher no mundo contemporâneo, o reconhecimento da igualdade entre os sexos, a mudança do cenário em relação à sexualidade feminina, bem como a superação da ótica que limitava a mulher às suas características reprodutivas são exemplos das mencionadas transformações sociais.

Essas mudanças são decorrentes dos diversos movimentos feministas que ocorreram em todo o mundo e, especificamente no Brasil, a partir da década de 70, envolvendo um delicado conflito com a Igreja Católica, a qual representava importante foco de oposição, tendo em vista o vazio deixado a pouco pelo regime militar e seus extremistas valores morais com relação à posição da mulher na sociedade.

Além das mudanças relacionadas à influência social feminina, o que cristaliza, de forma mais imponente a necessidade de revisão da norma penal proibitiva, são os princípios constitucionais fundamentais.  Estes foram inseridos no ordenamento brasileiro somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Sendo assim, é perfeitamente plausível que uma norma penal proibitiva e punitiva de 1940 possa não estar de acordo com o atual cenário constitucional e axiológico.

A Constituição de 88 não tratou expressamente do aborto voluntário, nem para autorizá-lo nem para proibi-lo, o que não torna sua principiologia indiferente ao tema. Ademais, o reconhecimento da força normativa que a Constituição tem, no conjunto normativo, e o caráter vinculante de seus princípios estabelecem uma espécie de filtro ao panorama legislativo, não mais trazendo à tona a ideia de mera proclamação simbólica, mas sim de norma cogente, ainda que ampla e principiológica. [1]

Desta forma, é possível concluir, seguindo os ensinamentos dos neoconstitucionalistas, que a Constituição deve oferecer o norte para a análise das leis comuns, inclusive, quanto à questão da interrupção voluntária da gravidez. . Não se anula o espaço próprio do legislador, que é representante do povo, mas este se torna limitado e emoldurado pelos princípios constitucionais.

Na esfera da discussão central desta narrativa, serão analisados, por estarem em conflito, os direitos fundamentais da mulher gestante e a proteção do feto. Porém, antes de analisar este conflito entre os direitos individuais, convém deixar bastante claro que o método desta análise afasta a questão religiosa, restando pertinentes apenas as discussões sociais e legislativas constitucionais. Ou seja, justamente pelo fato de a discussão fazer parte do cenário jurídico brasileiro, que é um Estado laico, não compete a esta pesquisa examinar ideologias religiosas quanto ao início da vida, ou concepções de moralidade.

Isso porque, a Igreja Católica, que continua ocupando a posição de religião majoritária dentro do Estado Brasileiro, condena o abortamento em qualquer circunstância, até mesmo nas que são permitidas pela atual (e retrógrada) legislação brasileira: gravidez originária de estupro, e em grave risco de vida à saúde da gestante (estado de necessidade).

Neste diapasão, parece pertinente o questionamento - à luz do catolicismo ser predominante no Brasil, - se tal constituiria uma justificativa legítima para o Estado adotar medidas legislativas punitivas que simplesmente aplicassem as concepções morais católicas?

A resposta é notoriamente negativa. Voltando aos princípios constitucionais, o artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, impõe aos poderes públicos uma posição de absoluta neutralidade em relação às diversas concepções religiosas, como se verifica a seguir:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 

Observe-se que o princípio da Laicidade do Estado não está atrelado à eventual repulsa do constituinte em relação à religiosidade, devendo permitir o pluralismo e afastar deste território qualquer discriminação ou obrigatoriedade de conduta advinda de um conceito religioso, que mesmo que majoritário, não atende a toda crença ou ausência desta na população.

Foi nesse sentido a classificação da Corte Constitucional alemã, ao julgar inconstitucional a implantação de crucifixos em salas de aula de escolas públicas:

Um Estado, no qual membros de várias ou até conflituosas convicções religiosas ou ideológicas devam viver juntos, só pode garantir a coexistência pacífica se mantiver neutro em matéria de crença religiosa (...). A força numerária ou a importância social da comunidade religiosa não tem qualquer relevância[2].

 A democracia, a qual depende, como base de sustentação, da igualdade e da laicidade do Estado, não pode ser afastada na produção de normas cogentes. As pessoas só poderão se considerar tratadas como iguais quando o Estado demonstrar por elas o mesmo respeito e consideração, e essa demonstração ocorrerá no momento em que não seja imposto ao cidadão comportamento ligado a qualquer doutrina religiosa ou filosófica. É importante, portanto, não confundir igualdade com homogeneidade. Aquele que é diferente por um modo de pensar, ou ainda que não compartilhe dos mesmos valores, estilo ou projetos de vida, deve também ser tratado com igualdade. Portanto, não é demais afirmar que a máxima da igualdade é a consideração plena das desigualdades.

Assim, passa-se a analisar a relação entre a proibição do aborto e a igualdade. Nesta relação, podem ser observados dois aspectos: o primeiro versa sobre a violação da igualdade entre os sexos, estabelecida pelo artigo 5º, inciso I, do título dos Direitos e Garantias Fundamentais de nossa Constituição.

Essa violação se dá à medida que se sub-roga às mulheres o ônus de levar adiante uma gestação e, por conseguinte, promover a criação de um filho, entendida esta criação não só como o provimento financeiro, mas também como a formação social e afetiva da criança. Tais imposições, em contexto algum, excluída a responsabilidade financeira, encontram-se, socialmente, vinculadas ao homem.

Isso porque, apesar de a figura paterna ter a obrigação imposta, também pelo Estado, de prover o sustento da criança, não é o indivíduo do sexo masculino que está ligado diretamente a ela parindo-a de seu ventre.

Ocorre que, o fato de esse direito de escolha do gênero feminino estar restringido, fere outro princípio fundamental constitucional, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, Constituição Federal), cujo reconhecimento pressupõe que se respeite a esfera de autodeterminação de cada cidadão, seja este mulher ou homem, possibilitando que ambos tomem as decisões fundamentais sobre a própria vida, sem interferência do Estado ou de terceiros.

Dito isto, impossível afastar dessa situação a taxatividade com que a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso I, contemplou a igualdade entre os gêneros: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Pensar que a lei atual, que criminaliza o aborto, mantém as características de igualdade entre homem e mulher, só pode ser herança de uma sociedade machista na qual a mulher, por ter no passado ocupado um posto social secundário ao homem, estaria atrelada à sua função reprodutiva e maternal, afastando vilmente outros anseios que poderia vir a ter na vida, como o trabalho, estudo, ou qualquer outro. Acompanha tal entendimento o trecho:

Uma mulher forçada pela lei a submeter-se à dor e à ansiedade de carregar, manter e alimentar um feto que ela não deseja ter está legitimada a acreditar que mais que um jogo de palavras liga o seu trabalho forçado ao conceito de servidão involuntária. Dar à sociedade – especialmente a uma sociedade dominada pelo sexo masculino – o poder de condenar a mulher a manter a gestação contra sua vontade é delegar a alguns uma autoridade ampla e incontrolável sobre a vida de outros. Qualquer alocação de poder como esta opera em sério detrimento das mulheres com classe, dada a miríade de formas pelas quais a gravidez indesejada e a maternidade indesejada oneram a participação das mulheres como iguais na sociedade. [3]

Nesse contexto, passa a estarem também envolvidos os conceitos de liberdade e de autonomia reprodutiva da mulher, que, segundo Daniel Sarmento, possuem fundamento constitucional nos princípios da liberdade e da privacidade, no sentido de que somente ela, mulher, deve decidir sobre seu corpo, bem como sobre a vontade de ter filhos. Esses direitos, por sua vez, encontram-se restringidos pelo direito à vida do nascituro, como se verá adiante.

O que está mais do que claro é que a gravidez é uma particularidade feminina, desenvolvendo-se em seu próprio corpo e integrando, de fato, a sua condição social, o que não pode significar um fator de privação ao exercício de outros direitos fundamentais, como exemplo, o direito à educação que, em falta, gera uma situação ainda maior de vulnerabilidade, dificultando a obtenção de futuro emprego, e contribuindo para a reprodução do círculo perverso de estímulo à pobreza e desigualdade social[4].

Importante frisar que esses efeitos da privação, os quais podem sofrer a mulher ao dar continuidade a uma gravidez indesejada, são resultado principalmente da ausência de políticas públicas de acesso das mulheres mais carentes aos métodos contraceptivos e à educação sobre sua sexualidade, o que a torna presa a uma realidade de poucas perspectivas.

De forma mais aparente, o segundo aspecto da inobservância do princípio da igualdade por conta da criminalização do aborto refere-se à desigualdade social, visto que os maiores impactos recaem sobre as mulheres de baixo poder aquisitivo.

Isso porque, além de o homem também não estar incluído nesses efeitos, estes também não atingem as mulheres com condições financeiras de fazer o aborto em clínicas, clandestinas, mas com maiores condições de higiene, assepsia e médicos dotados de conhecimento. Já a mulher carente, quando não se conforma com a legislação proibitiva e busca o aborto, se sujeita a graves riscos de vida, submetendo-se a métodos, quase sempre precários de interrupção da gravidez, o que acaba por violar também o direito à saúde, que é de igual forma, direito individual constitucional.

Dessa forma, as mulheres de classe média e alta possuem acesso à anticoncepcionais em abundância, planejamento familiar e exames ginecológicos regulares, benefícios os quais o Estado não passa nem perto de garantir a todas aquelas que não podem pagar caro por isso.

Nesse sentido, o aborto criminalizado viola duplamente o princípio da igualdade, tanto no aspecto social, como no relativo à liberdade e à privacidade, já que os efeitos de tal criminalização não atingem o sexo masculino de forma contundente.

2. O direito à vida do nascituro

 

Não será objeto desta narrativa a discussão acerca do momento em que um óvulo materno fecundado por um espermatozoide pode ser considerado um ser dotado de vida, pois uma pesquisa no âmbito do direito brasileiro, cujo território de vigência é laico, não deve envolver posições religiosas ou metafísicas, mas sim argumentos jurídicos e morais, os quais fazem parte de todo o embasamento legal no Brasil.

Também não será questionado o fato de que o embrião é, de fato, ente dotado de direitos, na qualidade de pessoa em potencial. O que será analisado, principalmente, é o lugar em que os direitos do nascituro estão posicionados, em relação ao direito de escolha da mulher quanto à continuidade da gestação, visto que este direito implicaria na eliminação daquela vida em potencial.

Nesse sentido, propõe-se que toda a reflexão gira em torno da seguinte premissa: a ideia de proteção ao nascituro é equivalente àquela proporcionada após o nascimento aos cidadãos iguais?

No próprio direito brasileiro vigente podemos observar que não. Quando examinamos o Código Penal de 1940, em relação às penas atribuídas ao aborto e ao homicídio, ambos crimes que tutelam o direito à vida, percebe-se, claramente, que a tutela jurisdicional é muito maior no segundo caso. Isso porque, a pena imposta ao homicídio pode ser até mais do que seis vezes àquela que pode ser imposta ao aborto, sendo, respectivamente de 6 a 20 anos de reclusão para o homicídio simples, e de 1 a 3 anos para o aborto voluntário.

Desta forma, não podemos deixar de reconhecer o direito do nascituro à vida, mas também não podemos ignorar o direito daquelas que são pessoas já nascidas, no caso, as gestantes, de modo que já prevê expressamente o Código Civil brasileiro, em seu artigo 2º: a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde concepção, os direitos do nascituro.

A partir daí, resta mais do que claro que, no sistema jurídico brasileiro, falar em vida humana não é o mesmo que falar em pessoa humana. O nascituro é vida humana com potencialidade para se tornar pessoa humana e, diante disso, não se pode crer, em uma filosofia justa, que este possa ter seus direitos sobrepostos ao da pessoa humana, já nascida.

É nesse sentido que, em diversos Tribunais Constitucionais pelo mundo, vem crescendo uma posição intermediária com relação ao aborto, na qual a vida intrauterina recebe uma proteção um pouco menos abrangente do que a vida extrauterina. Esta posição tem trazido a flexibilização das legislações repressivas ao aborto, principalmente na Europa, como será estudado adiante.

Tal posição pondera as questões em que colidem os interesses e os direitos, tanto à vida do nascituro, como da mulher ao corpo, liberdade e autonomia reprodutiva, dignidade da pessoa humana, direito à educação (no caso de condições sociais e econômicas precárias) e à saúde na eventualidade de risco de vida da gestante.

No Brasil, tal flexibilização da lei penal seria decorrente da efetivação dos princípios constitucionais ora analisados, que são inerentes à pessoa humana, e não podem ser obstaculizados pela tutela de um bem em potencial ou mesmo por um entendimento católico ortodoxo, de maneira que estaria ainda tal flexibilização em perfeita harmonia com as percepções sociais dominantes no país.

Vale ainda analisar as disposições do Pacto de San Jose da Costa Rica: Toda a pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Os termos “em geral” e “arbitrariamente”, se mostram como princípios e não como regras, ressaltando a ideia aqui colocada de que a tutela da vida anterior ao parto deve ser menos intensa que aquela proporcionada à vida após o nascimento. Isso se daria na medida em que, não havendo interesses e direitos da pessoa instituídos pela ordem constitucional que estivessem prejudicados pela gestação, deve prevalecer a tutela à vida do nascituro. Ou seja, a inibição da tutela da vida do nascituro somente poderia se dar se houvesse algum motivo justo, de acordo com o ordenamento vigente, que não se configurasse arbitrário, como é o caso da saúde da gestante e dos direitos sociais a ela conferidos pela Constituição Federal de 1988.

A discussão não é só pertinente no Brasil, ao passo que foram organizadas conferências com o intuito de discutir questões sobre população e desenvolvimento, entre elas o aborto, como o Plano de Ação da Conferência do Cairo, realizado em 1994 e a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher, ocorrida em Beijing, em 1995, pelas quais ficou assentado que a questão do aborto deveria ser tratada pelos países como problema de saúde pública - física e mental - e não pela ótica criminal, o que revela predominância de uma preocupação social com as mulheres em relação ao direito à vida do nascituro.

  

 

3. Conclusão

 

Nota-se que a Constituição brasileira vigente não proíbe o aborto, e também não é omissa quanto ao tema, inexistindo a possibilidade de inconstitucionalidade de uma lei mais flexível. Ela deve ser compreendida em sua integralidade, como uma base principiológica, pela qual se conclui que a vida intrauterina é sim tutelada, todavia, com menor proporção do que a vida extrauterina, entendida em todos os seus aspectos.

Isso quer dizer que, a vida da gestante é dotada de direitos fundamentais individuais, que não podem ser excluídos. Vale ainda ressaltar que, a vida intrauterina é mais intensa ao final da gestação, logo, a tutela jurisdicional concedida a esta vida também o deve ser.

O que não se pode admitir é ignorar totalmente a autonomia reprodutiva da mulher e a liberdade sobre seu corpo, que geram reflexos nos mais diversos aspectos sociais analisados neste trabalho.

É imprescindível que o Poder Legislativo tome consciência de que a regra estabelecida pelo Código Penal de 1940 é ultrapassada, machista e de cunho autoritário. Além disso, a liberdade individual não é preservada e também não são observadas as questões sociais fáticas que demonstram como sofre a maioria da população brasileira. Deve ser tomada uma postura mais moderna, no sentido de regulamentar o aborto, de acordo com os princípios constitucionais, e não deixar o direito à vida do nascituro escamoteado.



[1] SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro Lumen Juris, 2006. P. 114.

[2] 93 BVerfGE 1 (1996)

[3] Tradução livre do autor. TRIBE, Laurence. American Constitucional Law. 2nd. Ed.. Mineola: The Foundation Press, 1988, P. 1354.

[4] SEIXAS DUARTE, Clarice. Mulher, sociedade e direitos humanos. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins e POMPEU TOREZAN ANDREUCCI, Ana Claudia (organizadoras). São Paulo: Rideel, 2010. Artigo: Políticas públicas, direito à educação e gravidez na adolescência. P. 461.