O aborto de anencéfalo sob a ótica dos princípios da dignidade humana e da lesividade:

                            

José Orlando Soares Leite Neto

Samuel Jorge Arruda de Melo

Sumário: Introdução; 1 O crime de aborto no Brasil: definições e adequações ao Código Penal; 2 Os princípios da dignidade humana e da lesividade; 3 O aborto de anencéfalo e o paradigma do direito à vida; Considerações finais ; Referências.

 

RESUMO

O aborto, no que tange ao Direito Penal, diz respeito à interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da concepção. Tendo este varias formas e espécies, e uma em especial chama a atenção, o aborto de anencéfalo, o qual vem sendo discutido na doutrina e na jurisprudência há um bom tempo. Apenas mais recentemente, com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54) e com outros argumentos trazidos à baila pela doutrina atual, é que fica, de certo modo, explícito que esse tipo de aborto é permitido. Sendo assim, não configura crime. Para o melhor entendimento do debate acerca deste assunto, tem-se os princípios da dignidade humana e da lesividade, os quais servem de meio para a fundamentação, tanto para a ideia de que o aborto de anencéfalo deve ser permitido, quanto para a ideia de que não deve. Pretende-se, então, abordar sobre o aborto de uma forma geral, depois tratar desses princípios e a maneira em como se encaixam nessa situação, para, enfim, tratar do aborto de anencéfalo e como este se relaciona com o direito à vida.

 

Palavras-chave: Direito Penal. Aborto. Aborto de anencéfalo. Princípio da dignidade humana. Princípio da lesividade.

 

Introdução

Tendo em vista a imensa notoriedade obtida pelo aborto, de modo geral, de uns anos para cá, o presente trabalho visa à realização de um estudo mais específico sobre esse tipo de procedimento ou crime: o aborto de fetos anencéfalos. É sabido que o crime de aborto é cometido frequente e indiscriminadamente por todo o Brasil. Como fator que corrobora o dito em epígrafe, há o grande número de abortos realizados em clínicas clandestinas por todo país.

Desta maneira, a situação tomou proporção de saúde pública, uma vez que, devido às debilidades sofridas no procedimento ilegal, mães, e eventualmente fetos, recorrem a hospitais públicos a fim de receber atendimento.

Há previsões legais, no Brasil, que garantem o direito de aborto às gestantes sem que incorram em prática delituosa. As previsões são: casos em que a gravidez ofereça risco à mãe; casos de violência sexual; e, recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu, pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54), votada em 2012, que o aborto de fetos anencéfalos também não é considerado crime.

Sem dúvida alguma, a decisão do Supremo Tribunal Federal representa a quebra de diversos paradigmas social-conservadores. Representa, também, a ascensão do gênero feminino que é, a cada dia e devido a recentes conquistas, mais dono do próprio corpo. E é justamente este o ponto intrigante do presente artigo: até que ponto o aborto de anencéfalo seria uma conduta que representa mera volição da agente em relação ao próprio corpo? O Direito Penal brasileiro faz aferência ao princípio da lesividade (princípio da ofensividade mínima). Esse princípio tem como norte o bordão: “O Estado não pode me punir pelo que faço com meu próprio corpo”.

É bastante razoável dizer, portanto, que uma pessoa não pode ser punida, ad exemplum, por tentativa de suicídio; por lesão corporal em seu próprio corpo. Todavia, como contraponto disso, surge a polêmica do aborto – mais especificamente, o de anencéfalo. Pode, por ventura, a ‘liberdade’ que um indivíduo tem de manipular o próprio corpo e lesioná-lo, se for o caso, sobrepor-se ao emblemático direito à vida, enquanto Direito Fundamental e garantia constitucional?

Existem questões complexas em demasia e até mesmo ortodoxas quanto à aceitação do aborto de anencéfalo. Fala-se, inclusive, em ignomínia ao cristianismo e aos dogmas da Igreja Católica. Não se pretende, no entanto, alongar o assunto, mas tão somente citar a opinião pública em que pesem aqueles que são ,costumeiramente, os padrões de moral da sociedade – igrejas cristãs. Assim, esvaído de preconcepções, o presente artigo traz em seu bojo o levantamento da problemática do aborto de anencéfalo, sem se deter ao Julgado do Supremo Tribunal Federal ou à Lei, em si. Procurar-se-á realizar um debate sólido

1 O crime de aborto no Brasil: definição e adequações ao Código Penal

             A prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação, sendo muito comum a sua realização entre os povos hebreus e gregos. Insta frisar, ainda, que o feto, à época da Lei das XII Tábuas, em Roma, o feto era considerado como parte integrante do corpo da gestante (CAPEZ, 2005).

Essa concepção validava a prática do aborto, de modo que, ao fazê-lo, a mulher tão somente dispunha de seu corpo. Capez (2005) reitera que, à época do então Código Criminal de 1830, o crime de aborto só poderia seria configurado caso fosse praticado por terceiros, sob circunstâncias alheias à vontade da gestante. É por conta disso que, em 1890, o Código Penal pátrio passou a prever como crime o aborto provocado pela própria gestante.

Feita essa breve introdução histórica acerca do aborto, é necessário agora conceituar o crime de aborto. Marques versa, em seus ensinamentos, sobre aborto e Direito Penal (1999, p.183): “Para o Direito Penal e do ponto de vista médico-legal, o aborto é a interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da concepção.”

O Código Penal trata sobre três figuras típicas do aborto: o aborto provocado pela gestante, o aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante e o provocado com o consentimento da gestante (GRECO, 2013). Os artigos 124, 125 e 126 do Código Penal preconizam a prática do aborto como crime:

“Artigo 124: provocar aborto em si mesma mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos. O artigo 125: Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos. O artigo 126: provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.”

Sob a mesma linha de raciocínio- isto é, acerca do aborto e como está tipificado no Código Penal-, é necessário abordar sobre sua classificação doutrinária. O aborto , segundo Greco (2013, p.229):

“crime de mão própria, quando realizado pela própria gestante (autoaborto), sendo comum nas demais hipóteses quanto ao sujeito ativo; considera-se próprio quanto ao sujeito passivo, pois somente o feto e a mulher grávida podem figurar nessa condição; pode ser comissivo ou omissivo (desde que a omissão seja imprópria); doloso; de dano; material; instantâneo de efeitos permanentes (caso ocorra a morte do feto, consumando o aborto); não transeunte; monossubjetivo; plurissubsistente; de forma livre.”

                       No intuito de caracterizar ainda mais o aborto, é de fundamental importância determinar, quando inicia a proteção desse tipo penal. A vida tem início a partir da fecundação (momento em que o óvulo feminino é fecundado pelo espermatozoide masculino). Entretanto, para a lei penal, a vida só tem relevância após a nidação (implantação do óvulo já fecundado no útero materno), que ocorre 14 (quatorze) dias após a fecundação (GRECO, 2013).

                     Essa identificação de quando a vida tem início para os efeitos da lei penal ajuda na definição e tipos penais do aborto. Presume-se, então, que a ocorrência do aborto se dá no estado de gestação, quando o ovo/zigoto é implantado na cavidade uterina. Dessa fase em diante, o aborto é possível (FRAGOSO, 1981 apud GRECO, 2013, p. 230-231).

                      Desta maneira, qualquer conduta que vise à interrupção da gravidez, após a nidação, já se enquadra nesse tipo penal, admitindo, além do crime consumado, a possibilidade de tentativa. A discussão acerca do início da proteção à vida pelo tipo penal do aborto leva ao desenvolvimento do raciocínio de que só há aborto nas hipóteses de gravidez intrauterina (GRECO, 2013).

                      No que concerne ao encerramento da possibilidade da ocorrência do aborto, afirma-se que este se dá quando do início do parto. Após esse período, a morte do nascente pode ser considerada infanticídio ou homicídio, dependendo da análise das circunstâncias em cada caso concreto. Para fins de um melhor compreensão de quando seria iniciado o parto e, consequentemente, o fim da oportunidade da prática do aborto, tem-se três definições: com a dilatação do colo do útero; com o rompimento da membrana amniótica; ou no parto cesariano, com a incisão das camadas abdominais (GRECO, 2013).

Já, quanto ao bem jurídico tutelado por esse tipo de crime, Bitencourt aduz (2012, p.159): “O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação, embora, rigorosamente falando, não se trate de crime contra a pessoa”. Considera, então, que o feto não é pessoa, nem mera esperança de vida ou parte do organismo materno, pois tem vida própria e tratamento autônomo no ordenamento jurídico brasileiro. Já no aborto provocado por terceiro, a incolumidade do gestante também é protegida (BITENCOURT, 2011).

Têm-se, então, uma possibilidade de diferentes autores para esse mesmo crime. Logo, fazendo uma análise dos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal chega-se ao entendimento de que: no 124, somente a gestante pode ser a autora desses crimes (sujeito ativo) e o feto é o sujeito passivo. Já nas hipóteses dos artigos 125 e 126 desse mesmo código, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, já que é um crime comum. Nesses casos existem dois sujeitos passivos: a gestante e o feto. É um crime de dupla subjetividade passiva. (CAPEZ, 2005).

O crime de aborto consuma-se com a morte do feto ou embrião. Assim, não importa o que ocorra no ventre materno ou fora dele; é indiferente que o feto seja expulso ou não das entranhas maternas. Logo, para que ocorra a consumação desse tipo crime é necessário que exista um feto vivo em uma gravidez em andamento (BITENCOURT, 2011).

Fica claro, para fins de aborto, que a gravidez deve ser findada por meio de práticas abortivas ou da imaturidade do feto para viver fora do ventre, em decorrência dessas manobras. É indispensável que se prove se o feto estava vivo ou não no momento da ação, por meio do auto de exame de corpo de delito, como previsto no artigo 158 do Código de Processo Penal (BITENCOURT, 2011).

É admitida a tentativa nesse tipo de crime, contanto que não ocorra a interrupção da gravidez com a morte do feto, por causas alheias a vontade do agente. Entretanto, não se admite a tentativa no autoaborto, tendo em vista que o ordenamento jurídico brasileiro não pune a autolesão (BITENCOURT, 2011).

Tecidos esses comentários acerca da caracterização do crime de aborto, é mister salientar as espécies existentes deste tipo de crime. Podendo ser dividido em duas espécies: o natural/espontâneo e provocado. O primeiro ocorre quando o próprio organismo materno, por conta da morte do feto, expele o fruto da concepção. Esse tipo de aborto pode ser causado por fatores ambientais e por algum problema concernente ao sistema genital feminino. Logo, para o Direito Penal, essa hipótese de aborto não vem a calhar; não é considerada crime (GRECO, 2013).

Já o segundo é o aborto provocado dolosamente ou culposamente. As espécies dolosas estão tipificadas no Código Penal, nos artigos 124, 125 e 126. As espécies culposas não estão tipificadas nesse mesmo código, pois, quando ocorre um aborto desse tipo, o fato é considerado um indiferente penal (GRECO, 2013).

Só há crime quando o aborto é provocado. Esse crime exige as seguintes condições jurídicas: dolo, gravidez, manobras abortivas e a morte do feto, embrião ou óvulo. As situações específicas em que o aborto é considerado crime são: aborto provocado pela gestante, aborto consentido; aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante; e o provocado por terceiro, com o consentimento da gestante (BITENCOURT, 2011).

 O primeiro e o segundo estão inseridos no artigo 124 do Código Penal. No primeiro caso, a mãe interrompe ou consente para que outro interrompa a gravidez, resultando na morte do feto. Trata-se, então, de um crime de mão própria, isto é, provocado pela gestante, contudo sem afastar a possibilidade de participação de outrem nesse crime (CAPEZ, 2005).

Porém, essa participação de outro nesse crime, é uma atividade acessória, o partícipe somente instiga, induz ou auxilia a gestante a praticar ou consentir com o aborto. Caso vá além disso, intervindo nos atos executórios, responderá não como coautor, pois se trata de crime de mão própria (o ato é personalíssimo), mas como autor do crime (BITENCOURT, 2011).

Já no segundo caso, também concernente ao artigo 124 do Código Penal, o aborto consentido, a execução material do crime é realizada por uma terceira pessoa. Sendo assim, pode haver o concurso de pessoas na modalidade de participação, por exemplo, quando alguém induz a gestante a deixar que terceiro lhe provoque o aborto (CAPEZ, 2005).

Respondem então separadamente, a mãe, de acordo com o artigo com o artigo 124 do Código Penal; e o terceiro, de acordo com o artigo 126 desse mesmo código. Há aqui, uma exceção a teoria monística adotada pelo Código Penal em seu artigo 29, o qual demonstra que todos participantes de um crime incidem nas penas de um único e mesmo crime. Fato que não ocorre nesse tipo de aborto (CAPEZ, 2005).

Na terceira situação específica, o aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante é considerada a forma mais gravosa desse tipo de delito, pois a ausência de consentimento constitui uma elementar do tipo penal (CAPEZ, 2005).

Na hipótese de número quatro, aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante. Há a incidência de duas figuras específicas: uma para a gestante (artigo 124, 2ª parte do Código Penal), e outra para o provocador (artigo 126 do Código Penal). Dessa forma, é possível o concurso de pessoas, pois há o auxílio à conduta do terceiro que provoca o aborto, como por exemplo, a enfermeira que auxilia o médico em uma clínica de aborto (CAPEZ, 2005).

Para que se configure esse tipo de aborto, é necessário que o consentimento da gestante seja válido, ou seja, a gestante tem de ser capaz civilmente de consentir. Levando em conta a vontade real da gestante (CAPEZ, 2005).

Existe ainda, no Código Penal Brasileiro, duas modalidades de aborto legal, ou seja, que são permitidos, em seu artigo 128:

“Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54) Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

Sendo assim, esses dois tipos de aborto são excludentes de ilicitude de uma infração penal. No aborto necessário, para configurar o crime é necessário que seja caracterizado o estado de necessidade, tendo assim, o perigo de vida da gestante e a inexistência de outro meio de salvar a sua vida. Já no aborto humanitário, como é chamada pela doutrina a segunda hipótese do artigo 128 do Código Penal, deve haver autorização da gestante e resta ser comprovado que a gravidez seja resultado de um estupro.  (BITENCOURT, 2011).

É necessário ainda, salientar que no crime de autoaborto e no de aborto causado por terceiro, em virtude de suas penas mínimas, é permitida a suspensão condicional do processo. Já no aborto causado por terceiro, com consentimento da gestante, a suspensão condicional do processo não pode ocorrer, caso seja constatada a existência de lesão corporal grave ou morte da gestante. A ação penal em todos esses casos é de iniciativa pública incondicionada (GRECO, 2013).

2 Os princípios da dignidade humana e da lesividade

O Direito Penal é o ramo do direito que tipifica os crimes (define qual conduta é crime e que tipo de crime, qual crime é). Além de defini-los, é responsável por cominar, aplicar e executar as sanções (penas e medidas de seguranças). Tem por finalidade realizar a proteção dos bens jurídicos essenciais (vida, patrimônio, liberdade individual, dignidade sexual, saúde pública, entre outros) à sobrevivência da sociedade e do indivíduo (GRECO, 2013).   O Direito Penal baseia-se, assim, em princípios para poder realizar essa proteção dos bens jurídicos mais importantes (GRECCO, 2013). Princípios estes que advém de um princípio geral, o princípio da dignidade humana (NUCCI, 2007). 

Alguns autores defendem a tese de que existe o princípio penal da dignidade humana, sendo este, portanto, o regente dos demais princípios penais. Entretanto, há bastante dificuldade para definir um conceito sobre esse princípio na esfera do direito penal. Além disso, é difícil reconhecer os motivos pelos quais os autores consideram tal princípio como parte do Direito Penal. Não há como afirmar que ele seja um princípio penal (NUCCI, 2007). 

A dignidade da pessoa humana se fundamenta na ideia de que cada ser humano é humano pela força de seu espírito. Assim sendo, essa mesma força seria o que capacita o homem a tomar decisões, vez que esteja consciente de si mesmo, de autodeterminar a sua conduta (DURIG 1956, apud SARLET, 2012, p.101).  

Sob este enfoque, a Dignidade da Pessoa Humana, para Filho (1988, apud NUCCI, 2007, p.73) seria o respeito do Estado pelo ser humano, ao ser individualizado, não podendo este ser sacrificado em nome da coletividade. Trata-se de um fundamento do Estado Democrático de Direito. Ou seja, seria objetivo do Estado brasileiro, e não um princípio penal específico (NUCCI, 2007). 

O Princípio da Dignidade Humana tem quatro funções principais: a primeira proíbe a criminalização de uma atitude interna, ou seja, ninguém pode ser punido por aquilo que pensa ou mesmo por sentimentos pessoais; a segunda proíbe a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor (o direito penal não pode punir condutas que não lesem bens de terceiros, pois não excedem ao âmbito do próprio autor); a terceira impede que o agente seja punido por aquilo que é, não pelo que fez (direito penal do autor); a quarta, serve para afastar a incidência de aplicação da lei penal àquelas condutas desviadas que não afetam bem jurídico de terceiros (NILO,1996 apud GRECO, 2013, p.51). 

Sendo assim, neste caso, o princípio a ser utilizado será o da lesividade, o qual terá fundamental importância para o entendimento da questão do aborto de anencéfalo. Segundo Greco (2013, p.51):  (...) “o princípio da lesividade nos esclarecerá, limitando ainda mais o poder do legislador, quais são as condutas que poderão ser incriminadas pela lei penal. Na verdade, nos orientara no sentido de saber quais são as condutas que não poderão sofrer os rigores da lei penal.” Sendo assim, somente se justifica a atuação do Estado se houver perigo concreto ao bem jurídico tutelado (BITENCOURT, 2012). 

O princípio da lesividade tem, no Direito Penal, uma dupla função: a político-criminal e a interpretativa ou dogmática. A primeira função tem caráter preventivo-informativo. Isto porque serve para a elaboração das leis penais; ou seja, dirige-se diretamente ao legislador.  Já a segunda serve para a aplicação da norma ao caso concreto. Aplica-se esta última na operacionalização do Direito Penal, ocasião em que o juiz que é o intérprete e aplicador da lei (BITENCOURT, 2012). 

Nesse diapasão, o Direito Penal deve abranger condutas graves; condutas que sejam ofensivas a bens jurídicos relevantes, evitando intrometer-se excessivamente na esfera particular do indivíduo, pois assim não estaria cerceando a liberdade deste. O Estado deve respeitar a esfera íntima dos indivíduos (NUCCI, 2007). 

As condutas que não afetam bens jurídicos de terceiros (inofensivas, em essência, à ordem pública e à sociedade), ou seja, que só afetam a esfera particular do agente, devem ser respeitadas pela sociedade e pelo Estado, demonstrando, assim, a tolerância necessária para a convivência no meio social (GRECO, 2013). Assim, segundo Nucci (2007, p.74):  

“(...) a lesividade deve estar presente no contexto do tipo penal incriminador, para validá-lo, legitimá-lo, sob pena de se esgotar o Direito Penal, especialmente quando se contrasta a conduta praticada com o tipo de sanção para ela prevista como regra, ou seja, a pena privativa de liberdade.”  

Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, sendo incapaz de lesar o interesse protegido, não haverá adequação típica, serão fatos atípicos. (CAPEZ, 2003).  

O princípio da lesividade (ofensividade mínima) é autoexplicativo: não há ofensividade em potencial na conduta que se tem mãos. É, na verdade, um princípio que visa eximir o direito de se ocupar com questões que não necessitam de provimento jurisdicional (NUCCI, 2007). Esse princípio evidencia o caráter subsidiário do Direito Penal; o caráter de punir severamente apenas atos extremos, vez que a pena macula o ser humano pelo resto de sua vida. Por conta disso, tal princípio tem papel essencial ao direito, sobretudo o penal (GRECO, 2013).

Como foi dito nas preliminares do presente artigo, a ofensividade mínima prega que o Estado não pune alguém pela manipulação de seu próprio corpo. É em virtude disso, inclusive, que a autolesão corporal não é punível, em regra (GRECO, 2013). Todavia, a classe médica tem dito continuamente que a placenta, onde o feto fica ao longo da gestação, não é uma extensão do corpo feminino (DINIZ, 2004). Tal argumento é utilizado por religiosos que defendem que a placenta é um aparato de proteção ao feto, que, não fosse essa bolsa amniótica, o feto seria regurgitado do ventre materno como um corpo estranho (NUCCI, 2007).

É importante que seja estabelecido um contraponto entre as duas vertentes. Ora, a partir do momento em que há um ser vivente nas entranhas maternas é de curial relevância que haja responsabilidade por parte da gestante em preservar uma vida que não é a sua. O feto que ainda será gerado também é sujeito de direito (NUCCI, 2007).

Assim, há que se ponderar os dois princípios em xeque. Isto porque acredita-se que os dois têm igual importância para fins de aborto. A lesividade garantiria à mulher o direito de abortar, caso não quisesse ter o filho; a Dignidade da Pessoa Humana garantiria ao feto ser gerado de maneira comum e ter a sua vida de maneira plena. O fim que se busca, nesse caso, é e sempre será a segurança jurídica das partes envolvidas (GRECO, 2013).

3 O aborto de anencéfalo e o paradigma do direito à vida

O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986, p. 119) cita anencefalia como: “Anomalia de desenvolvimento, que consiste em ausência de abóbada craniana, estando os hemisférios cerebrais ausentes ou representados por massas pequenas que repousam na base. Monstruosidade consistente na falta de cérebro”.

Levando em consideração a referência dada pelo Dicionário Aurélio, compreende-se que o feto anencéfalo é aquele que nasce com déficit de massa encefálica na região frontal da caixa craniana. Maria Helena Diniz ratifica, ainda, que pode ser um embrião, feto ou recém-nascido que, por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela de tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais). Como os centros de respiração e circulação sanguínea situam-se no bulbo raquidiano, mantém suas funções vitais, logo o anencéfalo poderá nascer com vida, vindo a falecer horas, dias ou semanas depois (DINIZ, 2008).

Desta maneira, cumpre salientar que é cristalino o entendimento de que a anencefalia é uma anomalia que atinge o feto de modo a comprometer de maneira degenerativa a sua vida extrauterina. (DINIZ, 2008).

O entendimento entre a classe médica acerca do tempo de vida de fetos com essa má-formação é passivo. Esse é um caso de má-formação fetal incompatível com a vida extra-uterina na grande maioria dos casos. O feto não apresenta os hemisférios cerebrais em virtude de um defeito de fechamento do tubo neural. Como a cabeça não se fecha e o cérebro não se desenvolve, o feto apresenta um profundo achatamento da  cabeça, desfigurando a sua face (DINIZ, 2004).

Ainda versando sobre o aborto de anencéfalos, conforme aduz Von Franqué (apud HUNGRIA 1958, p.314):

“Não há doença alguma da mãe ou do pai, em virtude da qual a ciência, de modo geral ou nalgum caso particular, possa, com segurança, prever o nascimento de um produto degenerado, que mereça, sem maior indagação, ser sacrificado. Os enfermos mentais, posto que capazes de reprodução, podem ter descendentes interinamente sãos e de alta espiritualidade”.

Os ensinamentos de Franqué põem em xeque a legitimidade do aborto de fetos anencéfalos. É certo que o contexto histórico-cultural em que a frase acima foi dita não deve ser desprezado (HUNGRIA, 1958). No entanto, há sensatez em tais palavras, ainda assim, nos tempos hodiernos. Isto porque pode haver hipóteses de erro de diagnóstico médico e, assim, o suposto aborto anencefálico se converteria em um aborto comum. Fosse assim, não haveria enquadramento do caso concreto nos tipos de aborto passíveis de aceitação pelo Código Penal Brasileiro (BITENCOURT, 2011).

O ponto chave do presente artigo é, sem dúvida, o paradigma do direito à vida. Quanto ao nascituro, portanto, Maria Helena Diniz é enfática quando estabelece um conceito para tanto:

“Aquele que há de nascer, cujos direitos a lei põe a salvo. Aquele que, estendo concebido, ainda não nasceu e que, na vida intrauterina, tem  personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos de personalidade, passando a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais, que permaneciam em estado potencial, somente com o nascimento com vida.” (DINIZ, 1998, p. 334.)

Há que ser salientado, aqui, o trecho dos ensinamentos da ilustre doutrinadora em que afirma que o nascituro é “aquele que há de nascer, cujos direitos a lei põe a salvo”. Ora, isto infere dizer que, ainda que não possua personalidade jurídica material, no sentido palpável, o nascituro é sujeito de direitos resguardados por lei (DINIZ, 1998).

Por silogismo, conclui-se que, se há alguém passível de um direito, deve haver, necessariamente, um outro sujeito passível de um dever proporcional. Trata-se do Direito Fundamental à vida, cujo titular seria o nascituro, e o Dever Fundamental de proteger o bem jurídico tutelado - o titular desse dever seria o Estado (DINIZ, 1998). Frise-se, todavia, que o presente artigo tem por finalidade apenas levantar conjecturas, e não ensinamentos práticos.

Como contraponto ao argumento epigrafado, insta ressaltar que o aborto de anencéfalos é prática resguardada pela ADPF 54/DF. O Ministro Marco Aurélio, do Superior Tribunal Federal, lança por terra o argumento de que o feto anencéfalo é sujeito passível do Direito à vida. Em seu voto na ADPF 54/DF (p. 60, ADPF 54/DF), o Ministro reitera que não se pode refutar o aborto de anencéfalos invocando o Direito Fundamental à vida. Ressalta, ainda, que o feto anencéfalo não representa uma vida em potencial. Para o Excelentíssimo Ministro, por ser absolutamente inviável, o anencéfalo não tem a expectativa nem é ou será titular do direito à vida. É justamente por conta disso que o Relator dessa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental afirma que se trata apenas de um conflito aparente de Direitos Fundamentais, visto que fetos anencéfalos não representam vidas, em potencial (STF – ADPF 54 DF Relator: Min. Marco Aurélio, DJ: 20/08/20008 Data de Publicação: DEJT 28/08/2008).

Nesse diapasão, entende-se que o feto anencéfalo não é protegido pelo Direito Penal, vez que não há vida útil e viável; não há exigência de que a gestante carregue por nove meses um feto que, logo ao nascer, não conseguirá sobreviver por conta de não possuir a abóbada craniana (NUCCI, 2007). Vale ainda ressaltar que não há sequer algum caso em que um ser humano sem calota craniana, que alcançou a idade adulta (DINIZ, 1998).

Além disso, o Estado brasileiro é laico. Impende frisar, assim, que não é vedada a adoção e prática de qualquer culto ou crença, inclusive o ateísmo. O aspecto religioso foi, aqui, lembrado pelo fato de haver discussões acerca deste tema baseadas em sentimentos religiosos. Essas discussões giram em torno de que a gestante tem por missão carregar o feto em seu ventre, mesmo que este não possua vida útil e viável (NUCCI, 2007).

Entretanto, esses argumentos baseados em sentimentos religiosos são facilmente refutados à medida que se estabelece o contraponto que a mulher não deve ser obrigada a carregar o fardo de gerar e parir um ser humano que morrerá em pouco tempo, mais exatamente, logo após de se desprender do ventre materno (NUCCI, 2007). O que fica claro é que a possibilidade de interrupção da gravidez nas hipóteses de feto anencéfalo ainda continua sendo discutida na doutrina, mesmo com a definição de que o aborto é aceitável. Essa decisão paira sobre o argumento de que a não aceitação do aborto de anencéfalo geraria insegurança jurídica no Poder Judiciário (GRECO, 2013).

CONCLUSÃO

O princípio da lesividade é essencial ao Direito Penal. Ocorre que tal princípio evidencia o caráter subsidiário do estudos penais, ao passo em que não permite que sejam consideradas crime condutas que não atingem bens jurídicos de terceiros (GRECO, 2013). Sua relação com o princípio da dignidade humana é a de que se trata de um princípio geral do Estado Democrático de Direito, tendo como primícias a criação de outros princípios, inclusive no Direito Penal (NUCCI, 2007). 

 Sob a mesma lógica, os princípios supracitados serviram de base para o entendimento do aborto de anencéfalo. Grosso modo, isso significa inferir que o princípio da lesividade e o princípio da dignidade  humana têm como função definir se aborto de anencéfalo deve ser ou não tipificado como crime. Isto é, uma ponderação feita ao realizar uma comparação com o direito à vida, o qual é o bem jurídico tutelado, nesse tipo de crime (CAPEZ, 2005).   

A doutrina majoritária apresenta um entendimento maciço quanto à prática de aborto. É quase unânime a aceitação da realização de aborto nos casos previstos por lei. Após o voto dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, então, houve uma espécie de contágio ideológico. Isto porque, conforme prolatado na ADPF 54/DF, sobretudo por se tratar de fetos anencéfalos, o aborto passou a ser enxergado sob uma perspectiva inédita: a laicista. Laicista, sim, e não laica. O voto do Min. Marco Aurélio apresentou argumentos fundamentais para aprovação do aborto de anencéfalos.

 Cumpre salientar, a título de ênfase, que o Ministro-relator da arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental referida alegou, quanto aos fetos anencéfalos, não haver relação com vida em potencial. Isto porque fetos anencéfalos sobrevivem, conforme aduz a classe médica, em média vinte e quatro horas após o parto, quando muito (DINIZ, 2004). O aborto de fetos anencefálicos ainda é bastante defendido pelas classes religiosas, como um todo (NUCCI, 2007). É sabido, também, que as religiões, bem como a família, têm papel fundamental no Direito Penal. Trata-se do controle social que exercem sobre o indivíduo e que acaba por compeli-lo, ainda que moralmente, a não delinquir (GRECO, 2013). Por conta disso, é uma perspectiva que não pode ser simplesmente desprezada. É fundamental, portanto, que não haja sobreposição de correntes (quanto ao aborto de anencéfalos), mas, em verdade, uma ponderação a fim de garantir segurança jurídica à estante, à vida - sim, à vida- e à sociedade (GRECO, 2013).  

REFERÊNCIAS

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CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal parte especial. 5 ed. vol.2. São Paulo: Saraiva, 2005.

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