O § 2º. do art. 114 na redação dada pela   EC 45 e o requisito do comum acordo para o dissídio coletivo 

Santino Antônio Fernandes Borges 

Toute notre dignité consiste donc em la pensée. (...) Travaillons donc  à bien penser: voilà le príncipe de la morale. 

Pensées de Blaise Pascal

Vez por outra, acabamos por reler e rever algum artigo que escrevemos e foi dormitar lá nos escaninhos do passado. O caso deste não é diferente, contudo o tema continua vivo e prova disso são as várias ações diretas de inconstitucionalidade que foram aforadas contra a alteração veiculada pela Emenda Constitucional n. 45 de 30 de dezembro de 2004, mormente aquela do § 2º do art. 114 da CF – a esdrúxula exigência do comum acordo para ajuizamento dos dissídios coletivos de natureza econômica.

Prova-lhe a atualidade temática o fato de, em 2011, o ministro Gilmar Mendes ter assim despachado na ADI 3.423:

em razão da identidade de objetos, as ADIs 3.392, 3.431, 3.432 e 3.520 devem ser apensadas a esta ADI 3.423, para tramitação e julgamento em conjunto.

Coisas há que criadas pela sanha legislativa (própria e imprópria) parecem confirmar a célebre e arguta proposição de Pascal: Le coeur a ses raisons que la même raison ne connaît point[1]. Tal é o que se dá com a famigerada locução “de comum acordo” inserta, lamentável e incoerentemente, pela Emenda Constitucional 45 no § 2º do art. 114 da tão proclamada Constituição Cidadã.

Antes de maiores digressões, transcrevemos o preceito constitucional emendado por lavra do untuoso legislador constituinte derivado:

Art. 114 (...)

§ 1º. Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.

§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. (Sublinhado nosso).

O preceito anterior do § 2º já abrigava, suficientemente inteligível tanto quanto prática, a disposição seguinte:

Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.

 

Por agora, tratemos de analisar o que é o instituto trabalhista do dissídio coletivo. Antecipemos, porém, que ele, desde sua definição, repele a presença desse requisito do “comum acordo” posto que é a própria inexistência deste que deflagra o processo de conhecimento coletivo. Ora, se há comum acordo, dissídio não há. Claríssimo: ele só ocorre porque inexiste consenso negocial, quer dizer, inaugurada a dissidência entre as partes negociadoras não há lógica nenhuma em querer unir aquilo que se encontra apartado, proceloso. Ele é, ademais, um tanto semelhante ao dissídio individual, ontologicamente. É o choque de vontades, a ausência de conciliação, a insegurança jurídica no plano coletivo.

Pois muito bem. Não seria nenhuma veleidade começar com a intelecção do que quer dizer – em claro vernáculo – o substantivo dissídio.

Dissídio significa, pois: desinteligência, dissensão[2]. Ou seja, é o afastamento que se dá quando as partes não têm a vontade convergente no trato de determinada matéria. Passemos, a seguir, à interpretação da locução dissídio coletivo.

A Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, lá no art. 856, estatui

:

A instância será instaurada mediante representação escrita ao presidente do Tribunal. Poderá também ser instaurada por iniciativa do presidente, ou, ainda, a requerimento a Procuradoria da Justiça do Trabalho, sempre que ocorrer suspensão do trabalho.

 

Preliminarmente, tentemos digerir a letra seca e diacrônica da lei porque, vale a pena recordar, aquele diploma vem da época fascista de Getúlio Vargas. Assim, “instância” ali quer significar processo. Adequando-a ao princípio genérico que ora o sistema jurídico adota para provocar a jurisdição, isto é, o dispositivo ou da disponibilidade (Nemo iudex sine actore) que outorga às partes o início da demanda civil ou trabalhista, bem como o princípio da demanda ou da ação.

Feitas essas considerações, não mais pode a instância ser instaurada ex officio por presidente de tribunal regional, nem pelo do Tribunal Superior do Trabalho. Demais disso, há preceito no Código de Processo Civil – CPC – que não permite a quem não seja titular legítimo do direito vir a juízo postular em nome de outrem (CPC 6º.). Contudo, não é menos verdade que há exceção, por exemplo, nos casos de legitimação extraordinária. Iteremos que tal dispositivo é aplicável subsidiariamente ao processo trabalhista por expressa determinação da CLT 769. Portanto, a modificação legislativa advinda com a Lei n. 7.783/89, art. 8º sincronizou aquilo que estava em diacronia. Então, temos que os legitimados à propositura do dissídio coletivo, atualmente, são: as partes, leiam-se sindicatos e o Ministério Público do Trabalho, órgão, aliás, de estro constitucional apto à garantia dos direitos trabalhistas e à fiscalização do cumprimento da lei  (custos legis).

Ora, por debaixo do aspecto meramente processual-trabalhista, só cabe a instauração do dissídio coletivo quando as partes não chegaram a um denominador comum para pôr termo à querela; por outras, inexistiu o tal do comum acordo com aquilo que foi prévia e exaustivamente negociado. Aquelas negociações coletivas foram de todo frustras. Depois, os dissidentes não aceitaram a arbitragem porque esta não é obrigatória. Qual a solução para o impasse, para o dissídio, enfim? Bem, sem maiores esforços hermenêuticos, a solução está perfeitamente garantida já na própria Constituição e estampada cristalinamente no art. 5º, inciso XXXV. É o direito fundamental de acesso à justiça. Este ditame positiva o princípio do não-afastamento da apreciação judicial de controvérsias e sintoniza-se com a própria lógica da jurisdição, literalmente: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. O segundo permissivo está lá na CLT 616 e instaura o poder normativo da Justiça do Trabalho.

Bons doutrinadores e jurisprudência caminham no sentido de que no dissídio coletivo o que se discute é a criação de novas normas ou condições de trabalho para a categoria, ou a interpretação de certa norma jurídica. Tal é a lição do professor e juiz do trabalho Sérgio Pinto Martins[3]. Desse trecho, percebemos que o dissídio coletivo encerra duas finalidades: ou trata de questões de ordem econômica para a categoria ou procura judicialmente a melhor interpretação da regra em torno da qual grassa o dissenso. Daí, os dissídios coletivos serem de natureza econômica ou jurídica. Naqueles, a Justiça do Trabalho atua com poder normativo. Por isso, baldadas as negociações, recorre-se ao Judiciário Trabalhista. É a via eleita pelo constituinte originário. É patente direito fundamental, garantido, pois, pelas mal-referidas cláusulas pétreas que, deveras, são cláusulas perpétuas (Ewigkeitsklausel), especificamente na CF 60, § 4º, IV – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ... os direitos e garantias individuais.

Poderíamos relembrar a Teoria Tridimensional do Direito do professor e jusfilósofo Miguel Reale. Em síntese, o fenômeno jurídico pode ser dissecado em três vertentes, quais sejam: fato, valor e norma. Com respeito a esta, o direito cuida da normatividade efetiva das relações sociais, bem assim da ciência jurídica; no que diz com a primeira, desponta o aspecto fático a preocupar-se (literalmente, pré-ocupar-se...) com o fato sob análise, seja lá de que natureza for. Seria o Tatbestand dosdoutrinadores alemães, ou, o suporte fático em que incide a norma, a regra e que deve ser dotada de efetividade social e histórica; e, a ponte entre estas duas, o valor, a carga axiológica com que a norma apreciaria ou valoraria os fatos a que houvesse de regular, com a visão de justiça.

Só por isso, pensamos, todo legislador deve pautar-se de tal sorte a contemplar estas três dimensões em sua atividade legislativa. Ter a norma como integrante do direito de forma a manter-se coesa no campo da ciência jurídica e efetiva na arena das relações sociais; o fato observado terá de sofrer a incidência normativa sem descurar do lento e paulatino construir histórico-social e, derradeiramente, imputar-lhe a carga axiológica que lhe imprima a idéia de justiça no resultado daquele labor.

Bem, nesse passo, somos forçados a referir, com pesar, à perversa índole da classe empresarial pátria, herdeira do patrimonialismo, do patriarcalismo, do coronelismo e de sem-número de mazelas formadoras da cultura do “jeitinho” brasileiro, que deplora a Justiça do Trabalho, sonega tributos e direitos de trabalhadores, aprimora mecanismos anti-licitatórios etc. Mas e o que tem isso a ver com a inserção do “comum acordo” no dissídio coletivo tal como engendrado pela EC 45? Quase tudo. Se, de um lado, as negociações acabam por esbarrar no poder econômico e político daqueles que detêm o capital, por outro, o trabalho deve ser flexibilizado para ser a empresa competitiva no sistema da globalização. Para nós, indubitavelmente, o novo adendo da norma hostilizada neste estudo pretende fazer prevalente o interesse da parte mais forte em desfavor da hipossuficiente. Todavia, escancaradamente, esbarra no conteúdo civilizatório da Constituição Federal nos termos em que urdido pelo legislador originário e que, hoje, recebe o duro golpe do outro, o legislador-macunaíma. Para bom entendedor, bom parlamentar, seria útil considerar a lição do provérbio alemão adiante apresentado antes de produzir essas pérolas legislativas: Je mehr Gesetz, je weniger Recht (Trazudimos: Quanto mais leis, menos Direito).

Este novo (nem tanto, já vai para quase uma década) requisito do comum acordo ofende a inteligência de quem quer que olhe Direito Coletivo do Trabalho e seu processo. Basta ponderar o que dissemos no parágrafo precedente e, passo seguinte, comparar com texto emendado da CF. Se não houve acordo durante toda a fase de negociação, se as partes não aceitaram a arbitragem tudo está a sinalizar total impossibilidade de consenso e, sem este, não pode jamais haver comum acordo para dar início à instância. O caminho aberto com a reengenharia da EC 45 nesse particular é o do confronto, do movimento paredista e este não aproveita a ninguém. Como pode a própria Lei Fundamental receber emenda de tal jaez a aniquilar a facultas agendi que, sequer, deveria despontar na Constituição a lume do sempiterno louvado estado democrático de direito. Doravante, ter-se-ia a ressurgência em maior amplitude do direito de ação material (a greve), já em seara juslaboral coletiva! E não sem arrimo. O Código Civil permite o desforço imediato nas questões possessórias. Não deixa de ser resquício da ação de direito material. Símile disso no Direito do Trabalho seria a greve. Arrematemos com Maximiliano: presume-se que na lei não há palavras supérfluas.

Há excelente e longo artigo acerca dos bastidores que levaram a essa emenda, o movimento sindical e da Organização Internacional do Trabalho, do processo legislativo etc. que pode ser acessado em http://www.nucleomascaro.com.br/blog/arquivos/Dissidio%20Coletivo%20Comum%20Acordo.pdf – da lavra do impecável prof. Amauri Mascaro Nascimento. Um ponto interessante, senão pertinente por aqui, é a referência ao lente, juiz do Tribunal de Baden-Württemberg, ex-reitor da Universidade de Tübingen, Alemanha, dr. Otto Bachoff e sua teoria das normas constitucionais inconstitucionais - Verfassungswidrige Verfassungsnormen. Aliás, cremos, perfeitamente aplicável à situação desse remendo constitucional de que cogitamos. Uma emenda que derrui e fere a Constituição.

Pois muito bem. Derradeiramente, antes de aportarmos à conclusão que, consideradas as circunstâncias de ordem prática, a inclusão desse tão malquisto, quanto ilógico requisito do comum acordo não pode prosperar íntegro no sistema constitucional porque tanto é ofensivo à praxe processual coletiva e à inteligência, quanto inconstitucional, na medida em que solapa o direito público  subjetivo de ação.  A bem da verdade, sabemos já que há algumas ações diretas de inconstitucionalidade propostas contra esse requisito. Todavia, tal qual no provérbio germânico, o tempo é nosso inimigo (Zeit, unsere Feind).

A CF 5º., XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito – é cristalina: versa o princípio da inafastabilidade do controle judicial. O poder normativo da Justiça do Trabalho existe para harmonia social. A inserção daquela condição potestativa favorável à classe patronal rompe, historicamente, com a própria ratio essendi do Direito do Trabalho e do Direito Coletivo do Trabalho enquanto instrumentos políticos voltados a garantir aos hipossuficientes maior paridade de armas na arena negocial. O dispositivo constitucional apontado encontra-se sob o pálio da CF 60, § 4º., IV – cláusula de perpetuidade da Carta Política, muito bem referida lá no Direito Constitucional Alemão como Ewigkeitsklausel (Art. 79, § 3 do Grundgesetz), embora vulgarmente apelidadas por aqui de cláusulas pétreas, para desencanto de parte da doutrina. A exegese da norma de inafastabilidade do controle judicial tem de ser apreciada em concurso com a cláusula de perpetuidade a que referimos. A simples interpretação gramatical não vinga.

Mais lenha à fogueira. Não conhecemos, em direito processual –  e o processo coletivo do trabalho não deixa de sê-lo – nenhuma exigência de que para exercitar o direito de ação a parte-autora deva obter a aquiescência da parte-ré. Doravante, nada de dissídio coletivo. Não mais há suscitante, porque o suscitado nunca estará “de comum acordo”. Portanto, a CF 114, § 2º., com essa inserção – para pouco dizer, kafkiana, tornou-se aberração jurídica ímpar na propalada “Constituição Cidadã”.

O legislador - jejuno em matéria jurídica - tem-se especializado em produzir coisas estranhas. Algo deve andar errado no país. Não é possível a existência de milhares de ações diretas de inconstitucionalidade sem a constatação de alguma patologia legislativa. Antes desse incomum dispositivo do “comum acordo”, o legislador de plantão do Executivo, mediante execrável medida provisória nos idos de 2001, à guisa de melhorar o desempenho do Judiciário Trabalhista, atropelando projeto de lei do Legislativo, criou um certo “princípio da transcendência” (Ou importou, Lavoisier?). E no que deu?  Doutrinadores de escol anteciparam-lhe o fim, como Wagner Giglio e Estêvão Mallet. Recordamos, certa feita, da crítica feroz (e jocosa) de um magistrado trabalhista, o Dr. Libânio, na coluna Direito e Justiça do Correio Braziliense. Quase uma década depois do brilhante “filtro”, chegou-se à conclusão:

Presidida pelo vice-presidente do TST, João Oreste Dalazen, a comissão encarregada de elaborar o projeto de regulamentação desse filtro concluiu que sua implementação é impraticável, dada a complexidade da legislação processual trabalhista. "Cada processo contém geralmente mais de dez pedidos. É uma cumulação de ações, o que dificulta a seleção de um deles", diz o presidente da Corte, ministro Moura França. Ele também alega que, nos litígios trabalhistas, é difícil definir as ações que se enquadram nos conceitos de "repercussão econômica e social" mencionados pela MP que criou o princípio da transcendência. [4]

Conclusão de ancha imprestabilidade não só de princípios de conceitos vagos (Engisch), no caso o da transcendência, como da inserção do incomum comum acordo para  proposição do dissídio coletivo.


[1] Traduzimos: O coração tem razões que a própria razão ignora.

[2] Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, Ed. Melhoramentos, São Paulo: 1.998.

[3] Direito do Trabalho, 10ª. Ed., Ver., Atualizada e Ampliada. São Paulo: Atlas, 2.000, pág. 689.

[4] Texto acessado em 17.5.2013 no sítio que apresenta o artigo em 26 de julho de 2010 - http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-tst-e-os-filtros-processuais,586111,0.htm